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Processo nº 298/93
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para este
Tribunal Constitucional do despacho do Mmº Juiz do Tribunal Judicial da
comarca de Sintra (2º Juízo - 1ª Secção), proferido na acta de audiência e
julgamento, em 'autos de RECURSO ADMINISTRATIVO', realizada no dia 2 de Março de
1993, e por via do qual julgou aquele Tribunal 'incompetente em razão da
matéria', não tomando assim, 'conhecimento do recurso' interposto por A. e
absolvendo 'da instância a recorrida' (a Câmara Municipal de Sintra).
Na base do julgado está a consideração essencial de que
vindo 'o presente recurso interposto da decisão camarária que determinou ao
recorrente A., procedesse à remoção de um canídeo, de que é proprietário, do
prédio onde habita' e constituindo tal decisão 'um verdadeiro acto
administrativo, tal como vem definido no artº 120º do Código de Procedimento
Administrativo e assim o entendeu o órgão autárquico ao determinar a
notificação nos termos do artº 66º do Código de Procedimento Administrativo', é
'manifestamente inconstitucional o artº 10º, nº 4 do Dec-Lei 317/85, de 2/8, na
parte em que atribui ao Tribunal Judicial da comarca competência para conhecer
do recurso de acto administrativo que não integra qualquer contra-ordenação, por
violar, além do mais o disposto no artº 168º, nº 1, alínea q) da Constituição e
3º e 51º, nº 1 alínea c) e 54º do Dec-Lei 129/84 citado' ('Por isso que, por
inconstitucional, recusa-se a aplicação da norma prevenida no artº 10º, nº 4, do
Dec-Lei 317/85, citado, (...)' - é o que consta da parte decisória do despacho
em causa).
2. Nas suas alegações, o Ministério Público recorrente
concluiu como se segue:
'1º - Não pode ser qualificada como acto administrativo a resolução camarária
que dirime um conflito de vizinhança, determinando a remoção de um canídeo, como
forma de pôr termo à emissão de ruídos, lesiva do direito ao sossego e
tranquilidade de locatário residente em andar contíguo.
2º - Na verdade, tal acto não é praticado ao abrigo de normas de direito
público, não se traduzindo no exercício de uma actividade de polícia sanitária,
prevenindo comportamentos susceptíveis de fazer perigar interesses gerais,
visando apenas a tutela de um direito subjectivo, de natureza civil, de
pretenso lesado.
3º - Não representa, consequentemente, qualquer modificação das regras que
repartem a competência em razão da matéria entre tribunais judiciais e
administrativos a atribuição ao juiz do tribunal judicial da comarca de
competência para, pronunciando-se sobre a resolução administrativa tomada,
dirimir definitivamente tal litígio, quando os interessados se não conformem
com aquela.
Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma da
decisão recorrida, em conformidade com o sustentado na presente alegação.'
Para aportar a tais conclusões, assentou o Ministério
Público recorrente a sua argumentação no seguinte passo essencial do seu
discurso:
'Sucede, porém, que a decisão recorrida dá, sem a indispensável análise crítica,
como assente e incontroverso um pressuposto fundamental da conclusão a que
chegou: ser a decisão tomada pela Câmara Municipal de Sintra qualificável como
um verdadeiro acto administrativo, contenciosamente impugnável.
É que - e a nosso ver está aqui o ponto fulcral do presente recurso - o objecto
do litígio dirimido pelos órgãos autárquicos situa-se de pleno no âmbito dos
conflitos de vizinhança, entre particulares, tal como aparecem regulamentados
pelo artº 1346º do Código Civil: os latidos dos canídeos cuja remoção foi
determinada seriam precisamente a 'emissão sonora' geradora de 'prejuízo
substancial' para os titulares de direitos sobre o prédio contíguo. Ou -
segundo outra perspectiva a que frequentemente se vem recorrendo em acções
deste tipo, intentadas e julgadas nos tribunais judiciais - estaríamos perante a
eventual lesão de um direito de personalidade do queixoso - o direito ao
sossego, repouso e tranquilidade, enquanto elemento intrínseco do 'direito à
saúde' - emergente da cláusula geral constante do artº 70º do Código Civil: a
única especificidade do presente litígio radicaria em que o instrumento material
de perturbação do referido direito de personalidade seria, afinal, um animal - e
não, como mais frequentemente sucede, uma actividade levada a efeito na
vizinhança ou no próprio edifício onde o pretenso lesado reside ...
Em ambos os casos - independentemente da perspectiva e enquadramento jurídico
adoptado - estamos claramente perante um litígio de natureza civil, regulado
segundo normas do Código Civil e dirimido - hoje em dia, com relativa frequência
- através de acções ou procedimentos cautelares intentados e julgados nos
tribunais judiciais.
Não visou, pois, a decisão camarária que ordenou a remoção do animal causador
da perturbação do direito ao sossego e tranquilidade do locatário queixoso a
prossecução de um interesse público ou colectivo - como sucederia se, pelo
contrário, estivesse em causa a defesa da saúde pública, a prevenção ou
cessação de riscos sanitários que afectassem eventualmente uma pluralidade de
pessoas - mas antes a tutela de um direito subjectivo, dirimindo um verdadeiro
conflito de interesses de natureza civil entre dois locatários de um mesmo
edifício...
Tal configuração é mais que suficiente para permitir pôr em causa a natureza de
'acto administrativo' da resolução tomada.
É que - quer perante as habituais definições doutrinais de 'acto
administrativo', quer face à sua definição legal, presentemente a constar do
artº 120º do Código do Procedimento Administrativo - as decisões da
Administração apenas revestem a natureza de 'actos administrativos' quando
sejam tomadas 'ao abrigo de normas de direito público' (artº 120º, citado),
implicando consequentemente o exercício de um poder público, de um poder de
autoridade da administração sobre os particulares em cuja esfera jurídica vão
precisamente incidir os efeitos jurídicos da conduta unilateral do órgão
administrativo em que o acto, afinal, se traduz'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir.
O processo revela, em síntese, e com interesse, o que
passa a indicar-se:
3.1. Com base numa exposição dirigida ao Presidente da
Câmara Municipal de Sintra e subscrita por B., com a data de 14 de Abril de
1992, dando conhecimento da existência de cães num prédio de habitação e pedindo
que sejam repostos 'os direitos que nos assistem à tranquilidade, sossego e
privacidade', foi organizado o processo administrativo nº 35/92 naquela Câmara.
3.2. Com a data de 17 de Junho de 1992, o Departamento de
Fiscalização Municipal elaborou uma Informação, registando a situação no
prédio, com identificação dos moradores que possuem animais de raça canina, e
dando conta do incómodo, pelo menos, para um dos moradores, 'com o ladrar dos
cães' (seguiu-se a proposta do Chefe de Serviços de que 'de acordo com os nºs 2
e 3 do artº. 10º do D.L. nº 317/85 de 2 de Agosto, se notifiquem os
proprietários dos animais para procederem à sua remoção no prazo de 8 dias,
podendo recorrer desta decisão nos precisos termos do nº 4, do mesmo artº
10º.', a qual mereceu o despacho concordante de 3 de Julho de 1992 do Vereador
competente e com poderes delegados).
3.3. Foram notificados os moradores visados com a decisão,
entre eles o recorrente A., que, em 7 de Agosto de 1992, apresentou na referida
Câmara Municipal um recurso da 'decisão camarária que ordenou a remoção do seu
canídeo', com o fundamento de que tal acto 'não é válido já que não está
fundamentado', e com o pedido de 'anulação da decisão recorrida, continuando o
animal a residir junto aos seus donos' (o recurso, e respectivo processo
camarário, por proposta do Gabinete Jurídico da Câmara, foi remetido ao
Tribunal Judicial da comarca de Sintra, nos 'termos do Artº 10º nºs 2, 3, 4 e 5
do Dec.-Lei nº 317//85 de 2 de Agosto').
3.4. Admitido o recurso naquele Tribunal - depois de um
primeiro despacho judicial em que se considera que o 'recurso interposto da
decisão camarária respeita não a uma contra-ordenação (pois que a lei não
comina com qualquer coima os factos em que assenta) mas antes a uma questão de
natureza cível que tem a ver com a tutela dos direitos de personalidade' e se
manda notificar o recorrente para indicar o valor da causa - e mandado
notificar 'a autoridade sanitária e o médico veterinário assistente para, em 6
dias, alegarem o que tiverem por conveniente (cfr. artº. 10º nº 6 do DL
317//85, citado', foi marcado o julgamento e na respectiva acta o Mmº. Juiz
proferiu o seguinte:
DESPACHO
'Vem o presente recurso interposto da decisão camarária que determinou ao
recorrente A., procedesse à remoção de um canídeo, de que é proprietário, do
prédio onde habita.
Com este recurso, ainda que o não diga expressamente, pretende o recorrente a
revogação da decisão recorrida, pois na sua perspectiva, ela é anulável, por
deficiente fundamentação, nos termos dos artºs 124º, 125º e 135º do Código de
Procedimento Administrativo, aprovado pelo Dec-Lei 442/91 de 15/11.
A referida decisão camarária constitui um verdadeiro acto administrativo, tal
como vem definido no artº 120º do Código de Procedimento Administrativo e assim
o entendeu o órgão autárquico ao determinar a notificação nos termos do artº
66º do Código de Procedimento Administrativo (ver fls.8).
O direito de impugnação judicial das decisões administrativas aplicativas de
coimas vem prevenido no artº 59º, nº 1 do Dec-Lei 433/82, de 27/10.
E nos termos do artº 17º do citado Dec-Lei 433//82, uma coima é sempre e só uma
pena pecuniária.
Ora o presente recurso interposto para este Tribunal ao abrigo do disposto no
artº 10º, nº 4 do Dec-Lei 317/85, visa impugnar não a aplicação de uma coima,
mas de uma providência sanitária.
Porém, a norma que atribui competência ao Tribunal judicial da Comarca para
conhecer do recurso está viciada de inconstitucionalidade orgânica, pois que o
Governo, legislando ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 201º da Constituição,
não podia modificar, quer no sentido material, quer no sentido territorial, a
determinação do Tribunal competente para conhecer das impugnações de actos
administrativos.
Com efeito, nos termos do artº 51º, nº 1, alínea c) do Dec-Lei 129/84, de 27/4
(Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) compete aos Tribunais
Administrativos de Círculo conhecer dos recursos de actos administrativos dos
órgãos da administração pública, regional ou local e das pessoas colectivas de
utilidade pública administrativa.
E o artº 89º do Dec-Lei 100/84, de 29/3, permite a impugnação judicial, em
recurso contencioso, das deliberações dos órgãos autárquicos proferidas com
violação da lei, sendo tal recurso regulado nos artºs 24º e segs. do Dec-Lei
267/85, de 16/7.
O governo ao legislar sobre organização e competência dos Tribunais, sem a
credencial parlamentar, violou o disposto no artº 168º, nº 1, alínea q) da
Constituição da República, pois que é da exclusiva competência da Assembleia da
República, salvo autorização do Governo, legislar sobre tal matéria.
É, assim, manifestamente inconstitucional o artº 10º, nº 4, do Dec-Lei 317/85,
de 2 de Agosto, na parte em que atribui ao tribunal judicial da comarca
competência para conhecer do recurso de acto administrativo que não integra
qualquer contra-ordenação, por violar, além do mais, o disposto nos artºs 168º,
nº 1, alínea q), da Constituição, e 3º e 51º, nº 1, alínea c) e 54º do Dec-Lei
129/84 citado.
Determina o artº 207º da C.R.P. que nos feitos submetidos a julgamento não podem
os Tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na constituição ou
princípios nela consignados.
Por isso que, por inconstitucional recusa-se a aplicação da norma prevenida no
artº 10º, nº 4 do Dec-Lei 317/85, citado, e em consequência julga-se este
Tribunal incompetente em razão da matéria, não se toma, assim, conhecimento do
recurso e absolve-se a instância a recorrida.
Custas pelo recorrente.'
4. O Decreto-Lei nº 317/85, de 2 de Agosto, que é o centro
legislativo regulador da hipótese sub judicio, aplicado a nível da
administração local autárquica e a nível do tribunal judicial de comarca de
Sintra, visou 'englobar num único diploma as normas a que deve submeter-se a
profilaxia médica da raiva e as medidas de polícia sanitária, conjunto este
integrado no Programa Nacional de Luta e de Vigilância Epidemiológica da Raiva
Animal' (preâmbulo do diploma, cujo artigo 1º fixa a competência da
Direcção-Geral da Pecuária para 'orientação das diversas acções integradas'
nesse Programa e fixa também a competência das autarquias locais, das
autoridades sanitárias veterinárias, regionais e concelhias, da Direcção-Geral
das Florestas e das autoridades administrativas, militares e policiais - nºs 2,
3, 4, e 5).
E é no capítulo (o II) respeitante aos cães e na secção
referente ao alojamento que se encontra o questionado artigo 10º, que se
transcreve:
Artigo 10º
(Remoção dos animais por decisão camarária;
processo aplicável)
1 - A permanência de cães em habitações situadas em zonas urbanas fica
condicionada à existência de boas condições de alojamento dos mesmos, ausência
de riscos sob o aspecto sanitário e inexistência nestes animais de doenças
transmissíveis ao homem.
2 - As câmaras municipais, sempre que razões de salubridade ou tranquilidade da
vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de quaisquer cães ou outros
animais de companhia.
3 - A câmara municipal competente, confirmada a existência de situações
referidas no número anterior, notificará o dono ou detentor dos animais para a
remoção dos mesmos no prazo de 8 dias.
4 - Da decisão camarária pode o interessado recorrer, no prazo de 8 dias, para o
tribunal judicial da comarca, indicando logo os factos que fundamentam o recurso
e os meios de prova que pretende produzir.
5 - O recurso será apresentado na câmara municipal, que facultará ao
interessado a consulta de todos os elementos que determinaram a decisão
recorrida e remeterá o processo para juízo no prazo de 5 dias no caso de
manutenção da decisão recorrida.
6 - O prazo para a decisão judicial do recurso é de 8 dias, devendo ser sempre
ouvida a autoridade sanitária veterinária e o médico veterinário assistente.
7 - O juiz só poderá atribuir efeito suspensivo ao recurso se, em função da
prova oferecida e dos pareceres das entidades referidas no número anterior,
concluir que o decurso do prazo para a emissão de sentença, sem execução
imediata da decisão camarária, não implicará a possibilidade de riscos
apreciáveis na salubridade e tranquilidade de quaisquer pessoas.
5. Não oferece dúvidas que todo o procedimento,
administrativo e judicial, se localiza unicamente no âmbito de aplicação desse
artigo 10º, o que desde logo, afasta qualquer ideia de matéria criminal ou
contra-ordenacional de que também cura o Decreto-Lei nº 317/85.
É o próprio Mmº Juiz a quo que o diz num despacho liminar
(ponto 3.4.), mas é de todo evidente essa realidade ao longo do procedimento.
Portanto, e nos exactos limites de aplicação do artigo
10º, nomeadamente o seu nº 4, o ponto de partida está na caracterização da
'decisão camarária' prevista nesse preceito, para se chegar então à censura do
julgado, na óptica da inconstitucionalidade orgânica a que aderiu.
Que o artigo 10º prevê para as câmaras municipais um
poder, vinculado até, de remoção 'de quaisquer cães ou outros animais de
companhia', sempre que 'razões de salubridade e tranquilidade da vizinhança o
imponham', bastando que seja confirmada a existência de tais 'situações', o que
passa pela notificação do 'dono ou detentor dos animais para a remoção dos
mesmos no prazo de 8 dias', é um dado legal indesmentível que decorre dos nºs 2
e 3 do preceito.
Que esse poder foi utilizado, in casu, pela Câmara
Municipal de Sintra, na base das tais razões de 'tranquilidade da vizinhança', é
um dado de facto também indesmentível que decorre da leitura dos autos (v. ponto
3.).
Mas que esse poder se inscreva numa actividade
administrativa, cujo produto típico é um acto administrativo, é o punctum
saliens a resolver.
Na óptica da decisão recorrida, a 'referida decisão
camarária constitui um verdadeiro acto administrativo, tal como vem definido
no artº 120º do Código de Procedimento Administrativo e assim o entendeu o órgão
autárquico ao determinar a notificação nos termos do artº 66º do Código de
Procedimento Administrativo'.
Na perspectiva do Ministério Público recorrente, não visou
'a decisão camarária que ordenou a remoção do animal causador da perturbação
do direito ao sossego e tranquilidade do locatário queixoso a prossecução de um
interesse público ou colectivo - como sucederia se, pelo contrário, estivesse
em causa a defesa da saúde pública, a prevenção ou cessação de riscos
sanitários que afectassem eventualmente uma pluralidade de pessoas - mas antes
a tutela de um direito subjectivo, dirimindo um verdadeiro conflito de
interesses de natureza civil entre dois locatários de um mesmo edifício...'
Quid juris?
6. Ao município, como pessoa colectiva de direito público,
de base territorial, cabe prosseguir, no quadro dos interesses próprios das
populações locais, determinadas atribuições, que a lei fixa, em termos que se
podem caracterizar como um sistema misto: de um lado, uma enumeração
exemplificativa, a nível das diferentes alíneas do nº 1 do artigo 2º do
Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, a chamada Lei das Autarquias Locais,
doravante designada por LAL, com o complemento dos artigos 45º a 50º do Código
Administrativo ainda em vigor; de outro lado, uma cláusula geral, desde logo
definida no nº 2 do artigo 237º da Constituição e também no corpo daquele nº 1:
'É atribuição das autarquias locais o que diz respeito aos interesses próprios,
comuns e específicos das populações respectivas'.
Para Freitas do Amaral, 'o elenco das atribuições
municipais neste momento consta do artigo 2º da LAL e dos artigos 45º a 50º do
CA: no artigo 2º daquela está a cláusula geral, nos artigos 45º a 50º deste a
enumeração exemplificativa'.
E acrescenta:
'Temos, portanto, actualmente, um sistema misto, diferente do que vigorou até à
Lei das Autarquias. Quais são as consequências práticas dessa modificação?
A principal diferença está em que à face do CA, tal como vigorava até ao 25 de
Abril, não havia assuntos que pudessem considerar-se por natureza municipais,
só havia assuntos municipais por determinação da lei, pelo que qualquer acto de
um município que caísse fora das atribuições que expressamente lhe eram
conferidas por lei era nulo. Ao passo que hoje a situação é diferente: mesmo
que a lei o não diga expressamente, e para além de todos os actos que ela
explicite a título exemplificativo, será também das atribuições do município,
em geral, tudo o que disser respeito aos respectivos interesses (artº 2º da
LAL)' - Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1986, Almedina, págs. 458/459.
A propósito, refere António Cândido de Oliveira que a
administração local autónoma deve constituir 'um subsistema, dentro do sistema
da Administração Pública', e não é estática mas dinâmica ('Ela tem uma
tendência expansiva que apenas é limitada por razões de eficácia
administrativa. A administração local autónoma está presente onde estejam
interesses próprios dos respectivos habitantes, embora se aceite que, para
certos assuntos, lhes caiba não o poder de decisão, mas apenas um poder de
participação ou consulta de intensidade variável' - Direito das Autarquias
Locais, Coimbra Editora, 1993, pág. 298).
Ora, reunindo estes elementos todos, é fácil de ver que o
município tem atribuições de defesa e protecção 'da qualidade de vida do
respectivo agregado populacional' (alínea i) do nº 1 do artigo 2º da LAL), tem
atribuições de salubridade pública (alínea d) do mesmo nº 1 e artigo 49º, do
Código Administrativo) e tem ainda atribuições de polícia (artigo 50º do Código
Administrativo, com incidência particular na segurança e salubridade 'das
edificações confinantes com ruas e lugares públicos' - nº 5).
Daqui decorre que é compaginável com este sistema misto do
elenco das atribuições municipais a invocação de 'razões de salubridade ou
tranquilidade da vizinhança' que se descobre ao questionado artigo 10º, nº 2.
Pois que são razões que se podem inscrever na defesa e
protecção 'da qualidade de vida do respectivo agregado populacional', na
salubridade pública e mesmo nas atribuições de polícia.
Com efeito, a 'tranquilidade da vizinhança', que
particularmente interessa à presente hipótese, não pode desprender-se da
finalidade da defesa e protecção da 'qualidade de vida' dos moradores do prédio
em causa - e que a Constituição garante nos seus artigos 65º, nº 1, e 66º, nº
1 - e também não pode desligar-se das atribuições de polícia, tudo no quadro dos
fins públicos que o município tem de prosseguir.
Mesmo que a 'tranquilidade da vizinhança' não constasse
entre a enunciação legal exemplificativa do elenco das atribuições municipais -
e vimos já que não é assim -, sempre teria cabimento na cláusula geral dos
'interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas'.
Alinhando com António Cândido de Oliveira, 'só se pode
falar de autonomia local quando a actividade exercida pelas autarquias locais é
uma actividade de administração pública, nos termos do artº 266º da CRP, e não
uma actividade doméstica (quase privada) resultante de estreitas relações de
vizinhança desligada do conjunto da actividade administrativa desenvolvida a
nível estadual (e regional), como chegou a ser pensada no séc. XIX' (loc. cit.,
pág. 296).
Relações de vizinhança podem dar origem a controvérsias
civis, no plano mesmo de direitos de personalidade protegidos no Código Civil,
nos artigos 70º e seguintes, envolvendo direitos à saúde, ao silêncio e ao
repouso, como é exemplo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de
Março de 1986 (Boletim, nº 355, pág. 356), mas isto não se confunde com o
interesse público subjacente a tais razões de 'tranquilidade da vizinhança',
inseridas no elenco das atribuições cuja prossecução cabe à pessoa colectiva de
direito público que é o município. Onde, pois, surja e se manifeste uma
necessidade colectiva com intensidade bastante, como seja a 'tranquilidade da
vizinhança', aí surge um serviço destinado a satisfazê-la, em nome e no
interesse da colectividade.
'La preocupación por garantizar los derechos e intereses de los particulares
lleva a olvidar que las Administraciones públicas existen para satisfacer
intereses públicos y que por ello son titulares del poder administrativo. Los
intereses públicos superiores a los intereses privados, no podrán atenderse si
la Admi-nistración carece del poder de imponer inmediatamente su voluntad y si
cualquiera puede fácilmente paralizar sus mandatos y discutir indefinidamente
sus decisiones' - diz José M. Boquera Oliver, Estudios sobre el Acto
Administrativo, prólogo da 4ª ed., Civitas 1986.
E nem se diga que releva aqui a posição do Mmº Juiz a quo,
que, num primeiro despacho, a propósito da fixação do valor da causa, considerou
que o recurso 'tem a ver com a tutela dos direitos de personalidade', pois tal
juízo não tem neste momento nenhum alcance vinculativo.
7. Se isto é assim, se o poder conferido pelo artigo 10º,
nºs2 e 3, ao órgão autárquico que forma e expressa a vontade da pessoa colectiva
é um poder administrativo, o seu exercício insere-se na função administrativa,
sendo o seu produto típico um acto administrativo (e é função administrativa 'a
prossecução e realização do interesse público qua tale diferente do da
composição dos conflitos,' na linguagem do acórdão deste Tribunal Constitucional
nº 179/92, publicado na II Série do Diário da República, nº 216, de 18 de
Setembro de 1992).
O acto administrativo tem hoje um conceito legal
consagrado no artigo 120º do Código de Procedimento Administrativo, embora este
preceito não deva ser tomado 'como uma definição legal que corresponda a uma
construção conceptual imperativa' (in Código Anotado, de Freitas do Amaral e
outros, Almedina, 1992, pág. 188). Mas, sempre poderá construir-se, numa
perspectiva finalística, o acto administrativo, emanando do modo de exercício do
poder administrativo, do exercício da função administrativa, como acto jurídico
unilateral praticado por um órgão da Administração Pública, para produzir
efeitos jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto.
'El Ordenamiento jurídico otorga a algunas personas el poder de crear
unilateralmente e imponer a otras consecuencias jurídicas que gozan de la
presunción iuris tantum de legalidad. Lo cual equivale a decir que el
Ordenamiento jurídico concede a algunos sujetos poder administrativo. Cuando
el poder administrativo se convierte en acto, éste es un acto
administrativo'(José M. Boquera Oliver, loc. cit., pág. 22).
É esta realidade que se adapta, contrariamente ao
sustentado pelo Ministério Público recorrente, à previsão do artigo 10º, nºs 2 e
3, pois há aí um comando de um órgão autárquico, prosseguindo e realizando
interesses públicos, relativamente à remoção de um animal de raça canina, com
efeitos jurídicos sobre uma situação individual e num caso concreto.
Com o que se deve caracterizar a 'decisão camarária'
prevista naquele preceito legal como acto administrativo.
8. A partir daqui está aberto o caminho da solução, pois
falta apenas saber se o legislador do Decreto-Lei nº 317/85 tinha credencial
bastante para regular como fez o meio de impugnação da tal 'decisão camarária',
por via de um recurso 'para o tribunal judicial da comarca', concebido como um
puro recurso contencioso ou recurso directo de anulação de acto administrativo
(a apresentar na câmara municipal, que 'remeterá o processo para juízo no prazo
de 5 dias no caso da manutenção da decisão recorrida' (nº 5), talqualmente
estava previsto no artigo 2º do Decreto-Lei nº 256-A/77, de 17 de Junho, e
podendo o juiz 'atribuir efeito suspensivo ao recurso' (nº 7), em termos
equivalentes à então suspensão de executoriedade do acto administrativo, hoje o
meio processual acessório da suspensão da eficácia regulado nos artigos 76º e
seguintes do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho).
E, a resposta só pode ser negativa, à luz do artigo 168º,
nº 1, q), da Constituição, talqualmente se posicionou o Mmº Juiz a quo, pois é
matéria de reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da
República a matéria de organização e competência dos tribunais, gerando
inconstitucionalidade orgânica a violação dessa norma constitucional.
Na verdade, o Decreto-Lei nº 317/85, ora em causa, foi
emitido 'nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição', a
descoberto, portanto, da indispensável autorização legislativa, na medida em
que foi usada a competência que aquela alínea a) consente ao Governo para 'fazer
decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República'.
'É que, como tem sido sustentado em inúmeros acórdãos deste Tribunal (cfr. por
todos os acórdãos nº 139/92 e 242/92, Diário da República, II série, de,
respectivamente, 21 de Agosto e 18 de Novembro de 1982), seja qual for a
amplitude da reserva da competência parlamentar neste domínio, 'o certo é que
dentro dela não pode deixar de se incluir a produção de matéria normativa que
modifique a distribuição jurisdicional do País, em termos de resultar afectada
a competência material dos diversos tribunais''(lê-se no acórdão deste Tribunal
Constitucional nº 343/93).
Como se escreveu no acórdão nº 271/92, deste Tribunal
Constitucional, citado no acórdão nº 805/93, publicado no Diário da República,
nº 2, de 4 de Janeiro de 1994:
'[...] para editar normas que visem modificar as regras de competência judicial
material (ou seja: para modificar as regras atinentes à distribuição das
matérias pelas diversas espécies de tribunais) que o mesmo é dizer pelos
diferentes tribunais dispostos horizontalmente (no mesmo plano), sem que, por
conseguinte, haja entre eles relação de supraordenação e subordinação, o
Governo tem de estar munido de autorização legislativa.
É que, seja qual for o alcance a atribuir à reserva legislativa, no ponto em que
ela tem por objecto a definição de «competência dos tribunais», há-de
incluir-se, aí, sem dúvida, a definição da competência dos tribunais (maxime,
dos tribunais judiciais) ratione materiae' (in Diário da República, II Série, nº
271, de 23 de Novembro de 1992)'.
Ora, no caso da norma desaplicada no despacho recorrido,
sempre se há-de considerar relevante que através dela se verifique modificação
de regras de competência em razão da matéria, afectando tribunais judiciais.
Na verdade, está-se, seguramente, a legislar sobre
competência desses tribunais, incluída na reserva legislativa da Assembleia da
República, quando se edita uma norma, como é, in casu, o nº 4 do artigo 10º, que
comete ao 'tribunal judicial da comarca' competência para conhecer de um típico
recurso contencioso (o 'recurso administrativo' que serviu para designar o
presente processo). E, não importa aqui entrar em consideração com a área de
competência dos tribunais administrativos, à luz do artigo 214º, nº 3, da
Constituição, adiantando-se só que aí 'não se diz que cabe apenas aos tribunais
administrativos e fiscais o julgamento visando o dirimir de conflitos
emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais' (na linguagem do
acórdão deste Tribunal Constitucional nº 372/94, onde se analisa este ponto).
'Nessa reserva de competência, inclui-se também a definição da competência de
cada espécie de tribunal, máxime de cada espécie de tribunal judicial, ratione
materiae - ou seja: inclui-se aí a distribuição das diferentes matérias pelas
diferentes espécies de tribunais dispostos horizontalmente (no mesmo
plano)'(como se lê no citado acórdão nº 805/93).
9. Termos em que, DECIDINDO:
a) Julga-se inconstitucional o nº 4 do artigo 10º do
Decreto-Lei nº 317/85, de 2 de Agosto, por violação do disposto no artigo 168º,
nº 1, q), da Constituição, na parte em que atribui competência ao tribunal
judicial da comarca para conhecer do recurso aí previsto;
b) Nega-se, por consequência, provimento ao recurso.
Lisboa, 15 de Março de 1995
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Sousa e Brito
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida