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Proc. nº 466/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. O Hospital D... requereu execução com a forma sumária contra a Companhia de Seguros G... para pagamento da quantia de 4.200$00
(acrescida de juros moratórios desde a citação à taxa legal de 15%), devida por tratamentos feitos a dois sinistrados em acidentes de trabalho, por cujo pagamento ela é responsável, já que a respectiva responsabilidade civil fora transferida para si. Juntou uma certidão de dívida passada pelo mesmo Hospital, a qual, nos termos do artigo 2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, constitui título executivo.
A petição foi indeferida liminarmente, por despacho de 2 de Maio de 1995, com fundamento em falta de título executivo, em virtude de as normas dos artigos 2º, nº 2, alínea a), e 6º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, terem sido julgadas inconstitucionais.
2. É deste despacho que vêm interpostos os presentes recursos, um pelo Ministério Público, o outro pelo Hospital D....
Neste Tribunal, o Procurador Geral Adjunto concluiu as suas alegações do seguinte modo:
'1º - A certificação da existência de um crédito próprio, emergente de tratamentos prestados em consequência de lesões decorrentes de acidentes de viação, pelos órgãos de gestão dos estabelecimentos hospitalares, contra os possíveis e eventuais obrigados a indemnizar, não representa o exercício de qualquer tarefa ou função jurisdicional, mas a mera criação de um título executivo administrativo.
2º - A criação de tal título administrativo em nada preclude o direito de defesa dos executados, que podem perfeitamente alegar, através da dedução de embargos do executado, todos os meios de defesa que lhes seria lícito deduzir em sede de acção declaratória.
Por seu turno, o Hospital recorrente concluiu assim as alegações que apresentou:
'A) O art. 46º al. d) do CPC dispõe que podem servir de base à execução os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
B) Por disposição especial contida no art. 2º do DL 194/92 de
08/09 o legislador conferiu à Declaração elaborada nos termos aí prescritos força executiva.
C) O título assim constituído em nada viola o princípio constitucional ínsito no art. 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
D) Uma vez que para tal acontecer só as sentenças condenatórias teriam força executiva.
E) O DL em causa e, em especial, as invocadas normas dos arts. 2º al. a), 4º e 6º do DL 194/92, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade material.'
Por sua vez, a Companhia recorrida pronunciou-se no sentido da confirmação do despacho recorrido, invocando, para além dos fundamentos constantes do despacho recorrido, a violação dos princípios da igualdade e da clareza das leis.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
4. O presente recurso, interposto pelo Ministério Público e pelo Hospital D..., ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea a), da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, tem por objecto a apreciação da conformidade à Constituição das normas contidas nos artigos 2º, nº
2, alínea a) e 4º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro.
É a seguinte a redacção desses preceitos:
'Artigo 2º
Exequibilidade das certidões de dívida
1 - As certidões de dívida a qualquer das entidades a que se refere o artigo anterior, por serviços ou tratamentos prestados, são títulos executivos.
2 - São condições de exequibilidade do título:
a) A identificação do assistido e dos terceiros legal ou contratualmente responsáveis, se os houver, nos termos do presente diploma;
b) A menção precisa e individualizada dos serviços prestados;
c) A indicação da quantia exequenda, calculada nos termos do presente diploma;
d) A assinatura do presidente do órgão de administração da entidade credora ou de quem legitimamente o substitua;
e) A autenticação do título de dívida com a aposição do selo branco em uso na instituição credora.'
'Artigo 6º
Dívidas resultantes de tratamentos de sinistrados em acidente de trabalho ou equiparado
1 - Se as dívidas resultarem de tratamento de sinistrados por acidente de trabalho, a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços, no momento da ocorrência do sinistro, independentemente da natureza jurídica do vínculo nos termos do qual eram prestados tais serviços.
2 - Havendo contrato de seguro, a execução corre contra a entidade seguradora respectiva.'
5. As normas transcritas já foram objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, tendo-se sempre concluído pela sua não inconstitucionalidade (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 760/95 e
761/95, D.R., II Série, de 2 de Fevereiro de 1996).
No citado Acórdão nº 760/95 entendeu-se que:
'É (...) na resolução de conflitos relativos a casos concretos - resolução que se faz lançando mão de normas jurídicas ou de critérios legais pré-existentes - que reside o punctum saliens caracterizador da função jurisdicional, a qual, assim, outro interesse público não prossegue, nem realiza, que o da composição desses conflitos. O seu fim específico é, pois, a realização do direito e da justiça.
(...)
Sendo estas as notas que caracterizam a função jurisdicional, logo se vê que a elas se não reconduzem os poderes conferidos pelos artigos 2º,
4º e 6º, do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro, ao 'presidente do órgão de administração' das 'instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde' (ou a 'quem legitimamente o substitua') para a emissão de certidões de dívida por serviços ou tratamentos prestados.
Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou daqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir (declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento.
Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem) àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça.
(...)
A atribuição de uma tal fé pública aos títulos de dívida hospitalar relativas a serviços ou tratamentos prestados, nada tem, de resto, de estranho. Só o teria, se a acção executiva houvesse de ser precedida em todos os casos de uma acção de condenação no termo da qual o juiz declarasse a existência da dívida e dissesse quem o responsável pelo seu pagamento.
No nosso sistema jurídico, isso não é, porém, assim, como este Tribunal sublinhou ainda recentemente no acórdão nº 398/95 (por publicar).
De facto - para além das sentenças condenatórias [cf. artigo
46º, alínea a), do Código de Processo Civil] - podem ser dados à execução os documentos exarados ou autenticados por notário, as letras, livranças, extractos de factura, vales, extractos de factura conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis e, ainda, os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva [cf. artigo 46º citado, alíneas b), c) e d)].
É certo que, instaurar execuções nas condições previstas nas normas aqui sub iudicio, significa, como sublinha o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, fazê-lo um pouco 'às cegas'. E isso pode ter como consequência um proliferar de embargos de executado, nos quais a seguradora se limita - para dizer com aquele Magistrado - 'a alegar a inexistência dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do seu segurado, lançando tal ónus para a entidade exequente, que naturalmente terá sérias dificuldades em o cumprir'. E, então, o desiderato da eficácia na cobrança das dívidas hospitalares, perseguido pelo legislador, acabará por não ser alcançado.
Isso significará que a solução legal encontrada é, afinal, mau direito; não que seja não direito.
Ora, com o controlo de constitucionalidade, visa-se apenas expurgar o ordenamento jurídico do não direito: só este não pode subsistir, por só ele ser incompatível com as normas e princípios constitucionais.'
6. Considerando-se que a função jurisdicional se consubstancia 'numa composição de conflitos de interesses, levada a cabo por um
órgão independente e imparcial, de harmonia com a lei ou com critérios por ela definidos, tendo como fim específico a realização do Direito e da Justiça' (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 182/90, D.R., II Série, de 11 de Setembro de 1990), continua a entender-se que as normas em crise não violam o preceituado no artigo 205º, nº 1, da Constituição.
A passagem de certidões de dívida - a que é atribuída a qualidade de título executivo - não corresponde ao exercício de poderes característicos da função judicial. Ao emitirem tais declarações, os hospitais não resolvem ou compõem eventuais conflitos referentes a relações de crédito.
7. Também não procede a alegada violação do princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição), na medida em que a selecção do terceiro responsável não é arbitrária, fundando-se, antes, em critérios racionais. Tais critérios resultam da existência, ou de uma relação de prestação de serviços (em sentido amplo), ou de um contrato de seguro (artigo 6º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 194/92).
E ainda que se entreveja algum desnivelamento das posições relativas dos dois sujeitos, essa diferenciação é situada numa única fase do processo de cobrança da dívida. Seria, porém, redutor analisar apenas este momento. Uma análise global da situação, na qual se tenha em conta os referidos meios de defesa à disposição do executado na fase executiva, permite concluir que o desnivelamento inicial é minimizado e se torna compatível com a Constituição quando inserido no contexto do processo.
Não existe, portanto, qualquer violação do princípio da igualdade, consagrado constitucionalmente (artigo 13º).
8. Também não tem razão a recorrida quanto à invocada falta de clareza das normas sub judicio, que consubstanciaria uma violação de princípios constitucionais que a recorrida identifica, vagamente, como princípios da precisão e da determinabilidade das leis, sem apontar, aliás, qualquer sede constitucional para os mesmos também.
Na verdade, o que decorre, com suficiente clareza aliás, das normas sindicadas é que as certidões de dívida a que se refere o artigo 1º do Decreto-Lei nº 194/92 têm força executiva (desde que preencham determinados requisitos expressamente previstos no artigo 2º, nº 2, do Decreto-Lei nº 194/92)
e que a execução corre contra aquele a quem o sinistrado prestava os seus serviços ou, no caso de haver contrato de seguro, contra a entidade seguradora respectiva.
Não se vislumbra assim qualquer obscuridade normativa, que pudesse pôr em causa a previsibilidade e a cognoscibilidade postuladas pelo princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição).
III Decisão
9. Ante o exposto, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o despacho recorrido, a fim de ser reformado em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade.
Lisboa, 25 de Junho de 1996 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Maria da Assunção Esteves Luis Nunes de Almeida