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Proc. nº 623/95
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Na 2ª Secção do 3º Juízo Criminal de Lisboa, o Ministério Público deduziu acusação, em artigos de querela, contra A. e B., imputando-lhes a prática de quatro crimes de emissão de cheque sem provisão, cometidos antes de 28 de Março de 1992, previstos e punidos pelos artigos 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927 e pelo artigo
2º do Decreto-Lei nº 182/74, de 2 de Maio.
Por despacho de 10 de Abril de 1992, o Juiz, após receber a acusação e antes de ser realizado o julgamento, ordenou o arquivamento dos autos e declarou extinta a responsabilidade criminal dos arguidos, atento o disposto no artº 2º, nº 4 do Código Penal e tendo o D.L. nº
454/91 de 28. Dezembro descriminalizado a conduta p. e p. pelos artºs 23º e 24º do Dec. 13.004 de 12. JAN. 1927.
2. Deste despacho interpôs o Ministério Público recurso, por dever de ofício, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo concluído que a referência ao elemento 'prejuízo patrimonial' constante do Decreto-Lei nº 454/91, não operou a despenalização de todos os comportamentos anteriores à entrada em vigor do referido diploma, porquanto já na vigência do anterior diploma - o Decreto 13004 -, «o prejuízo patrimonial era elemento relevante para a incriminação, por se mostrar congénito à actuação tipificamente descrita».
O Meretíssimo Juiz a quo manteve o despacho recorrido.
Por Acórdão de 24 de Fevereiro de 1993, a Relação de Lisboa concedeu provimento ao recurso, determinando a substituição do despacho recorrido por outro que desse andamento ao processo.
3. Inconformados, os arguidos recorreram deste Acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Aí, alegaram que, tendo os arguidos praticado os actos de que vinham acusados em datas anteriores a Junho de 1981, lhes são inaplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº
400/82, de 23 de Setembro, bem como pelo Decreto-Lei nº 182/74, de 2 de Maio, esta última porque expressamente revogada pelo Decreto-Lei nº 454/91, sendo pois a sua incriminação feita tão-somente pela versão originária dos artigos 23º e
24º do Decreto nº 13.004. Perante tal redacção originária, concluem que tais normativos não contêm qualquer referência ao elemento 'prejuízo patrimonial', sendo o crime em causa configurado como de perigo.
Confrontados com a prolação, em 27 de Janeiro de 1993, do Acórdão do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça sobre essa matéria, concluem que o mesmo não tem aplicação ao caso dos autos, e que, tal Acórdão,
ao interpretar o artigo 24º do Decreto 13.004, considerando o prejuízo patrimonial como conatural do não pagamento de um cheque sem provisão, viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, contidos no artigo 29º da Lei Fundamental.
Pelo que esse Aresto padece do vício da inconstitucionalidade, não podendo ser aplicado a este caso - artigo 207º da Constituição.
Os arguidos têm direito à aplicação do disposto no artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, porque, exigindo a verificação do prejuízo patrimonial, é-lhes mais favorável e não admite a incriminação.
Em contra-alegações, o Ministério Público defendeu que, ao contrário do alegado pelos arguidos, as suas condutas eram puníveis, ao tempo da sua prática, pelo artigo 2º do Decreto-Lei nº 182/74, de 2 de Maio (que punia o crime de emissão de cheque sem provisão com a pena de dois a oito anos de prisão maior), e, atenta a sucessão no tempo das leis relativas à penalização desse tipo de crime, (os mencionados diplomas que introduziram alterações ao Decreto nº 13.004), só restaria aplicar o regime concretamente mais favorável aos arguidos, de acordo com o artigo 2º, nº 4, do Código Penal, não estando em causa o nº 2 desse mesmo normativo, por não terem as condutas em causa sido eliminadas do número das infracções.
Com referência à alegada inconstitucionalidade do Acórdão do Plenário do Supremo Tribunal de Justiça, entretanto publicado no Diário da República, I Série-A, de 7 de Abril de 1993, como Assento nº 6/93, refere o Ministério Público que os factos imputados aos arguidos eram puníveis como crimes à data da sua prática, tendo continuado a sê-lo pelas sucessivas actualizações aos respectivos preceitos incriminadores, nunca tendo sido descriminalizados, pelo que se não descortina qualquer violação do artigo 29º da Constituição.
Por Acórdão de 5 de Julho de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, tendo considerado que o recorrido Acórdão da Relação ,
decidindo em conformidade com a jurisprudência fixada no Acórdão de 27.1.93 não merece qualquer censura e que não se verifica o vício de inconstitucionalidade invocado pelos recorrentes.
4. Fundamentou-se esta decisão no referido Assento, de 27 de Janeiro de 1993, com o número 6/93, o qual fixou a orientação jurisprudencial pela forma seguinte:
O artigo 11º, nº1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, não criou um novo tipo legal de crime de emissão de cheque sem provisão, nem teve por efeito despenalizar as condutas anteriormente previstas e puníveis pelo artigo 24º do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, apenas operando uma despenalização quanto aos cheques de valor inferior a 5000$00 e quanto aos cheques de valor superior a esse montante em que não se prove que causaram prejuízo patrimonial.
5. Novamente inconformados, interpuseram os arguidos recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. No seu requerimento de interposição, delimitaram o objecto do recurso à norma «constante do artº 24º do Decreto nº 13.004, de 12.1.924, interpretando-a [o Acórdão recorrido] de modo a considerar o prejuízo patrimonial como conatural do não pagamento de um cheque sem provisão, interpretação essa que viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade, contidos no artigo 29º da Lei Fundamental e configura a inconstitucionalidade suscitada nas alegações dos recorrentes para este Supremo Tribunal».
6. Nas suas alegações neste Tribunal, os recorrentes reiteraram a posição anteriormente assumida, e formularam as seguintes conclusões:
1ª - Prejuízo patrimonial é uma diminuição ou lesão que não é conatural à devolução de um cheque.
2ª - Na vigência dos artigos 23º e 24º do Decreto 13004, de 12.01.924, alterados pelo DL 182/74, de 02.05, o prejuízo patrimonial não fazia parte do tipo legal do crime de emissão de cheque sem provisão.
3ª - Interpretar o citado artigo 24º de modo a permitir tal conaturalidade - entre a devolução do cheque e o prejuízo - viola o artigo 29º da Constituição (princípios da legalidade e da tipicidade).
Por sua vez, em contra-alegações, o representante do Ministério Público entendeu dever negar-se provimento ao recurso, podendo ler-se nas respectivas conclusões:
1. A emissão de cheque sem provisão não integrava na vigência dos artigos 23º e 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927, um crime de perigo, antes revestia a natureza de um crime de dano, cuja consumação dependia da ocorrência de um prejuízo patrimonial da vítima.
2. O artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de
13 de Dezembro, continua a configurar a emissão de cheque sem provisão como um crime de dano, pelo que as condutas ocorridas no domínio do direito anterior que ainda não tenham sido objecto de sentença transitada em julgado não podem considerar-se descriminalizadas.
3. Interpretando aquelas normas em conformidade com o atrás exposto, o acórdão recorrido não violou os princípios constitucionais invocados pelos recorrentes, nem quaisquer outros.
7. Corridos os vistos legais, cumpre, então, decidir.
II - FUNDAMENTOS
8. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Tal significa que os recorrentes pretendem que seja apreciada a constitucionalidade de norma efectivamente aplicada na decisão recorrida - in casu, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Julho de 1995 - e cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada pelos recorrentes durante o processo.
No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, indicaram os recorrentes a norma constante do artigo
24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927 (por manifesto lapso de escrita, indicaram 1924 nesse requerimento) como sendo a norma que pretendiam ver apreciada e cuja inconstitucionalidade teriam suscitado durante o processo.
Mas, na verdade, em nenhum outro momento anterior do processo suscitaram tal questão; com efeito, no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, onde pela primeira vez suscitaram uma questão de inconstitucionalidade, reverteram a mesma ao Acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Janeiro de 1993, podendo ler-se nas suas alegações:
De qualquer modo, esse Douto Acórdão, ao interpretar o artigo
24º do Dec. 13.004, considerando o prejuízo patrimonial como conatural do não pagamento de um cheque sem provisão, viola os princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade contidos no artº 29º da Lei Fundamental.
Pelo que esse Aresto padece do vício da inconstitucionalidade
E, noutro ponto, referem ainda:
Deste modo, o Acórdão padece do vício da inconstitucionalidade,...
A inconstitucionalidade determina a sua não aplicação ao caso dos autos - artº 207º da Constituição.
E é apenas no requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, na sequência da decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que os recorrentes suscitam, pela primeira vez, a questão da inconstitucionalidade da norma constante do referido artigo 24º.
Ainda que pretendam, como o fazem, que o Acórdão de 27 de Janeiro de 1993, do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, interpretou o artigo 24º de uma determinada forma, não questionaram a constitucionalidade dessa norma, na interpretação dada, mas antes, e apenas, suscitaram a inconstitucionalidade daquele Assento (e do acórdão da Relação).
Ora, tanto basta para que se conclua que os recorrentes não suscitaram a inconstitucionalidade da norma jurídica que identificam no requerimento de interposição do recurso, durante o processo, isto
é, a tempo e por forma a que o tribunal recorrido pudesse e devesse conhecer e decidir essa matéria antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
No recurso para o STJ, os recorrentes assacaram, ainda, uma inconstitucionalidade ao acórdão da Relação, ou seja, a uma decisão judicial, ao afirmarem que:
Decidindo em contrário, o aliás Douto Acórdão recorrido violou os artigos 23º e 24º do Dec. 13.004 (na primitiva redacção) e os artigos 29º e
207º da Constituição.
Mas em ponto algum suscitaram a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 24º do Decreto nº 13.004, de 12 de Janeiro de 1927, nem o acórdão recorrido do Supremo Tribunal de Justiça apreciou tal matéria.
9. Sempre se dirá, ainda, que a questão colocada pelos recorrentes não configura, em boa verdade, uma questão de inconstitucionalidade normativa, como se afirmou no Acórdão com o nº 2/96,
(publicado no Diário da República, 2ª Série, nº 91, de 17 de Abril de 1996), tirado em caso similar:
Ora, a estratégia argumentativa dos recorrentes não pode iludir o facto de que, no caso, é do mérito de uma interpretação e não da validade constitucional de normas que se trata. Nessa interpretação - a do Supremo Tribunal de Justiça - o prejuízo patrimonial já fazia parte do tipo, e desta determinação de conteúdo não derivam consequências para o plano da constitucionalidade.
Aliás, a pretensa perversão dos princípios constitucionas-penais invocados pelos recorrentes - da tipicidade, da culpa, da não retroactividade da lei penal desfavorável e da presunção de inocência do arguido - não é um resultado daquela determinação de conteúdo do tipo, é antes resultado da distonia que existe entre a interpretação que os recorrentes fazem das normas penais em causa e os efeitos que à sucessão dessas normas liga o Supremo - e que afinal correspondem a uma outra (a sua) interpretação das mesmas normas.
Ou seja, no fundo, o que verdadeiramente se questiona é uma certa operação jurisdicional - operação que, in casu, significaria uma integração do tipo penal - e não um certo sentido da norma, em si mesma considerada.
III - DECISÃO
10. Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta.
Lisboa, 8 de Outubro de 1996 Luís Nunes de Almeida Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa