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Proc. nº 195/95
2ª Secção Relator : Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional :
I CAUSA
1. Em processo comum, na 8ª Vara Criminal da Comarca de Lisboa, foi A, escrivão de direito, condenado pela autoria material de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 424º, nº 1 e por um crime de falsificação, previsto e punido pelo artigo 228º, nºs 1, alínea b), 2 e 3, do Código Penal (referimo-nos sempre à versão anterior ao DL nº 48/95 de 15 de Março) na pena, resultante de cúmulo jurídico, de 3 anos e 9 meses de prisão e
40 dias de multa, reduzida, por aplicação dos perdões decorrentes, respectivamente, das Leis nºs 23/91 e 15/94 de 4 de Julho e 11 de Maio, a 1 ano e 9 meses de prisão.
Nos termos do artigo 66º, nº 1 do Código Penal, foi-lhe ainda imposta a pena acessória de demissão.
1.1. Inconformado, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, discutindo, entre outros aspectos da decisão condenatória, a aplicação da pena de demissão.
Quanto a esta referiu nas conclusões, com correspondência no teor da motivação, o seguinte :
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6. A pena acessória de demissão não podia ser aplicada automaticamente ao recorrente.
7. Uma vez que a mesma não vem referida na pronúncia.
8. Acresce ainda que a pena aplicada é inferior a dois anos de prisão.
9. Pelo que o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 66º, nº 3 do Código Penal e os artigos 30º, nº 5 e 32º, nºs 1 e 5 ambos da Constituição da República.
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Nas alegações produzidas junto do Supremo Tribunal, sempre quanto à pena de demissão, repetiu o essencial do atrás transcrito, imputando à decisão aí recorrida violação do 'disposto no artigo 283º, nº 3 alíneas b) e c) do Código de Processo Penal e artigos 30º, nº 5 e 32º, nº 1 da Constituição da República'.
Não colheu tal entendimento a adesão do Supremo Tribunal que, além da pena principal, manteve a pena acessória de demissão. Quanto a esta, entendeu-se que a omissão na acusação e na pronúncia da eventualidade da sua aplicação não apresentava relevância : 'decisivo (diz-se no Acórdão) é que não há omissão de factos que coonestem a pena acessória aplicada, tendo sido a partir daquelas (referindo-se à acusação e à pronúncia) e das ilações que o julgador legitimamente deles pôde retirar que se conclui pela indignidade e incapacidade do agente para se manter nas suas funções no exercício das quais cometeu os crimes por que foi condenado. 'Entendeu-se, enfim que, assentando a pena de demissão numa valorização de matéria constante da acusação, dispôs o recorrente da possibilidade de a discutir e contraditar em julgamento, tudo se resumindo a uma questão de 'qualificação jurídica' daqueles mesmos factos.
1.2. Reagiu o recorrente a esta decisão com o presente recurso de constitucionalidade, afirmando interpô-lo 'ao abrigo da alínea e) do
(...) artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional' (mais adiante corrigiu o lapso indicando a alínea b)) e acrescentando :
' --------------------------------------- b) O acórdão final de que ora se recorre violou o disposto no artigo 32º nº 1 da Constituição da República.
c) Ao aplicar uma pena que não constava expressamente da acusação desrespeitou as suas garantias de defesa nomeadamente o princípio acusatório estruturante da constituição penal.
d) O recorrente arguiu a inconstitucionalidade de tal decisão na motivação e nas alegações finais do recurso para este Supremo Tribunal-------------------'
Na mesma linha argumentativa se encontram as alegações produzidas junto deste Tribunal, nas quais se lê :
'--------------------------------------- O acórdão recorrido violou, de forma clara e inequívoca, o disposto no artigo
32º, nº 1 da Constituição da República.
Efectivamente, da acusação e da pronúncia não constam de forma expressa nem os factos nem a norma incriminatória em que se apoia a condenação do recorrente na pena de demissão.
Não pode o acórdão recorrido aplicar pena com base em meras ilações ou simples conjecturas.
Não se trata de uma alteração de uma qualificação jurídica mas, verdadeira-mente, da ausência da mesma.
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Ora o acórdão recorrido ultrapassou os limites infringíveis do direito de defesa do arguido ao aplicar a pena em causa nas condições descritas.
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A inconstitucionalidade emergente da aplicação de uma norma de que o STJ estava impedido foi oportunamente suscitada-------------------------------'
Da mesma forma se repete nas conclusões :
' ---------------------------------------
3. Ao aplicar a pena prevista no artigo 66º, nº 1 do Código Penal infringindo o disposto nos citados requisitos legais o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 32, nº 1 da Constituição da República.
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Contra-alegando, pugna o Ministério Público junto deste Tribunal pelo não conhecimento do recurso, por ausência de suscitação de inconstitucionalidade normativa, limitando-se o recorrente 'a imputar às decisões recorridas a violação de preceitos processuais penais e de normas da Lei Fundamental'.
Ouvido o recorrente sobre a questão prévia suscitada (referindo consistir o objecto do recurso 'na interpretação normativa consagrada na decisão recorrida') e colhidos os pertinentes vistos, importa decidir, determinando desde logo se o recurso reune os requisitos possibilitadores do seu conhecimento.
II FUNDAMENTAÇÃO
2. A razão está, com efeito, com o Ministério Público quando fala em carência manifesta dos pressupostos de admissibilidade.
A argumentação do recorrente ao longo do processo (e no relatório que antecede transcreveram-se as passagens pertinentes) constitui um caso paradigmático de total ausên-cia de imputação de qualquer desconformidade constitucional a normas aplicadas nas decisões ou a um concreto sentido ou dimensão interpretativa de qualquer norma utilizada.
A crítica do recorrente foi sempre dirigida, expressamente, às próprias decisões sucessivamente proferidas quanto à demissão, sempre consideradas como violadoras (elas próprias) de preceitos constitucionais, jamais se reportando a normas essa violação.
A Constituição e a LTC falam, como pressuposto do recurso, em aplicação de normas 'cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' (artigos 280º e 70º nºs 1 alíneas b) respectivamente da Constituição e LTC) significando isto (e utilizamos a formulação dos constitucionalistas Gomes Canotilho e Vital Moreira) que:
' O recurso de constitucionalidade não tem por objecto a decisão judicial em si mesma, mas apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional.
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O objecto do recurso não é a própria decisão judicial, por ela supostamente ser ou não ser inconstitucional, mas apenas a parte dela em que considerou inconstitucional (ou não) uma determinada norma aplicável à causa em apreciação no Tribunal.
As decisões dos Tribunais podem evidentemente ser em si mesmas inconstitucionais (por exemplo, a aplicação de uma pena de prisão por um crime para o qual a lei não prevê tal pena); mas uma tal decisão não é recorrível para o TC. O nosso sistema de fiscalização não conhece o recurso para o TC de actos concretos de violação de direitos fundamentais que existe noutros sistemas'
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Coimbra 1993, p.1016).
A situação colocada pelo recorrente encontra-se, assim, fora do
âmbito de intervenção deste Tribunal e tratando-se de uma questão de falta de pressupostos de admissibilidade, um eventual convite nos termos do nº 5, do artigo 75º-A da LTC nada viria adiantar.
Resta-nos, constatada a inadmissibilidade do recurso, proferir uma decisão de não conhecimento.
III DECISÃO
3. Termos em que se decide não tomar conhecimento do presente recurso, fixando-se a taxa de justiça em unidades de conta.
Lisboa,6 de Março de 1996
José de Sousa e Brito Guilherme da Fonsec Bravo Serra Messias Bento Luis Nunes de Almeida