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Proc. nº 22/93
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A., recorrida no presente processo, em que figura como recorrente o Ministério Público, instaurou, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação, em processo comum e com a forma sumária, contra a associação seguradora B.. A autora pediu que a ré fosse condenada a reconhecer-lhe o direito a uma pensão complementar de reforma calculada com base no nível XI de remuneração e, consequentemente, a pagar-lhe a quantia de
128.065$00, acrescida de juros de mora contados desde a data da citação, a título de correcção do montante da pensão complementar de reforma que a ré vinha, efectivamente, pagando.
2. A ré, na sua contestação, defendendo-se por excepção, sustentou que deveriam ser declaradas nulas as cláusulas 78º, 79º e 80º dos Contratos Colectivos de Trabalho para a actividade seguradora publicados no Boletim do Trabalho e Emprego, 1ª Série, nºs 1/82, 1/84 e 3/86, nos quais se prevê, precisamente, uma pensão complementar de reforma (relativamente à garantida pela Segurança Social), a atribuir pelas seguradoras aos seus reformados. A ré fundamentou o vício de nulidade na violação da norma constante da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C/79, de 29 de Dezembro, que vedava aos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho a consagração de benefícios complementares aos assegurados pelas instituições de previdência e concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.
3. No despacho saneador, o juiz conheceu e julgou improcedente a excepção, recusando a aplicação da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, por a considerar materialmente inconstitucional.
Sustentou tal decisão nos seguintes termos:
'O 'direito de contratação colectiva' (ou autonomia colectiva) deve considerar-se como um direito fundamental dos trabalhadores para efeitos de aplicação do regime de direitos, liberdades e garantias. Tendo consagração constitucional na actual e anterior versões da C.R.P. - artigos 56º,3 e 57º,3, respectivamente, com inserção sistemática no Título II da Parte I, é aplicável o disposto no artigo 17º (anterior e actual versão), pelo que, nos termos do nº 2 do artigo 18º (ambas as versões) 'A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos' (que devam considerar-se de igual ou superior valor, acrescentamos nós).
Assim, prejudicada fica a aplicabilidade do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, porque ferida de inconstitucionalidade material, prejudicada ficando a alegada nulidade das cláusulas 78ª, 79ª e 80ª dos C.C.T. para o sector dos seguros (v. Barros de Moura, em Compilação de Direito do Trabalho, Coimbra, 1980, pág. 585 e em A convenção colectiva entre as fontes de Direito do Trabalho, Almedina, Coimbra,
1984, págs. 143 e 144 e 230 e segs.).'
4. A ré interpôs recurso de agravo, com subida diferida, desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo assim as respectivas alegações:
'1 - A proibição dos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho estabelecerem e regularem benefícios complementares dos assegurados pela segurança social, determinada pelo artigo 6º, nº 1, alínea e), do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, não está ferida de inconstitucionalidade material.
2 - Pelo que deverão ser declaradas nulas as cláusulas 78ª, 79ª e 80ª dos CCT para a actividade seguradora, publicados nos BTE, 1ª Série, nºs 1 de 1982, 1 de 1984 e 3 de 1986, por contrariarem a referida norma legal imperativa do Decreto-Lei nº 519-C1/79.
3 - Ao não aplicar a referida norma legal por a considerar inconstitucional o despacho recorrido violou por errada interpretação e aplicação os artigos 18º, nº 2, 56º, nº 4, e 63º, nº 2, da CRP.
4 - O douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que declare nulas as mencionadas cláusulas daqueles instrumentos de regula-mentação colectiva de trabalho, absolvendo-se a ré do pedido.
5 - Ou que mande baixar os autos para se decidir sobre a excepção peremptória alegada, por não ser inconstitucional o preceito legal que prejudicou o seu conhecimento.'
5. Por seu turno, o Ministério Público interpôs recurso obrigatório desse despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição e 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pelo artigo
1º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
6. Nas alegações apresentadas neste Tribunal, o Ministério Público defendeu a confirmação da decisão recorrida, deduzindo as seguintes conclusões:
'1º - O direito de contratação colectiva, previsto nos nºs 3 e 4 do artigo 56º da Constituição, goza do regime genericamente previsto para os direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo 17º da Constituição;
2º - No exercício da liberdade de conformação que, nesta matéria, a Constituição reconhece ao legislador, deve este, ao limitar ou comprimir a plena liberdade de estipulação inerente à autonomia contratual colectiva, respeitar integralmente o estatuído no artigo 18º da Lei Fundamental
- devendo radicar, designadamente, as restrições impostas na salvaguarda de outros direitos ou valores constitucionalmente tutelados.
3º - Não decorre do estatuído no artigo 63º da Constituição que o sistema público, unificado e descentralizado, de segurança social deva obstar ao eventual estabelecimento de regime mais favoráveis os trabalhadores, através do exercício da autonomia contratual colectiva.'
7. Por sua vez, a recorrida A. aderiu às alegações do Ministério Público e propugnou a confirmação da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
'I - Para garantia do exercício do direito à segurança social, em que são especialmente interessados os trabalhadores por conta de outrem, a Constituição impõe a participação das associações sindicais na organização do sistema nacional de segurança social (artigo 63º).
II - A Constituição reconhece igualmente às associações sindicais o direito de contratação colectiva, na defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores que representam (artigo 56º, nºs 3 e 4), ao qual se aplica o regime dos direitos, liberdades e garantias constitucionais (artigo
17º).
III - O exercício do direito de contratação colectiva não pode sofrer restrições, pela via da legislação ordinária, de que resulta ofensa de direitos fundamentais, constitucionalmente consagrados.
IV - O artigo 63º da Constituição não impede que, pela via da contratação colectiva, sejam estabelecidos regimes complementares de segurança social, mais favoráveis aos trabalhadores.'
8. Contrariamente, a ré defendeu a procedência do recurso por entender que a alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, não se encontrava ferida de inconstitucionalidade material. Não apresentando alegações neste Tribunal, deu por reproduzidas, 'com as necessárias adaptações', as que deduziu no âmbito do recurso de agravo que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa.
9. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A
O objecto do recurso
10. A alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº
519-C1/79 - norma que o tribunal recorrido 'desaplicou', ao abrigo do disposto no artigo 207º da Constituição, com fundamento em inconstitucionalidade material
- dispõe o seguinte:
'Artigo 6º
1 - Os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem:
(...)
e) Estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência;
(...)'
A norma transcrita tem um sentido unívoco: proscreve a consagração de benefícios complementares dos garantidos pela segurança social, restringindo, consequentemente, o direito de contratação colectiva. E é, justamente, esta restrição que constitui Leitmotiv da argumentação de inconstitucionalidade deduzida, sucessivamente, pelo tribunal a quo, pelo recorrido e pelo Ministério Público (no Tribunal Constitucional).
11. Entretanto, esta orientação proibicionista veio ser mitigada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro, que alterou a redacção da norma precedentemente transcrita, admitindo a estipulação de prestações complementares das asseguradas pelo sistema de segurança social em duas hipóteses:
'Artigo 6º
1 - Os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho não podem:
(...)
e) Estabelecer e regular benefícios complementares dos assegurados pelo sistema de segurança social, salvo se ao abrigo e nos termos da legislação relativa aos regimes profissionais complementares de segurança social ou equivalentes, bem como aqueles em que a responsabilidade pela sua atribuição tenha sido transferida para instituições seguradoras;
(...)'
O regime originário passou, pois, a constituir agora o regime regra, comportando, todavia, duas excepções (aliás, inaplicáveis no caso vertente).
12. Importa observar que a única norma que constitui objecto do presente processo é a constante da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, na sua versão originária. Foi essa a norma que o tribunal a quo
'desaplicou', com fundamento em inconstitucionalidade material, e que poderia ter aplicado se não tivesse emitido tal juízo.
A posterior revogação da norma em crise só poderia ser relevante se possuísse eficácia retroactiva e fosse susceptível de retirar o interesse no conhecimento do objecto do recurso. Ora, nenhuma destas condições se verifica (o Decreto-Lei nº 209/92 não contém qualquer norma respeitante à sua própria entrada em vigor).
B O direito de contratação colectiva como direito fundamental
13. O direito de contratação colectiva constitui um direito fundamental, cuja titularidade é atribuída aos trabalhadores e cujo exercício é cometido às associações sindicais. Tal direito é consagrado pelo artigo 56º, nºs
3 e 4, da Constituição (essencialmente correspondentes aos artigos 58º, nºs 3 e
4, da versão originária e 57º, nºs 3 e 4, da versão introduzida na 1ª revisão constitucional):
'Artigo 56º
(Direito das associações sindicais e contratação colectiva)
(...)
3 - Compete às associações sindicais exercer o direito de contratação colectiva, o qual é garantido nos termos da lei.
4 - A lei estabelece as regras respeitantes à legitimidade para a celebração das convenções colectivas de trabalho, bem como à eficácia das respectivas normas.'
Uma vez que este artigo se encontra inserido no Título II da Parte I da Constituição, não subsistem hoje dúvidas quanto à qualificação do direito de contratação colectiva como um direito fundamental. Trata-se, na verdade, de um direito dos trabalhadores (Capítulo III) a que é imediatamente aplicável o regime dos direitos, liberdades e garantias, ex vi do artigo 17º da Constituição. Na versão originária da Constituição, a questão decisiva que se colocava era a de saber se o referido direito se deveria classificar como
'direito fundamental dos trabalhadores'.
C A alegada inconstitucionalidade material
14. A alegada inconstitucionalidade material - que fundamentou a recusa de aplicação da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº
519-C1/79 pelo tribunal a quo - resulta de uma pretensa violação do disposto nos artigos 56º, nº 3 (e nº 4), 17º e 18º, nº 2, da Constituição. Neste plano, é relevante a versão actual da Constituição, visto que a decisão recorrida foi proferida em 15 de Setembro de 1992 (já depois de ter entrado em vigor a segunda revisão constitucional, aprovada pela Lei Constitucional nº 1/89, de 8 de Julho).
Na verdade, o vício de inconstitucionalidade abrange, na nossa ordem jurídica, as situações de inconstitucionalidade superveniente, como decorre do disposto no nº 2 do artigo 282º da Constituição (em sede de fiscalização abstracta sucessiva). Deste modo, a questão da inconstitucionalidade material há-de ser julgada ante as normas e os princípios constitucionais vigentes à data em que foi prolatada a sentença recorrida.
15. É indiscutível, em face da versão actual da Constituição, que o direito de contratação colectiva constitui um direito fundamental, a que se aplica o regime do artigo 18º, por força do artigo 17º. Ora, o nº 2 do artigo
18º da Constituição - o único número deste artigo agora em causa - faz depender a limitação ou restrição de direitos, liberdades e garantias da expressa previsão constitucional e da observância de requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade: as limitações ou restrições devem confinar-se ao mínimo requerido para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
No caso vertente, importa averiguar se há uma efectiva limitação ou restrição do direito fundamental e se ela é autorizada pelo nº 2 do artigo 18º da Constituição.
16. É evidente que o direito de contratação colectiva é um direito cujo exercício carece da interpositio legislatoris. Isso decorre, fatalmente, de o próprio texto constitucional dissociar a titularidade da competência para o exercício do direito: trata-se, como se viu, de um direito dos trabalhadores cujo exercício é atribuído às associações sindicais. Assim, o exercício do direito de contratação colectiva depende da regulação legal do processo de negociação, das condições de legitimidade das associações sindicais e da eficácia das convenções (artigo 56º, nºs 3 e 4, da Constituição).
No entanto, a possibilidade de conformação ou regulação do direito de contratação colectiva conferida ao legislador não se confunde com a sua limitação ou restrição, sempre subordinada às exigências do artigo 18º da Constituição (sem olvidar, evidentemente, as dificuldades práticas de tal distinção - cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, pp.
647-8).
17. No caso sub judicio, está em causa uma efectiva limitação ou restrição de um direito fundamental. Não se trata, simplesmente, de criar as condições para o exercício desse direito (conformação ou regulação), mas sim de o negar no âmbito das prestações previdenciais (sobre a distinção entre os conceitos de restrição e conformação, em especial no domínio da auto-regulação privada, cf. Alexy, Theorie der Grundrechte, 1986, pp. 300 a 311).
Este regime - que contraria uma tendência desenvolvida em Portugal, desde a década de setenta, para consagrar prestações complementares das pensões de reforma e dos subsídios de doença, devido às insuficiências do sistema geral de cobertura de riscos sociais (cf. Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 2, Relações Colectivas de Trabalho, 1983, p. 132) - fundamenta-se, seguramente, no artigo 63º, nº 2, da Constituição):
'Incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado, com a participação das associações sindicais, de outras organizações representativas dos trabalhadores e de associações representativas dos demais beneficiários.'
Será este fundamento bastante para se concluir que a norma sindicada respeita - ao limitar ou restringir um direito fundamental - os requisitos de necessidade, adequação e proporcionalidade ínsitos no artigo 18º, nº 2, da Constituição?
18. O desígnio de criar um regime mínimo e igualitário de previdência visa assegurar a subsistência condigna de todos os trabalhadores. Constitui, evidentemente, uma manifestação do Estado-Providência tendente a garantir o direito à segurança social.
Não decorre, porém, desta incumbência do Estado, implícita ou explicitamente, uma proibição de prestações previdenciais privadas. O legislador constitucional não pretendeu excluir, nesta matéria, a regra do favor laboratoris (artigo 13º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49.408, de 21 de Novembro de
1969; cf., em especial sobre a sua aplicabilidade às convenções colectivas de trabalho, Bernardo da Gama Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 1992, p.
257 e ss.) ou consagrar um regime de 'unicidade'. Procurou apenas, como observa nas suas alegações o Ministério Público, assegurar um 'esquema mínimo'.
19. Não se vislumbra, consequentemente, um direito ou interesse que imponha a limitação ou restrição, em prejuízo dos trabalhadores, do direito de contratação colectiva, em matéria de benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência.
Não há, nomeadamente, qualquer analogia entre esta situação e a prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79. Na realidade, esta norma exclui da regulamentação colectiva de trabalho a disciplina das actividades económicas, visando salvaguardar a viabilidade económica e financeira e o bom funcionamento das empresas - interesse que é indispensável ponderar, no conflito com o direito de contratação colectiva.
Também se deve ter como substancialmente diferente a situação analisada pelo Tribunal Constitucional no âmbito do Acórdão nº 94/92 (D.R., II Série, de 18 de Setembro). Neste aresto, tirado com votos de vencido, o julgamento de não inconstitucionalidade da norma contida no nº 1 do artigo 31º do Decreto-Lei nº 372-A/75, de 16 de Julho, baseou-se no reconhecimento de um interesse na uniformização do procedimento disciplinar, que terá por finalidade precípua evitar situações de conflitualidade laboral e social. Estará aqui em causa um interesse público em conflito com o direito de contratação colectiva
(sobre a possibilidade de prevalência do interesse público nestas hipóteses, cf. Barros Moura, A Convenção Colectiva entre as Fontes do Direito do Trabalho,
1984, p. 152).
20. Conclui-se, assim, que a norma constante da alínea e) do nº
1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79 padece de inconstitucionalidade material por violar, conjugadamente, o disposto nos artigos 56º, nºs 3 e 4, 17º e 18º, nº 2, da Constituição.
Tal norma limita ou restringe um direito fundamental de modo desnecessário, inadequado e desproporcional à defesa de outros direitos ou interesses constitucionalmente tutelados.
III Decisão
21. Ante o exposto, decide-se julgar inconstitucional a norma constante da alínea e) do nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro, na sua versão originária, e, consequentemente, negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 11 de Julho de 1996 Maria Fernanda Palma (com declaração de voto) Declaração de voto
Sendo relatora do presente processo, entendi que, para além de materialmente inconstitucional, a norma sindicada padece de inconstitucionalidade orgânica pelas seguintes razões:
1. A classificação do direito de contratação colectiva como direito fundamental implica a inclusão da sua disciplina jurídica na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Com efeito, a alínea b) do nº 1 do artigo 168º da Constituição determina que a matéria de direitos, liberdades e garantias é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo.
Na perspectiva da análise desta reserva de competência em três níveis, segundo um grau de exigência decrescente (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, pp. 670-1), dir-se-á que toda a regulamentação do direito de contratação colectiva é reservada à Assembleia da República (ou ao Governo, mediante a emissão da indispensável credencial legislativa). A reserva não se limita ao regime geral
[alíneas d), e), h) e p) do nº 1 do artigo 168º] ou, de modo ainda menos exigente, às bases gerais do regime [alíneas f), g), n), v) e x) dos mesmos número e artigo].
A esta luz se devem entender os números 3 e 4 do artigo 56º da Constituição, que determinam, respectivamente, que o direito de contratação colectiva é garantido nos termos da 'lei' e que a 'lei' estabelece as regras de legitimidade para a celebração das convenções e de eficácia das respectivas normas.
2. Sendo certo que a inconstitucionalidade orgânica de uma norma se afere pelas normas constitucionais vigentes ao tempo da sua aprovação, importa averiguar se a reserva de competência precedentemente referida abrangia o direito de contratação colectiva aquando da emissão pelo Governo do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro. E esta questão há-de ser esclarecida ante o texto originário da Constituição de 1976, que então vigorava.
Como se viu, o direito de contratação colectiva já era contemplado na versão originária da Constituição de 1976. Todavia, era classificado, sistematicamente, como direito económico, incluído no âmbito dos direitos (e deveres) económicos, sociais e culturais. Assim, não estava inserido no Título II, mas sim no Título III da Parte I (Capítulo II, artigo 58º, nºs 3 e
4).
Simultaneamente, porém, o artigo 17º da Constituição estendia então o regime dos direitos, liberdades e garantias aos 'direitos fundamentais dos trabalhadores'. Impõe-se, por conseguinte, determinar se o direito de contratação colectiva se deveria considerar um direito fundamental dos trabalhadores na versão originária da Constituição de 1976.
3. O conceito de 'direitos fundamentais dos trabalhadores' suscitava então duas interrogações:
a) Todos os direitos dos trabalhadores previstos na Constituição deveriam ser qualificados como fundamentais?
b) Para além desses (ou independentemente até da resposta a dar
à questão anterior), deveriam ser qualificados como fundamentais, numa perspectiva material, direitos dos trabalhadores não previstos na Constituição?
Verdadeiramente, apenas a resposta à primeira pergunta interessa agora para a decisão da causa. Com efeito, a Constituição previa, na sua versão originária, o direito de contratação colectiva. Também não é razoável duvidar de que se tratava de um direito dos trabalhadores, embora o seu exercício fosse cometido às associações sindicais. Subsiste apenas a dúvida sobre a sua qualificação como fundamental.
4. Na vigência da versão originária da Constituição, degladiavam-se, sobre este problema, duas teses:
a) Sustentava a primeira que nem todos os direitos dos trabalhadores consagrados na Constituição seriam fundamentais, atendendo à sua
'estrutura'. Apenas os direitos com estrutura 'análoga' à dos direitos, liberdades e garantias seriam fundamentais. E a analogia só existiria quanto a direitos fundamentais subjectivos de tipo clássico, negativos, directamente invocáveis e aplicáveis. Assim se explicaria, alegadamente, que a alínea e) do artigo 290º da Constituição, na sua versão originária, se referisse, a propósito dos limites materiais da revisão, ao conceito mais amplo de 'direitos dos trabalhadores' [cf. os Pareceres nºs 7/78, 10/78 e 18/78, Pareceres da Comissão Constitucional, vols. 4º, 5º e 6º, pp. 329, 43 e 3, respectivamente, o Parecer de 9 de Fevereiro de 1977 da Comissão de Assuntos Constitucionais, Pareceres da Comissão de Assuntos Constitucionais, vol. I, p. 203 e ss., e, na doutrina, Jorge Miranda, A Constituição de 1976, 1978, p. 169, e Direito Constitucional - Direitos, liberdades e garantias, 1980 (pol.), pp. 18 e 316, e Vieira de Andrade, Direito Constitucional, 1977 (pol.), p. 170].
b) A tese contrária, expendida, na jurisprudência constitucional, pelo Conselheiro Luís Nunes de Almeida, e, na doutrina por Gomes Canotilho, Vital Moreira e João Caupers, propugnava a identificação de todos os direitos dos trabalhadores como direitos fundamentais, chamando a atenção, decisivamente, para a circunstância de a interpretação restritiva já referida tornar incompreensível a referência autónoma a 'direitos fundamentais dos trabalhadores', na versão originária da Constituição. Efectivamente, tal referência seria inútil, nessa visão restritiva, porque os direitos dos trabalhadores classificados como fundamentais de acordo com uma 'analogia estrutural' caberiam, invariavelmente, nos conceitos de 'demais liberdades' e
'direitos de natureza análoga', de que o texto constitucional também se prevalecia (cf. Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 6º, pp. 47-9, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1ª ed.,
1978, pp. 157 e 75, e João Caupers, Os direitos fundamentais dos trabalhadores e a Constituição, 1985, p. 118 e ss.).
5. O direito de contratação colectiva deveria ser entendido, na verdade, como um direito fundamental dos trabalhadores, no âmbito da versão originária da Constituição de 1976. Tal direito caracteriza, decisivamente, o trabalho subordinado como trabalho prestado por pessoas livres, numa sociedade essencialmente liberal e fundada na dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição). A autonomia colectiva representa, efectivamente, uma particular forma de autonomia privada (cf. Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho,
1991, p. 321).
Mesmo admitindo que outros direitos dos trabalhadores se não devessem então classificar como fundamentais, o direito de contratação colectiva haveria de incluir-se nesse domínio, não, propriamente, atendendo à sua estrutura, mas tendo em conta a sua importância relativa. Não faria sentido, ante o princípio democrático, incluir direitos subjectivos menos relevantes, mas imediatamente exercíveis por trabalhadores, na reserva de lei e reconhecer, quanto ao direito de contratação colectiva, a competência própria do Governo.
Aliás, a primeira revisão constitucional viria a reforçar este entendimento, ao incluir o direito de contratação colectiva no âmbito dos direitos, liberdades e garantias consagrados no Título II da Parte I (artigo
57º, nºs 3 e 4), na sequência de uma diferenciação entre 'direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores' e 'direitos e deveres económicos' (que englobam outros direitos dos trabalhadores).
6. Conclui-se, por conseguinte, que a norma sub judicio padece de inconstitucionalidade orgânica, ante o disposto nos artigos 167º, alínea c),
58º, nºs 3 e 4, e 17º da Constituição, na sua versão originária, visto que está inserida num decreto-lei aprovado pelo Governo, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 201º da Constituição (versão originária), no exercício de competência legislativa alegadamente própria.
É certo que este fundamento não foi invocado, na decisão recorrida, para fundamentar a recusa de aplicação da norma. Todavia, o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional a norma em crise com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles cuja violação foi invocada, por força do disposto no artigo 79º-C da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Armindo Ribeiro Mendes (votarei também que a norma julgada inconstitucional estava afectada de inconstitucionalidade orgânica, nos termos da declaração de voto do Srª Relatora) Vitor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto). DECLARAÇÃO DE VOTO
No presente acórdão, o sentido da decisão baseou-se num entendimento da norma questionada a que não posso aderir.
Com efeito, ao excluir da regulamentação colectiva de trabalho matéria respeitante a benefícios complementares dos assegurados pelas instituições de previdência - em concreto estava em causa a figura das prestações complementares de reforma - o legislador não introduz qualquer espécie de restrição do direito de regulamentação colectiva. Muito simplesmente, procede à delimitação negativa do âmbito material da contratação colectiva. Entendo que procedeu a essa delimitação com toda a legitimidade.
A Constituição fornece contributos firmes para a delimitação, positiva e em concreto, do âmbito dos contratos colectivos. Fá-lo quando estabelece os direitos dos trabalhadores no artigo 59º, onde é possível distinguir entre incumbências do Estado e imposições cujos destinatários são as entidades patronais. Em nenhuma das 10 pormenorizadas alíneas desse artigo se encontrarão referências a matérias típicas de segurança social. Ressalva-se a protecção em situações de desemprego (cfr. a alínea e) do nº 1 do artigo 59º. e o nº 4 do artigo 63º), mas trata-se de matéria que não está aqui em causa e sobre a qual o discurso a empreender teria de tomar em conta elementos para aqui irrelevantes.
Compreende-se a razão de ser da delimitação do objecto dos direitos dos trabalhadores a que se procedeu no artigo 59º. É que a segurança social traduz-se numa série de institutos cujos destinatários não são os trabalhadores. Enquanto 'o sistema da segurança social protegerá os cidadãos...'
(cfr. artigo 63º, nº 4), os direitos dos trabalhadores respeitam apenas àquela parte dos cidadãos que sejam também trabalhadores, e obviamente que na qualidade de trabalhadores e enquanto o forem. Na perspectiva da Constituição, direitos dos trabalhadores e direito à segurança social são coisas distintas. Por essa razão, as associações sindicais participarão na organização do sistema de segurança social (nº 1 do artigo 63ª). Não terão o direito de participar entidades patronais, as quais, inversamente, são sujeito necessário dos instrumentos de contratação colectiva. A segurança social relevante do ponto de vista do Estado porque o constitui em sujeito passivo e imediato de prestações não é conformada por meio de instrumentos de contratação colectiva.
Ora é da perspectiva da Constituição e da sua interpretação sistemática que é preciso partir. O direito à contratação colectiva deve ter por objecto matéria que, segundo a Constituição, seja própria dos direitos dos trabalhadores. Só nessa medida o conteúdo dos direitos e obrigações acordados entre sindicatos e entidades patronais merecerá tutela constitucional, como tal qualificada pelo Estado e relevante perante os seus órgãos, a título de objecto constitucionalmente protegido de instrumentos de contratação colectiva. Não quer isto dizer que não reconheça atinências entre a relação jurídica de trabalho e o direito à segurança social. Admito que elas existam mas sucede que, no plano da Constituição, terão uma qualificação que não é aquela que agora lhe foi dada.
Acresce um outro ponto que julgo significativo. Não posso aceitar que a norma julgada inconstitucional tenha pretendido proibir a negociação de prestações previdenciais privadas, ideia que está subjacente ao acórdão. Da disposição questionada resulta apenas que aos acordos obtidos pela via da contratação colectiva na matéria em causa, e nessa parte, não poderá ser reconhecida a eficácia de normas de convenções colectivas de trabalho (cfr. nº 4 do artigo 56º da Constituição).
Por estas razões, a solução encontrada no presente acórdão merece a minha total desaprovação. Maria da Assunção Esteves (vencida nos termos da declaração de voto junta) Declaração de voto
Votei vencida. As normas do artigo 56º, nºs. 3 e 4, da Constituição estabelecem uma reserva de conformação legislativa: o direito de contratação colectiva só tem existência completa na modulação que o legislador lhe confere. Isso implica que o controlo de constitucionalidade seja, aqui, um controlo segundo a máxima de proporcionalidade. E segundo a máxima de proporcionalidade, há-de dizer-se que a norma em apreço não se mostra, pelo próprio conteúdo, dotada de uma eficácia derrogatória capaz de uma negação prático-jurídica das possibilidades gerais da contratação colectiva.
José Manuel Cardoso da Costa (vencido, por entender que, não respeitando a matéria dos benefícios complementares da segurança social, seguramente, ao núcleo 'duro' daquelas para que foi concedida a contestação colectiva, e estando o 'direito' a esta última, para mais, sujeito, na definição do seu preciso
âmbito, a uma interpositio legislatori, este último - o legislador - não ultrapassou, no caso, os seus poderes de confirmação, já que a norma em apreço é susceptível de uma explicação razoável, e não apareceu como anteriormente desproporcionado. Convirjo, assim, no mesmo sentido dos votos dos Exmºs. Conselheiro Vítor Nunes de Almeida e Conselheira Assunção Esteves).