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Procº nº 411/95. ACÓRDÃO Nº 673/96
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
I
1. M... recorreu contenciosamente para o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa da deliberação tomada em 17 de Dezembro de
1988 pelo 25º Grupo Orientador de Estágio para solicitador, deliberação essa por intermédio da qual - baseando-se no nº 4 do artº 18º do «Regulamento do Estágio para Solicitador», elaborado pela Direcção-Geral dos Serviços Judiciários e homologado por despacho do Ministro da Justiça de 15 de Março de 1988 -, em virtude de a recorrente ter obtido na prova escrita de avaliação e classificação dos estagiários nota inferior a dez valores, foi decidido não a admitir à prova oral, consequentemente a considerando eliminada do estágio.
Por sentença de 30 de Maio de 1995, foi o recurso julgado procedente.
Para assim decidir, o Juiz do aludido Tribunal considerou - após concluir que revestia 'a natureza própria dos regulamentos externos' a norma ínsita do nº 4 do artº 18º do citado «Regulamento» (segundo a qual a obtenção de classificação inferior a dez valores na prova escrita acarreta a eliminação do estagiário) - que a circunstância de tal «Regulamento» não indicar a lei que visava regulamentar, tornava essa norma inconstitucional do ponto de vista formal, razão pela qual se recusou a aplicá-la no caso.
Do assim decidido recorreu para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, aqui tendo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto apresentado alegação, em que concluiu:-
'1º - A norma constante do nº 4 do artigo 1º do Regulamento do Estágio para Solicitador, elaborado pela Direcção-Geral dos Serviços Judiciários e homologado por despacho do Ministro da Justiça, de 15 de Março de 1987, é for- malmente inconstitucional, por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição da República Portuguesa, já que tal Regulamento omite integralmente qualquer indicação da respectiva lei habilitante.
2º - Deve, assim, confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
De seu lado, a recorrida não apresentou qualquer alegação.
Cumpre decidir.
II
1. De harmonia com do Decreto-Lei nº 483/76, de 19 de Junho - Estatuto dos Solicitadores - (cfr. artº 50º), a inscrição na Câmara dos Solicitadores é permitida, para além de outros casos que agora não importa analisar, aos cidadãos nacionais maiores de 21 anos que tiverem sido julgados aptos, pelo grupo orientador, no estágio de duração de doze meses, estágio esse que, como é definido no artº 31º, nº 1, se destina 'à aquisição de conhecimentos e de experiência dos actos profissionais e a proporcionar contactos que permitam assimilar em toda a extensão a natureza da função'.
O estágio, conforme estatui o artº 39º, é efectuado sob a orientação imediata de um solicitador com, pelo menos, cinco anos de serviço, e que consta de um quadro para o efeito elaborado pela Câmara dos Solicitadores, sendo a respectiva formação complementar coordenada por grupos orientadores, a funcionar nos distritos judiciais, no Funchal e em Ponta Delgada (cfr. artigos
40º, nº 2, e 42º, nº 1).
Findo que seja o estágio, os diversos grupos orientadores pronunciar-se-ão sobre a aptidão de cada candidato, conforme se comanda no artº 48º, que apresenta a seguinte redacção:-
Art. 48.º - 1. Findo o período de estágio, os grupos orientadores pronunciar-se-ão, por acórdão lavra- do no processo individual, sobre a aptidão de cada candidato.
2. O estagiário, para ser considerado apto,terá de revelar conhecimentos teóricos e práticos relativos às seguintes matérias:
a) Direito civil e processo civil;
b) Direito comercial, fiscal e do trabalho;
c) Direito penal e processo penal;
d) Registos e notariado;
e) Deontologia profissional.
3. O acórdão apreciará, expressa e fundamentadamente, os conhecimentos revelados pelo candidato nessas matérias.
4. Cada membro do grupo pode colher junto dos centros de estágio ou de outras entidades, indicadas ou não pelo candidato, referências que o habilitem a pronunciar-se conscenciosamente.
5. O acórdão é sempre proferido por maioria e o voto de vencido é sempre justificado.
6. O presidente tem voto de desempate.
Para além da transcrita, nenhuma outra norma se contem no falado D.L. nº 483/76 respeitante ao aproveitamento, no estágio, dos estagiários.
2. Em 15 de Março de 1988, o Ministro da Justiça homologou o denominado «Regulamento do Estágio para Solicitador», que foi elaborado pela Direcção-Geral dos Serviços Judiciários e é composto por vinte e um artigos. De entre estes interessam realçar o artº 4º (que prevê a organização, pela Câmara dos Solicitadores, de um curso de formação destinado aos candidatos admitidos ao estágio, curso em que, se não lograrem aprovação, os impede de serem admitido à prova de aptidão), os artigos 13º, 14º, 15º, 16º e
17º (que prevêem a realização de uma prova de aptidão - constituída por uma prova escrita, elaborada e apreciada por um Júri Nacional constituído por um magistrado judicial, um conservador, um notário, um chefe de repartição de finanças e um solicitador, e outra, oral, a efectuar perante cada grupo orientador de estágio -, como forma de 'apurar os conhecimentos teóricos e práticos adquiridos pelos estagiários, por forma a que os grupos orientadores se pronunciem nos termos do artigo 48º do Estatuto dos Solicitadores').
Por outro lado, dispõe-se no artº 18º do citado
«Regulamento»:-
Artigo 18º
(Classificação das provas)
1 - A prova escrita é classificada pelo júri referido no artigo 16º.
2 - A prova oral é classificada pe- los grupos orientadores de estágio.
3 - As provas são classificadas de ZERO a VINTE valores.
4 - A obtenção de classificação inferior a DEZ valores na prova escrita é eliminatória.
Foi precisamente a norma constante do nº 4 do transcrito artº 18º que foi objecto de recusa de aplicação por parte da decisão recorrida, cumprindo, por isso, analisar se o juízo de inconstitucionalidade ali formulado se deve ter por procedente.
3. Em face das disposições constantes do D.L. nº 483/79 e, mais precisamente, do seu assinalado artº 48º, poderia dizer-se que as normas, acima indicadas, do «Regulamento» e, de entre estas, aquela que constitui objecto do presente recurso, contêm disciplina jurídica que naquelas disposições se não encontra, assim configurando o estabelecimento de normação que, por não prevista nestas últimas, se assumiria como inovatória (atente-se, verbi gratia, na consagração de uma prova de aptidão escrita que pode ser eliminatória, apreciada e classificada por um júri cuja composição nada tem a ver com a dos grupos orientadores de estágio, não se encontrando, minimamente, no Estatuto dos Solicitadores, a previsão, quer de uma, quer de outro).
De todo o modo, a norma em apreço, indubitavelmente, tem uma projecção que não tem por alvo a organização de serviços - concretamente os grupos orientadores de estágio - por isso que o que nela é estatuído vai atingir a situação jurídica dos estagiários quanto ao apuramento e decisão da respectiva aptidão.
Poderá, desta sorte, afirmar-se que as citadas normas do
«Regulamento» se caracterizam como contendo uma eficácia jurídica dirigida não unicamente à Administração, pelo que se configuram como normação regulamentar externa inserida num regulamento que, in toto, se poderá considerar como um regulamento de natureza mista, pois que no mesmo igualmente se contêm normas puramente organizatórias que esgotam os seus efeitos no interior do serviço
(cfr. Afonso Queiró, Teoria dos Regulamentos, in R.D.E.S., XXVIII, 5 e segs. e Coutinho de Abreu, Sobre os Regulamentos Administrativos e o Princípio da Legalidade, 99).
3.1. Segundo a decisão recorrida, o «Regulamento» onde se insere o preceito sub iudicio reveste a natureza de regulamento misto e, consequentemente, deveria ele, porque ligado a uma lei que, necessariamente, o precede, citá-la, ex vi do comando constante do nº 7 do artigo 115º da Constituição.
Não merece ao Tribunal censura um tal juízo formulado na decisão impugnada.
Na verdade, suposto que é consentida, em face da lei - in casu o D.L. nº 482/76 - a regulamentação, por banda de um concreto órgão da Administração ou da Câmara dos Solicitadores, das normas que ali prevêem o regime de aferição da aptidão demonstrada pelos estagiários em moldes situados para além do que ali constava, em termos de implicar uma sua boa execução ou de suprir pontos lacunosos voluntariamente assumidos pelo legislador, então sempre exigirá o nº 7 do artigo 115º que o 'diploma' onde se insere essa normação regulamentar cite a lei que permite a sua edição.
Tem de há muito, a este respeito, o Tribunal Constitucional assumido uma jurisprudência segundo a qual a exigência constante daquela norma do Diploma Básico não é dirigida unicamente aos regulamentos do Governo, dos órgãos das Regiões Autónomas ou das autarquias locais, antes abarcando todos os órgãos da Administração a quem a lei confira competência regulamentar, exigência essa que, no fundo, visa que se torne ostensiva e explicitamente garantida a subordinação de toda a actividade administrativo (e, no caso, regulamentar) à lei (princípio da primariedade ou da precedência de lei), deste modo sendo constitucionalmente ilegítimos todos os regulamentos que não observem aquela imposição (cfr., v.g., os Acórdãos números 76/88, publicado na 1ª Série do Diário da República de 21 de Abril de 1988, 268/88, idem, 2ª Série, de 21 de Dezembro de 1988, 196/94, idem, idem, de 19 de Maio de 1994,
319/94, idem, idem, de 3 de Agosto de 1994, 375/94, idem, idem, de 10 de Novembro de 1994, e 457/94, idem, 1ª Série, de 4 de Janeiro de 1995, cujas considerações seria fastidioso aqui repetir; cfr., ainda, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 514 e seguintes, que, expressamente, referem que a dupla exigência de precedência de lei e do dever de citação da lei habilitante 'torna ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os regulamentos que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente este fundamento').
3.2. Assentes estas suposição e parametrização, e porque
«Regulamento» em crise omite totalmente a lei que habilitasse objectiva e subjectivamente a respectiva edição, de concluir é a norma sub specie enferma de desconformidade ao preceituado no nº 7 do artigo 115º da Lei Fundamental
III
Em face do que se deixa dito, este Tribunal:
a) Julga inconstitucional, por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição, a norma constante do nº 4 do artº 18º do «Regulamento do Estágio para Solicitador» elaborado pela Direcção- Geral dos Serviços Judiciários e homologado por despacho de 15 de Março de 1988 do Ministro da Justiça e, em consequência,
b) Nega provimento ao recurso.
Lisboa, 8 de Maio de 1996 Bravo Serra José de Sousa e Brito Messias Bento Luis Nunes de Almeida