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Processo nº 363/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como recorrente A., e como recorrido o Ministério Público, pelos fundamentos constantes da EXPOSIÇÃO do Relator, a fls. 121 e seguintes, que aqui se dá por inteiramente reproduzida - e que mereceu a 'inteira concordância' do Ministério Público, não tendo sido abalada pela resposta do recorrente, que se limita a apelar para o entendimento de que se está 'na presença de uma questão de conhecimento oficioso pelas 'instâncias', não lhe cumprindo forçosamente suscitá-la -, decide-se não tomar conhecimento do recurso e condena-se o recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em cinco unidades de conta. Lx, 26.6.96 Guilherme da Fonseca Bravo Serra José Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Luís Nunes Almeida
Processo nº 363/96
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
EXPOSIÇÃO
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (3ª secção), de 25 de Janeiro de 1996, que negou 'provimento ao recurso, mantendo inteiramente o acórdão recorrido', ou seja, o acórdão do 3º Juízo, 3ª Secção, do Tribunal de Círculo de Coimbra, de 7 de Junho de 1995, que o condenou na pena de dois anos de prisão, como 'autor de um crime de furto qualificado p. e p. nos artigos 296º e 297º, nº 2 , alíneas c) e d), do Código Penal'.
2. No requerimento de interposição do recurso de inconstitucionalidade invoca o recorrente que o 'presente recurso fundamenta-se na alínea b) do nº 1 do Artigo 70º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro' e que 'se pretende ver declarada a inconstitucionalidade da norma estabelecida no artº 433º do
C.P.P., por na aplicação que dela se faz, no Acórdão recorrido, se descortinar violação do disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e nº
5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos'.
E acrescenta-se nesse requerimento:
'Interposto que foi recurso do douto Acórdão, proferido na 1ª Instância, viria o Recorrente a alegar na sua motivação nomeadamente que não existindo, em última análise, na sua opinião, um 'non liquet' quanto à matéria de facto, deveria atendendo-se ao princípio 'in dubio pro reo' ter-se absolvido o arguido.
Tal imposição resulta claramente do comando constitucional estabelecido no Artº
32º da C.R. e igualmente do nº 5 do Artº 14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos que constituem princípios de garantias - Constitucionais -, de defesa do cidadão face à lei penal.
Apreciado que foi o recurso interposto no Superior Tribunal de Justiça, viriam os Senhores Conselheiros considerar que a aplicação daquele princípio não pode ser considerada, uma vez que como tem sido entendimento daquele Supremo, se trata de uma regra sobre prova - matéria de facto (sublinhado nosso) - não podendo por isso
influir em sede de matéria de direito, que é o
único '...facultado por lei...' ao Supremo Tribunal de Justiça nos termos do Artº 433º do C.P.P.
Ora verifica-se que nos termos daqueles artigos: 32º da C.R. e nº 5 do Artº 14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos o arguido tem direito a um duplo grau de jurisdição, no que concerne à matéria de facto.
Analisando o Artº 410º do C.P.P., nomeadamente as alíneas do seu nº 2, verifica-se que o nosso sistema, nessa matéria, não permite a revista alargada, por unicamente se verificar nestes casos a possibilidade da apreciação da matéria de direito relativa aos factos dados como provados.
Deste modo estamos perante o chamado recurso 'per saltum' quando se trata de recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça de Acórdãos proferidos em sede de julgamento por Tribunal Colectivo, o que claramente se mostra inconstitucional face aos artigos 32º da C.R. e nº 5 do Artº 14º do Pacto Internacional supra referido.
O presente recurso é apresentado em tempo, porquanto a referida inconstitucionalidade é não só de conhecimento oficioso - Acórdão do Tribunal Constitucional de 28 de Janeiro de 1992 - B.M.J. 413, 130 ss, como também estando a ser agora arguida o foi implícita e explicitamente na fase de motivação de recurso - isto é, du
rante o processo.
Deste modo devem Vossas Excelências considerar suscitada a inconstitucionalidade do Artº 433º do C.P.P. e, em geral, do chamado sistema de revista alargado.'
3. Não havendo dúvidas que o presente recurso de constitucionalidade vem fundado nº artigo 70º, nº 1, b), da Lei nº 28/82, tal recurso ('das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo') 'pressupõe - como se lê no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 584/96, inédito - a exaustão prévia dos recursos ordinários e ainda que a parte haja suscitado a questão de constitucionalidade antes da decisão recorrida e que nesta se aplique a norma (ou normas) sobre que incide a mesma questão.
Na norma do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
[e na que lhe corresponde, do artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição], a locução 'durante o processo' exprime precisamente o desiderato da suscitação na pendência da causa da questão de constitucionalidade, em termos de essa mesma questão ser tida em conta pelo tribunal que decide.
Esta ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí, a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o 'feito submetido a julgamento' (CRP, artº
207º), só podendo incidir sobre normas relevantes para o caso. O 'interesse pessoal na invalidação da norma' (G. Canotilho e Vital Moreira) só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis.
E é com esta leitura do sistema de controlo concreto das normas e, em particular, do enunciado do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, que o Tribunal Constitucional vem fixando o sentido da locução 'durante o processo'. Esse sentido - afirma-se em jurisprudência pacífica e reiterada - é um sentido funcional, que não formal: a inconstitucionalidade há-de ter sido suscitada não depois se haver esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria, até à extinção da instância, mas em momento em que o tribunal da causa pudesse ainda conhecer da questão (cfr., entre outros, os acórdãos nºs 62/85, 90/85, 94/88,
479/89, D.R., II Série, de, respectivamente, 31- -5-1985, 11-7-1985, 22-8-1988,
24-4-1992, e os acórdãos nºs 439/89 e 253/93, inéditos)'.
Tal significa, em suma, que o pressuposto da suscitação da questão 'durante o processo', faz, pois, recair sobre as partes o ónus de adoptarem uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional.
4. Ora, é aquele pressuposto que falha in casu, como se vai ver, em poucas palavras.
Com efeito, na motivação do recurso apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça o recorrente enunciou como seus fundamentos a 'insuficiência para a decisão da matéria de facto provada', o 'erro notório na apreciação da prova' e a 'medida da pena', mas em parte alguma se referiu a norma do artigo 433º do Código de Processo Penal e não questionou os poderes de cognição daquele Supremo Tribunal. Antes, e só, aludiu ao artigo 410º, nº 2, a) e c) do mesmo Código, em matéria de recurso de revista ampliado, e é a propósito daquela alínea c) ('Erro notório na apreciação da prova') que o recorrente afirmou o que se segue: 'E por assim ser, por se entender que não foi firmada devidamente toda a actividade probatória de modo a responsabilizar o arguido, e ainda no sentido de que o 'non liquet', na questão da prova, deve ser sempre valorado a favor do arguido, entende-se que o princípio 'in dubio pro reo' deve ter a sua aplicação desde que não se mostrem equivocamente
provados os factos - o que salvo o devido respeito e melhor opinião, não aconteceu'.
Depois, nas conclusões dessa motivação, sem qualquer identificação do questionado artigo 433º, o recorrente limitou-se a referir o 'princípio da presunção da inocência estatuído no nº 2 do artº 32º da C.R.' e que ele
'constitui um verdadeiro princípio de prova, abrangendo sem dúvida o princípio
'in dubio pro reo', no sentido de que um 'non liquet' na questão da prova deve ser valorado, sempre, a favor do arguido, o que com o devido respeito, não aconteceu'.
Face a este quadro de motivação e conclusões respectivas, o acórdão recorrido, na parte que interessa, concluiu que 'nem há insuficiência para a verificação de todos os elementos do facto típico subjacente à condenação, nem tão pouco o alegado erro na apreciação da prova' (e acrescenta-se: 'Também, a questão da aplicação do princípio do 'in dubiis pro reo', que vem invocada, não pode ser considerada, visto que e como sempre temos defendido, trata-se de uma regra que rege a prova e que por conseguinte não pode ser directriz no julgamento de direito, o único facultado por lei a este Supremo Tribunal, nos termos do artigo 433º, do Código de Processo Penal').
É esta referência ao artigo 433º que o recorrente
vai buscar para agora questionar a constitucionalidade dessa norma, 'por na aplicação que dela se faz, no Acórdão recorrido, se descortinar violação do disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa e nº 5 do artigo
14º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos'.
Só que nada do que é dito pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade consta minimamente da motivação do recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, o que vale por dizer que ele não cumpriu o ónus de adoptar uma estratégia processual adequada à criação da possibilidade de recurso para o Tribunal Constitucional (e certamente foi só a posição assumida pelo acórdão recorrido e a referência ao artigo 433º que despertou a atenção do recorrente para a questão de constitucionalidade ora posta, quando podia e devia tê-lo feito atempadamente e adequadamente se queria discutir os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça).
Tanto basta para que não se possa conhecer do presente recurso de constitucionalidade, por faltar o aludido pressuposto processual, sendo, pois, simples a questão a decidir.
Registe-se, por último, que, mesmo ultrapassado aquele obstáculo processual, o recorrente não veria acolhida a
sua tese da inconstitucionalidade do artigo 433º do Código de Processo Penal, pois este Tribunal Constitucional tem decidido constantemente que essa norma mostra-se conforme à Constituição (cfr. os acórdãos nº 635/94 e 234/93, publicados no Diário da República, II Série, nºs 9, de 11 de Janeiro de 1995, e
128, de 2 de Junho de 1993, respectivamente, e ainda o acórdão nº 399/ /94).
5. Ouçam-se as partes, por cinco dias, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 78º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
(Guilherme da Fonseca)