Imprimir acórdão
Proc. nº 34/94
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal Judicial da comarca de Caminha o Ministério Público
deduziu acusação, em processo comum e para julgamento com intervenção do
tribunal colectivo, contra (1) J...; (2) P...; (3) 'C.., imputando-lhes a
prática dos seguintes crimes:
a) aos dois primeiros arguidos, como co-autores e em concurso real:
- um crime consumado de fraude na obtenção de
subsídio previsto e punido pelo artigo 36º, nºs 1, alíneas a) e c), 2, 3 e 5,
alínea a), do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro;
- - dois crimes consumados de desvio de
subsídio, previstos e punidos pelo artigo 37º, nºs 1 e 3, do mesmo diploma
legal;
- um crime de fraude na obtenção de subsídio, na forma
tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2 e 74º do Código
Penal e 36º, nºs 1, alíneas a) e c), 2, 3 e 5, alínea a), também do citado
Decreto-Lei nº 28/84.
b) À terceira arguida, além de ser criminalmente responsável pela prática
dos crimes supra-indicados, responde ainda, solidariamente, pelo pagamento das
multas, coimas, indemnizações e outras prestações em que forem condenados os
outros co-arguido, nos termos dos artigos 3º, nº 1, 2º, nºs 1 e 3, 4º e 7º,
todos do referido Decreto-Lei nº 28/84.
*///*
2 - A requerimento dos segundo e terceiro arguidos foi aberta a
instrução, tendo sido suscitadas no seu decurso, além do mais, diversas questões
de constitucionalidade.
Para o segundo arguido, o Decreto-Lei nº 28/84 'é orgânicamente
inconstitucional por ter sido promulgado e referendado depois de decorridos os
120 dias concedidos na Lei nº 12/83, de 24 de Agosto', e por outro lado a
autorização legislativa concedida pela Lei nº 12/83, afronta o artigo 168º, nº 2
da Constituição, pois que 'versando embora sobre matéria extremamente sensível
que contende com direitos e garantias fundamentais, concede ao Governo um
autêntico `cheque em branco', designadamente ao permitir-lhe definir, sem
limitações de qualquer natureza, novos tipos de ilícito criminal e novas penas,
aliás não determinadas na sua espécie nem na sua gravidade, até porque não se vê
que a dosimetria do Código Penal seja susceptível de evitar eventuais arbítrios
na fixação da respectiva moldura abstracta'.
Para a terceira arguida, além das questões de constitucionalidade
suscitadas pelo primeiro arguido, acresce ainda que o Decreto-Lei nº 28/84,
afronta a Constituição 'por violação da competência reservada da Assembleia da
República - cfr. arts. 168º, nº 1, al. c), e nº 2 e 201º, nº 1, al. b) do
diploma fundamental'. Isto porque, 'para além da irredutível indeterminação do
sentido da autorização legislativa, verifica-se ainda que o Governo extravasou
dos limites daquela, mormente na parte em que estendeu a punibilidade da
ilicitude por si definida `ad libitum' às pessoas colectivas, sociedades e meras
associações de facto', com o que 'não só se tipificaram novos tipos de ilícito -
cfr. arts. 36º a 38º do citado Dec.Lei - como também se alargou o âmbito
subjectivo da sua incidência normativa às pessoas colectivas e se estabeleceram
penas específicas a elas aplicáveis - cfr. arts. 3º e 7º - sem que o Governo
estivesse legalmente habilitado para o efeito'.
*///*
3 - Encerrada a instrução, por despacho de 20 de Dezembro de 1993, o
senhor Juiz não concedeu atendimento às questões de constitucionalidade
suscitadas pelos arguidos, pronunciando-os depois pela prática dos factos
constantes da acusação do Ministério Público cuja incriminação por inteiro
acolheu.
Para afastar a impugnação de constitucionalidade ateve-se, no
essencial, à fundamentação seguinte:
A - Quanto à caducidade da autorização legislativa
concedida na Lei nº 12/83
'É inegável que os artºs 36º e 37º daquele diploma contêm matéria da
exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo
(reserva relativa) - artº 168º nº 1 al. c) da Constituição da República
Portuguesa.
O Governo legislou ao abrigo de autorização legislativa conferida pela Lei
nº 12/83, de 24 de Agosto, autorização que caducaria se não fosse utilizada no
prazo de 120 dias.
Como é sabido, a formação de um diploma legal emanado do Governo comporta
várias e sucessivas fases, que decorrem perante órgãos ou entidades diversas,
podendo designadamente apontar-se como datas marcantes as da aprovação em
Conselho de Ministros, a da promulgação pelo Presidente da República e a da
publicação no Diário da República, datas que poderão ser mais ou menos afastadas
entre si e assim, facilmente, algumas delas poderão ser mais ou menos afastadas
entre si e assim, facilmente, algumas delas poderão já ser posteriores ao termo
do prazo de validade de autorização legislativa.
Assim a questão que se suscita é a de saber a qual destes momentos se deve
dar relevância para se concluir se a autorização legislativa foi ou não
tempestivamente utilizada.
Como é entendimento que se tem vindo a acentuar (cfr. os Ac. Tribunal
Constitucional nº 150/92 e 121/93 publicados no D.R. II série, de 28/7/1992 e de
8/4/1993, respectivamente), crê-se seguro que esse momento apenas pode ser o da
aprovação em Conselho de Ministros.
..................................................................
No caso, como se alcança do doc. de fls 1278 emitido pela Presidência da
República, o diploma em questão foi aprovado em Conselho de Ministros em
6/12/1983 e deu entrada na Presidência da República em 23/12/1983, tendo sido,
pois, respeitado, mesmo no entendimento mais exigente, o prazo fixado na Lei
12/83 para autorização legislativa aí concedida.'
B - Quanto à insuficiente definição do objecto, do sentido
e extensão da autorização legislativa contida na Lei nº 12/83
'Os arguidos referidos suscitam ainda a questão da inconstitucionalidade da
própria Lei nº 12/83, por não definir com clareza e nitidez o objecto, o sentido
e a extensão das modificações que vão produzir-se na ordem jurídica.
Se bem se entende a argumentação expendida, o vício residiria no facto de
aquela lei permitir ao Governo `definir, sem limitações de qualquer natureza,
novos tipos de ilícito criminal e novas penas, não determinadas na sua espécie
nem na sua gravidade'.
..................................................................
No caso vertente, a situação é diversa porque na lei de autorização se
balizam, com referência à dosimetria do Cód. Penal, as penas a fixar.
E não se crê que, na definição de novos tipos de ilicitude criminal, a
autorização legislativa não estabeleça quaisquer limites, já que, desde logo,
ela é referida à matéria de `infracções antieconómicas e contra a saúde
pública', conceitos que são naturalmente genéricos e amplos, mas cujos contornos
são definíveis e concretizáveis com o recurso a outras disciplinas.
Exigir que a Assembleia da República detalhasse mais a sua autorização
seria, afinal, exigir-lhe pouco menos que a definição prévia dos tipos legais de
crime a criar.
Entende-se deste modo que a arguição improcede'.
C -A responsabilidade criminal das pessoas colectivas
e equiparadas e o excesso da autorização
legislativa da Lei nº 12/83
'Entende ainda a C... que, na elaboração do Dec.Lei nº 28/84, o Governo
extravasou a autorização legislativa recebida, estendendo a punibilidade da
ilicitude por si definida às pessoas colectivas, sociedades e meras associações.
Crê-se que também aqui carece de razão.
..................................................................
A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, definiu o sentido da autorização que
concedia ao Governo como sendo, quanto às infracções antieconómicas e contra a
saúde pública `a obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e
repressão deste tipo de infracções, nomeadamente actualizando o regime em
vigor'.
No domínio da criminalidade económica a eficácia na prevenção e repressão e
a actualização do regime em vigor passa necessariamente pela responsabilização
penal das pessoas colectivas e sociedades que, cada vez mais, são as
protagonistas da vida social económica em detrimento das pessoas singulares que
se vão esbatendo como seus agentes apenas.
Assim, a responsabilização criminal das pessoas colectivas e sociedades,
expressamente consagrada no Dec.Lei 28/84, mais não é que a natural consequência
de toda essa evolução, sendo com naturalidade abarcada pelo sentido da
autorização legislativa, definidora de uma política criminal económica mais
eficaz e actual.
Se norma houvesse que limitasse a responsabilidade criminal às pessoas
singulares ou, por outra via, que vedasse a responsabilidade criminal das
pessoas colectivas ou sociedades, o diploma em apreço, seria obviamente
inconstitucional.
Não havendo tal norma e sendo, em tese geral, admitida tal responsabilidade
no nosso sistema penal, não se vê motivo para que o legislador do Dec.Lei nº
28/84 devesse estar limitado às pessoas singulares'.
*///*
4 - Deste despacho, sob invocação do disposto no artigo 70º, nº 1,
alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interpuseram todos os arguidos
recurso de constitucionalidade para este Tribunal.
Nas alegações que, conjuntamente depois ofereceram, são formuladas
as seguintes conclusões:
'1ª - O Decreto-Lei nº 28/84 foi publicado ao abrigo da Lei de Autorização
Legislativa nº 12/83.
2ª - Lei que foi aprovada pela Assembleia da República em 13/7/83,
promulgada em 8/8/83, referendada em 9/8/83 e foi publicada no DR I série nº
194, de 24 de Agosto.
3ª - Por sua vez, o citado Decreto-Lei foi aprovado em Conselho de
Ministros com data de 6 de Dezembro de 1983, foi promulgado, referendado,
publicado e entrou em vigor respectivamente em 9, 11 e 20 de Janeiro e 1 de
Março de 1984.
4ª - Sendo que a Lei de Autorização concedia ao governo o prazo de 120 dias
para introduzir a nova disciplina normativa na ordem jurídica.
5ª - Prazo que se iniciou em 14/7/93 e terminou em 10/11/93.
6ª - Donde resulta que a autorização legislativa caducou antes de ter sido
utilizada pelo Governo, seja porque
a) As autorizações legislativas só se consideram utilizadas com a
entrada em vigor do Decreto-Lei delegado ou pelo menos com a publicação deste no
Diário da República ou, quando ainda assim se não entenda, mas sem prescindir,
com a sua promulgação e referenda, cuja falta, aliás, é geradora de inexistência
jurídica.
b) De qualquer modo, nem mesmo a aprovação em Conselho de Ministros
teve lugar dentro do prazo de 120 dias, já que o seu termo inicial deve
contar-se da data da aprovação da autorização pelo Parlamento.
7ª - Quer porque não foi aprovado pelo Governo dentro do prazo de 120 dias
contadas da data da aprovação pela Assembleia da República da Lei nº 12/83, quer
porque (mesmo quando se entenda dever aquele prazo contar-se do dia imediato ao
da publicação da lei nº 12/83 no Diário da República) tanto a sua entrada em
vigor, como a sua publicação, como até a sua promulgação e referenda, ocorreram
posteriormente,
- O Decreto-Lei nº 28/84 na sua generalidade e especificamente os seus
artigos 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, 36º e 37º envolvem inconstitucionalidade
orgânica por violação do disposto no artº 168º. nº 2, da CRP.
Mas não só, pois que,
8ª - O Governo extravasou dos limites normativos fixados na autorização
legislativa, mormente na parte em que definiu novos tipos de ilicitude, fixou
novas penas e estendeu aqueles e estas às pessoas colectivas, sociedades e
meras associações de facto.
9ª - Na medida em que excedeu o âmbito da autorização concedida pela
Assembleia da República, o Decreto-Lei nº 28/84 é orgânicamente inconstitucional
por violar o disposto no artº 168º, nº 1, al. c) da CRP.
10ª - Por último, ao delegar no Governo a competência para simplesmente
`... alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais (...)
definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como
ponto de referência, a dosimetria do Código Penal ...' e em ordem a obter '...
maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções
...' - cfr. corpo e al. a) do artº 1º e al. a) do artº 4º - a Lei de Autorização
nº 12/83 não define suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a
extensão da autorização, configurando-se, pelo contrário, como um 'cheque em
branco' pois permite ao Governo criar 'ad libitum' novos tipos de ilícito e
novas penas.
11ª - Pelo que a Lei nº 12/83 enferma de inconstitucionalidade material e
viola o disposto no artº 168º, nº 2, da CRP'.
Contralegando, o senhor Procurador-Geral Adjunto argumentou
largamente dissentindo das razões defendidas pelos recorrentes, concluindo
depois nos termos seguintes:
'1º - Os artigos 36º, nºs 1, alíneas a), e c), 2, 3 e 5, alínea a), 37º, nºs
1 e 3, 3º, nº 1, 7º, nºs 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, ao
definirem crimes e fixarem penas, e ao estabelecerem a responsabilidade criminal
das pessoas colectivas, versam matéria da exclusiva competência legislativa da
Assembleia da República (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição), tendo o
Governo legislado, ao abrigo da autorização legislativa constante do artigo 1º,
corpo e alínea a), 4º, alínea a) e 5º da Lei nº 12/83, de 24 de Agosto.
2º - Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta
que, antes de expirar o prazo da sua duração, o Governo haja aprovado, em
Conselho de Ministros, o correspondente Decreto-Lei, sendo irrelevante que este
só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além daquele termo, e
iniciando-se a contagem do prazo da autorização apenas com a publicação da lei
de autorização.
3º - Assim, o Decreto-Lei nº 28/84, aprovado em Conselho de Ministros em 6
de Dezembro de 1983 foi-o antes de expirado o prazo de autorização legislativa,
não sendo, por isso, inconstitucionais as normas já referidas.
4º - A Lei nº 12/83, na parte já mencionada, define com suficiente clareza
o objecto, a extensão e o sentido da autorização, cumprindo, assim, os
requisitos exigidos pelo artigo 168º, nº 2, da Constituição.
5º - Ao definir novos crimes e ao estender a responsabilidade criminal às
pessoas colectivas e equiparadas, o Governo manteve-se dentro dos limites
fixados pela lei de autorização legislativa, não tendo legislado a descoberto de
autorização, pelo que as normas objecto do recurso não são organicamente
inconstitucionais por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c), da
Constituição.
6º - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a
decisão recorrida na parte impugnada'.
Os autos correram os vistos legais, mostrando-se agora concluídos
para apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, por um lado, se as normas dos artigos 36º,
nºs 1, alíneas a), b) e c), 2, 3 e 5, alínea a); 37º, nºs 1 e 3; 3º, nº 1 e 7º,
nºs 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/84, e por outro, se a Lei nº 12/83 - artigos 1º,
alínea a) e 4º, alínea a) -, que serviu de suporte, como credencial parlamentar
à aprovação daquele primeiro diploma, dispõe de todos os requisitos
constitucionalmente exigidos.
Embora os arguidos tenham questionado nas peças instrutórias do
recurso outras normas para além das antes referidas, o certo é que, por força da
delimitação do objecto do recurso, delas não cabe conhecer por não terem sido
utilizadas como fundamento normativo da decisão recorrida.
Antes porém há-de dizer-se que, por inverificação dos pressupostos
de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, não pode conhecer-se do
recurso interposto pelo arguido J....
É que este arguido, ao contrário dos demais, não suscitou durante o
processo, nomeadamente durante a instrução, a inconstitucionalidade de qualquer
norma, estando-lhe assim vedada a via de impugnação constitucional.
De todo o modo, esta questão não se reveste de qualquer alcance
prático, porquanto, nos termos dos artigos 74º, nº 2 da Lei nº 28/82 e 402º, nº
2, alínea a) do Código de Processo Penal, a este arguido aproveitarão os efeitos
dos recursos interpostos pelos seus co-arguidos.
Vejamos então.
*///*
II - A fundamentação
A - A alegada caducidade da autorização legislativa
concedida pela Lei nº 12/83
A Lei nº 12/83, de 24 de Agosto, ao abrigo da qual foi aprovado o
Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, entrou em vigor no dia imediato ao da
sua publicação (artigo 6º), valendo a autorização legislativa que comportava,
pelo prazo de 120 dias (artigo 5º).
Ora, porque o diploma delegado só veio a ser publicado no Diário da
República em 20 de Janeiro de 1984, quando haviam transcorrido já, mais de 120
dias sobre a autorização contida na lei delegante, sustentam os recorrentes
ter-se assim verificado violação do artigo 168º, nº 2 da Constituição, com
decorrência da inconstitucionalidade das normas dos artigos 36º e 37º daquele
decreto-lei.
Não lhes assiste razão.
Assinale-se, liminarmente, que as normas questionadas, dada a
matéria a que se reportam - definição de crimes e penas - se inscrevem no âmbito
da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, sendo
por isso vedado ao Governo proceder à sua aprovação a descoberto de autorização
parlamanter.
E, na verdade, ao editar o Decreto-Lei nº 28/84, nele se fez
invocação da delegação legislativa contida na Lei nº 12/83.
A questão está pois em saber, se na data da sua utilização,
semelhante credencial não havia já caducado, importando para tanto averiguar
como se devem contar o início e o termo do prazo de duração fixado nas
autorizações legislativas.
Se quanto ao seu início - dies a quo - não se suscitam dúvidas
relevantes, pois que o prazo da autorização há-de começar a correr a partir da
entrada em vigor da lei que a concede, desde logo porque só a partir dessa data
pode ela ser invocada pelo Governo, já o mesmo não se dirá quanto ao seu termo -
dies ad quem, - quanto ao momento do processo de formação do acto legislativo em
que a autorização se considera utilizada, e portanto, quanto ao momento que deve
ter-se por relevante para saber se a autorização foi ou não invocada em tempo
útil.
Sobre esta matéria existe já uma reiterada e uniforme jurisprudência
do Tribunal Constitucional no sentido de as autorizações legislativas serem
tempestivamente utilizadas quando o Governo tiver aprovado o diploma delegado
antes de expirar o prazo da sua duração, sendo irrelevante que as fases
ulteriores - promulgação, referenda e publicação - venham a ocorrer para além do
termo daquele prazo (cfr. além de outros os acórdãos nº 150/92 e 651/93, Diário
da República, II série, de, respectivamente, 28 de Julho de 1992 e 31 de Março
de 1994).
Naquele primeiro acórdão definiram-se os fundamentos que têm
suportado semelhante orientação jurisprudencial, nos termos seguintes:
'Por um lado, não constituindo a promulgação um acto da competência do
Governo, não é de exigir que ela ocorra dentro do prazo concedido ao Governo
para legislar em determinada matéria.
Por outro lado, e quanto à possibilidade de o Governo antedatar os
diplomas, sempre se poderia estabelecer a presunção de que a sua aprovação
ocorreu na data que deles consta (com admissão de prova em contrário).
Finalmente, deve entender-se que o decreto-lei aprovado dentro do prazo de
autorização legislativa `existe' para o efeito de se considerar respeitado esse
prazo, como `existe' qualquer decreto do Governo enviado ao Presidente da
República para promulgação e que este resolve enviar ao Tribunal Constitucional
para efeito de apreciação preventiva da constitucionalidade de qualquer das suas
normas'.
Também a doutrina, de um modo geral, tem seguido idêntica orientação
(cfr. por todos Jorge Miranda, Funções, órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990,
p. 476 e 477 e 'Autorizações Legislativas', Revista de Direito Público, ano I,
nº 2, 1980, p. 18; António Vitorino, As Autorizações Legislativas na
Constituição Portuguesa, versão policopiada, Lisboa, 1985, pp. 252 e ss.).
Este último autor (ob. loc. cit.) argumentou assim em defesa desta
solução:
'Fica-nos, pois, como mais aceitável a tese da utilização com a aprovação em
Conselho de Ministros. Não só pelo paralelo que se pode estabelecer com a
aprovação parlamentar (a lei considera-se definitivamente aprovada quando o
Parlamento vota o seu texto final em termos globais) mas também porque, sendo a
autorização legislativa um instituto que assenta no relacionamento directo e
especialmente vinculante entre o Parlamento e o Governo, um dado e concreto
Governo, este cumpre o ónus que para ele decorre da lei de autorização com a
aprovação do acto delegado, desonerando-se assim da incumbência que se lhe
encontra cometida pelo lei de delegação, cessando aí, nessa aprovação, a sua
responsabilidade quanto à efectiva utilização da autorização conferida'.
Também agora se perfilha igual entendimento, em termos de se
concluir que o acto relevante do iter legislativo para o efeito de avaliar do
uso atempado de uma autorização parlamentar há-de ser a data da aprovação do
respectivo decreto-lei e não o da sua promulgação, referenda ou publicação.
E assim sendo, terá de concluir-se que as normas dos artigos 36º e
37º do Decreto-Lei nº 28/84, aplicadas no despacho que pronunciou os arguidos,
não sofrem de inconstitucionalidade orgânica por débito de competência
legislativa do Governo no momento da sua aprovação. Cfr. a propósito da eventual
inconstitucionalidade orgânica deste mesmo diploma o acórdão nº 651/93, Diário
da República, II série, de 31 de Março de 1994.
B - A alegada insuficiência na definição do sentido e
extensão da autorização legislativa concedida pela
Lei nº 12/83, maxime, no que respeita aos artigos
1º, alínea a) e 4º, alínea a)
1 - A Lei nº 12/83, na parte que aqui importa reter, dispunha assim:
Artigo 1º
É concedida ao Governo autorização legislativa para alterar os regimes em
vigor, tipificando novos ilícitos penais e contravencionais, definindo novas
penas, ou modificando as actuais, tomando para o efeito, como ponto de
referência, a dosimetria do Código Penal, nas seguintes áreas:
a) Em matéria de infracções antieconómicas e contra a
saúde pública;
.....................................................
Artigo 4º
O sentido das autorizações constantes dos artigos anteriores é:
a) Quanto às infracções antieconómicas e contra a saúde pública, a
obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de
infracções, nomeadamente actualizando o regime em vigor;
.................................................
Sustentam os recorrentes que estas normas não definem
'suficientemente (nem sequer minimamente) o sentido e a extensão da autorização,
configurando-se, pelo contrário, como um `cheque em branco' pois permite ao
Governo criar `ad libitum' novos tipos de ilícito e novas penas'.
Será efectivamente assim?
*///*
2 - Em conformidade com o disposto no artigo 168º, nº 2 da
Constituição, 'as leis de autorização legislativa devem definir o objecto, o
sentido, a extensão e a duração da autorização, a qual pode ser revogada'.
A versão originária da Constituição no seu artigo 168º, nº 1, no
quadro dos limites materiais, apenas se referia ao objecto e extensão, vindo a
exigência do sentido da autorização a ser aditada na revisão da 1982, com o que
se sublinhou a autonomia deste elemento substancial face ao significado dos
demais, reforçando-se também o grau de rigor na determinação dos respectivos
limites.
Acolheu-se assim a experiência de outros ordenamentos
constitucionais onde tinha assento, já há muito, o princípio da especialidade
das delegações legislativas (cfr. Lei Fundamental de Bona, artigo 80º e
Constituição Italiana, artigo 7º).
Este Tribunal, ao longo de uma reiterada e uniforme jurisprudência -
coincidente aliás com a doutrina mais autorizada - tem vindo a definir os
contornos de delimitação e condicionamento do âmbito das leis de autorização,
cabendo agora recordar, tão somente, a linha argumentativa ali utilizada, que
por inteiro aqui se perfilha e mantém.
Seguindo tal orientação, dir-se-á que o objecto constitui o elemento
enunciador da matéria sobre que versa a autorização, a extensão especifica qual
a amplitude das leis autorizadas e através do sentido são fixados os princípios
base, as directivas gerais, os critérios rectores que hão-de orientar o Governo
na elaboração da lei delegada.
Este último elemento de condicionamento substancial constitui já,
não um limite externo, definidor dos contornos da autorização, mas um verdadeiro
limite interno à própria autorização, pois que é essencial para a determinação
das linhas gerais das alterações a introduzir numa dada matéria legislativa.
Assim sendo, a autorização há-de conter os princípios, as normas
fundamentais que concedem unidade lógico-política à disciplina a editar pelo
Governo, e há-de estabelecer também as directivas, reconduzíveis à determinação
das finalidades a que aquela disciplina tem de adequar-se.
E deve sublinhar-se com especial destaque, que se o sentido da
autorização não tem de exprimir-se em abundantes princípios ou critérios
directivos (que levados às últimas consequências poderiam até condicionar por
inteiro em termos de conteúdo o exercício dos poderes delegados), deverá, no
mínimo, como condição da sua própria verificação, ser suficientemente
inteligível a fim de poder operar como parâmetro de aferição dos actos delegados
e, consequentemente, como padrão de medida por parte do legislador delegado do
essencial dos ditames do legislador delegante (cfr. por todos, os acórdãos nºs
107/88 e 70/92, Diário da República, respectivamente, I série, de 21 de Junho de
1988 e II série, de 18 de Agosto de 1992).
Ora, à luz do entendimento jurisprudencial que vem sendo afirmado
por este Tribunal, haverá de dizer-se que a Lei nº 12/83, nas normas sob
sindicância, não colide com o texto constitucional.
Com efeito, tanto os elementos enunciadores da matéria sobre que
versa a autorização, como a amplitude a revestir pelas leis delegadas, isto é, o
sentido e a extensão da autorização, se mostram suficientemente explicitadas no
artigo 1º, alínea a) da respectiva lei, quando ali se habilita o Governo, no
domínio da 'matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública' a
'alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos penais e
contravencionais, definindo novas penas, ou modificando as actuais, tomando para
ao efeito, como ponto de referência, a dosimetria do Código Penal'.
E o mesmo deverá afirmar-se relativamente aos princípios gerais, aos
critérios rectores a que a legislação autorizada havia de se conformar e
obedecer.
Ao definir o sentido da autorização relativa às infracções
antieconómicas e contra a saúde pública em termos de aquele se traduzir na
'obtenção de maior celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de
infracções, nomeadamente actualizando o regime em vigor' a Assembleia da
República instruiu o Governo com uma directiva suficientemente perceptível
quanto à 'orientação política da medida legislativa a adoptar', e quanto aos
valores, os bens jurídicos e os interesses que o legislador delegado deverá
tutelar com a criminalização daquelas condutas.
Ao contrário do que vem sustentado pelos recorrentes, as indicações
constantes da lei delegante, não constituindo propriamente um exemplo
paradigmático do modo como deve ser traduzido o sentido das autorizações
legislativa, fornecem todavia ao Governo os critérios de delimitação substancial
indispensáveis à respectiva concretização legislativa, como aliás foi
implicitamente reconhecido no debate parlamentar que antecedeu a aprovação da
Lei nº 12/83, muito em particular nas intervenções dos senhores deputados
António Vitorino, Costa Andrade e Magalhães Mota (cfr. Diário da Assembleia da
República, I série, nº 21, de 14 de Julho de 1983, pp. 884, 888 a 890 e 892 e
893).
C - Quanto ao alegado excesso de autorização do Decreto-Lei
nº 28/84, na parte respeitante à definição dos crimes e à
fixação das penas a que se reportam as normas dos artigos
36º e 37º, bem como a sua extensão às pessoas
colectivas e equiparadas por força
dos artigos 3º, nº 1 e 7º, nºs 1 e 4 do mesmo diploma
1 - O Decreto-Lei nº 28/84, nos artigos 36º e 37º definiu,
respectivamente, os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e
desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, e fixou as respectivas
penas.
A propósito da criação destes dois novos tipos legais de crime, na
exposição preambular daquele diploma, escreveu-se assim:
'Entre os novos tipos de crimes incluídos neste diploma destacam-se a fraude
na obtenção de subsídios ou subvenções, o desvio ilícito dos mesmos e a fraude
na obtenção de créditos, conhecidos de outras legislações, como a da República
Federal da Alemanha, os quais, pela gravidade dos seus efeitos e pela
necessidade de proteger o interesse da correcta aplicação de dinheiros públicos
nas actividades produtivas, não poderiam continuar a ser ignoradas pela nossa
ordem jurídica'.
Ora, quando a Assembleia da República autorizou o Governo, em
matéria de infracções económicas e contra a saúde pública a 'alterar os regimes
em vigor' e a tipificar 'novos ilícitos penais e contravencionais, definindo
novas penas ou modificando as actuais', com o objectivo de se alcançar 'maior
celeridade e eficácia na prevenção e repressão deste tipo de infracções'
facultou-lhe os instrumentos de política legislativa necessários 'a uma rápida
revisão dos tipos e penas em matéria de criminalidade nos domínios económicos,
financeiro e de defesa do consumidor, de modo a adequá-los a novas modalidades
de delinquência e à gravidade das infracções praticadas' (cfr. Exposição de
motivos da Proposta de Lei nº 20/III, Diário da Assembleia da República, II
série, nº 18, de 9 de Julho de 1983).
E assim sendo, ao definir os novos tipos legais de crime que se
contêm nas normas dos artigos 36º e 37º do Decreto-Lei nº 28/83, o Governo não
'extravasou os limites normativos fixados na autorização legislativa', nem
desrespeitou o seu sentido, limitando-se a concretizar uma directiva que nesta
seguramente se continha.
*///*
2 - Os artigos 3º, nº 1 e 7º, nº 1 e 4, do Decreto-Lei nº 28/83, que
dispõem sobre a responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas e
sobre as penas que lhe são aplicáveis, rezam assim:
Artigo 3º
(Responsabilidade criminal das pessoas colectivas
e equiparadas)
1 - As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são
responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas
pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
........................................................
Artigo 7º
(Penas aplicáveis às pessoas colectivas e equiparadas)
1 - Pelos crimes previstos neste diploma são aplicáveis às pessoas colectivas
e equiparadas as seguintes penas principais:
a) Admoestação;
b) Multa;
c) Dissolução
........................................................
4 - Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 1 000$ e 100.000$, que o
tribunal fixará em função da situação económica e financeira da pessoa colectiva
ou equiparada e dos seus encargos.
........................................................ .
Instituiu-se, deste modo, a responsabilização criminal das pessoas
colectivas e equiparadas pelas infracções anti-económicas e contra a saúde
pública previstas naquele diploma, nomeadamente, pelos crimes a que se reportam
os artigos 36º e 37º.
Sustentam os recorrentes que ao assim se disciplinar esta matéria se
incorreu no vício de excesso no uso da autorização legislativa, pois que, não se
fazendo referência expressa na lei delegante à responsabilidade criminal das
pessoas colectivas, estava vedado ao Governo proceder à sua criminalização.
Todavia, não se tem por verificado qualquer desbordamento das normas
em causa relativamente ao quadro de directivas parlamentares que as delimitam,
nem tão pouco se julga verificado um outro vício não explicitamente invocado
pelos recorrentes, qual seja o de um eventual impedimento constitucional à
responsabilização criminal das pessoas colectivas.
Vejamos ambas as questões.
*///*
3 - Contrariamente ao que, décadas atrás, dispunha de um
generalizado beneplácito doutrinal, hoje em dia a responsabilidade criminal das
pessoas colectivas é admitida por grande parte dos autores nacionais e
estrangeiros, dispondo também de consagração no nosso ordenamento.
Ainda no domínio da vigência do Código Penal de 1886, no qual
vigorava o princípio de que só a pessoa física, individualmente considerada,
podia ser sujeito activo de infracções criminais (artigos 26º e 28º), tiveram
afloramento diversas excepções ao velho princípio societas delinquere non
potest, como bem se alcança do artigo 3º do Decreto-Lei nº 41204, de 24 de Julho
de 1957, (diploma que no domínio das infracções contra a economia antecedeu o
Decreto-Lei nº 28/84, vindo por este a ser expressamente revogado) onde se
prescrevia que 'as sociedades civis e comerciais são solidariamente
responsáveis pelas multas e indemnizações em que forem condenados os seus
representantes ou empregados, contanto que estes tenham agido nessa qualidade ou
no interesse da sociedade, salvo a prova de que procederam contra ordem da
administração'. Embora não se previsse, autonomamente, a responsabilidade
criminal das pessoas colectivas, sujeitavam-se estas, dentro de certos
condicionalismos, a uma responsabilidade solidária com os seus representantes ou
agentes pelo pagamento das multas e indemnizações impostas a estes últimos pelo
cometimento de infracções contra a economia nacional.
O Código Penal de 1982, veio entretanto trazer, relativamente ao
quadro normativo antecedente, uma manifesta alteração de perspectiva.
No artigo 11º, subordinado à epígrafe - carácter pessoal da
responsabilidade - dispõe-se no seu nº 2 que 'salvo disposição em contrário, só
as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal'.
Afirma-se assim o princípio da individualidade da responsabilidade
criminal, mas admite-se a existência de excepções, pensadas precisamente para o
alargamento da responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
Como se pode verificar dos trabalhos preparatórios do Código Penal,
aquando da discussão do artigo 8º do Projecto (correspondente ao artigo 11º do
Código), depois de acentuar que a punição tem uma base ética assente numa ideia
individual, Eduardo Correia reconheceu que 'em homenagem a razões particulares
e, em todo o caso, excepcionais -, pode admitir-se que haja lugar à aplicação de
certas reacções a sociedades ou outras pessoas colectivas, reacções que podem
ter a natureza de penas ou medidas de segurança' (Actas das Sessões da Comissão
Revisora do Código Penal, parte geral, pág. 110).
Em sentido similar se pronunciou Figueiredo Dias quando, a propósito
da ilicitude do facto, comentou aquele preceito do Código Penal nos termos
seguintes:
'Trata-se, à primeira vista, da consagração do princípio, antigo e
respeitável, da individualidade (ou individualização) da responsabilidade
criminal; princípio que aliás se considerava já contido no artigo 28º do velho
código a que a doutrina ainda hoje dominante continua a ver fundado na
incapacidade jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas
colectivas. Mas não pode ser esse seguramente nem o sentido, nem a justificação
do preceito. Se o fosse, se o princípio da individualização da responsabilidade
se encontrasse inscrito na natureza das coisas, não teria sentido a ressalva de
disposição em contrário. Esta só se compreende quando se vê naquele princípio
uma pura opção normativa do legislador, que não um suposto ôntico a ele
previamente imposto. Por isso, se me á permitido dizê-lo, vejo eu neste artigo
11º, a confirmação da minha ideia já antiga e segundo a qual é viável e adequado
considerar as pessoas colectivas - através de um processo de pensamento
filosófico analógico - capazes de acção e de culpa jurídico-penais'
(Pressupostos da punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa', Jornadas
de Direito Criminal O novo Código Penal Português e Legislação Complementar,
Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1983, pp. 50 e 51).
Este mesmo autor, em um outro estudo, depois de recordar que o
princípio da individualidade da responsabilidade penal, tornado praticamente em
dogma na transição do século XVIII para o século XIX - à luz, sobretudo, das
chamadas 'teorias da ficção' sobre a essência das pessoas morais - passou a ser
discutido a partir do Congresso Internacional de Direito Penal de Bucareste
(1929), em nome da convicção de que as exigências programáticas da política
criminal devem passar à frente dos preconceitos filosóficos, sustenta que 'se,
em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo imperiosa
necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal
secundário' não se vê então 'razão dogmática de princípio a impedir que elas se
considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícito respectivos'.
E logo se acrescenta não ser 'impensável ver nas pessoas colectivas
destinatárias passíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz. Certo que,
na acção como na culpa, tem-se em vista um `ser livre' como centro ético-social
de imputação jurídico-penal e aquele é o homem individual. Mas não deve
esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem
individual, `obras da liberdade' ou `realizações do ser-livre'; pelo que parece
aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados - de acordo com o
que poderá chamar-se, segundo Max Müller, o princípio da identidade da liberdade
- ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais de
imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim, as
pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o ser-livre
se exprime' (cfr. 'Para uma dogmática do direito penal secundário', Direito e
Justiça, vol. IV, 1989/1990, pp. 7 e ss.).
Entre nós, na actualidade, o princípio da responsabilidade penal
das pessoas colectivas não é gerador de particular disputa doutrinal, merecendo
um quase generalizado consenso entre os autores (cfr. entre outros, Lopes Rocha,
'A responsabilidade penal das pessoas colectivas - Novas perspectivas', Direito
Penal Económico, p. 162; José de Faria Costa, A responsabilidade jurídico-penal
da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a autoridade nas pessoas
colectivas à luz do direito penal), Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano
2º, 4º, Outubro-Dezembro, 1992, pp. 537 e ss. e O Perigo em Direito Penal,
Coimbra, 1991, pp. 447 e ss.).
E no plano legislativo, no seguimento da evolução doutrinal iniciada
antes ainda da aprovação do Código Penal mas que conheceu então assinalada
expressão, foram publicados diversos diplomas que criminalizam determinadas
condutas dos seus órgãos ou representantes.
Assim sucedeu, nomeadamente, nos seguintes casos: artigo 7º do
Decreto-Lei nº 630/76, de 28 de Julho (ilícitos no domínio das operações
cambiais); artigos 21º do Decreto-Lei nº 187/83, de 13 de Maio, 32º e 33º do
Decreto-Lei nº 424/86, de 27 de Dezembro e 7º do Decreto-Lei nº 37-A/89, de 25
de Dezembro (todas referentes a infracções fiscais aduaneiras).
A consagração da responsabilidade penal das pessoas colectivas
operada pelo Decreto-Lei nº 28/84, não constitui qualquer inovação 'fora do
sistema', traduzindo-se, ao contrário, em mera aplicação de um princípio vigente
no âmbito da matéria a que aquele diploma se reporta.
A autorização legislativa concedida pela Assembleia da República
através da Lei nº 12/83, em matéria de infracções antieconómicas e contra a
saúde pública, credenciava o Governo a alterar os regimes em vigor, e a
tipificar novos ilícitos penais, com o objectivo de se alcançar maior celeridade
e eficácia no combate a esta específica criminalidade.
Ora, 'provindo hoje as mais graves e frequentes ofensas aos valores
protegidos pelo direito penal secundário, em muitos âmbitos, não de pessoas
individuais mas colectivas, a irresponsabilidade directa destas significaria
sempre um seu inexplicável tratamento privilegiado perante aquelas' (Figueiredo
Dias, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nºs 3716 a 3720), por certo que
se o decreto-lei delegado não consagrasse, como consagrou, a responsabilidade
criminal das pessoas colectivas e equiparadas, não teria utilizado
integralmente, em todo o alcance do seu sentido, aquela autorização legislativa.
E assim sendo, há-de concluir-se que o Governo, ao estender às
pessoas colectivas e equiparadas a responsabilidade criminal dos crimes
definidos no Decreto-Lei nº 28/84, nomeadamente nos artigos 36º e 37º, não
ultrapassou os limites contidos na lei de autorização.
*///*
4 - Afirmou-se em passo anterior não existir obstáculo
constitucional na atribuição às pessoas colectivas de responsabilidade criminal.
Cabe agora justificar as razões deste entendimento.
Acompanhando o pensamento dos autores citados, particularmente de
Figueiredo Dias (cfr. Jornadas, cit.) dir-se-á que no artigo 11º do actual
Código Penal não se consagrou o princípio da individualização da
responsabilidade criminal em termos de dele derivar a incapacidade
jurídico-penal, ou só de acção ou também de culpa, das pessoas colectivas. E não
pode ser esse seguramente nem o sentido nem a justificação do preceito, pois
que, a ser assim, a achar-se aquele princípio inscrito na natureza das coisas,
não teria explicação a ressalva da locução 'salvo disposição em contrário' que
ali se contém por forma a proibir a conclusão de que só as pessoas singulares
são susceptíveis de responsabilidade criminal. O excepcionamento da 'disposição
em contrário' só se poderá compreender quando se vê no princípio da
individualização uma pura opção normativa do legislador e não já um suposto
ôntico a ele previamente imposto.
Ora, quando se conclua, em sede político-criminal, pela conveniência
ou imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito
penal secundário, não se vê razão dogmática de princípio a impedir que elas se
considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícitos respectivos. A tese contrária
'só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do
conceito de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo
tipo-de-ilícito exigências normativas que o conformem com 'uma certa unidade de
sentido social'. Tão pouco 'parece impensável ver nas pessoas colectivas
destinatárias possíveis do juízo de censura em que a culpa se traduz'.
E isto porque, em certos domínios especiais e bem delimitados,
parece aceitável que ao homem individual possam substituir-se, como 'centros
ético-sociais de imputação jurídico-penal', as suas obras ou realizações
colectivas e, assim, as pessoas colectivas em que o ser livre se exprime.
E há-de dizer-se que a toda esta retórica argumentativa não se opõe
a Constituição, pois que não existe norma ou princípio constitucional a impedir
o legislador de prever, no domínio dos crimes antieconómicos e contra a saúde
pública (os que aqui importa considerar), a responsabilidade criminal das
pessoas colectivas ou equiparadas.
E as razões invocadas em defesa da responsabilização criminal das
pessoas colectivas em direito penal secundário valém também, no essencial, para
demonstrar a sua conformidade constitucional.
Hoje em dia, as mais graves e frequentes ofensas aos valores
protegidos pelo direito penal secundário provêm de pessoas colectivas existindo
uma imperiosa necessidade, em sede político-criminal, de criminalizar
determinadas condutas imputadas aos seus representantes.
E esta criminalização não encontra impedimento irremomível ditado
pela dogmática do direito penal e dos princípios que o inspiram, quando se
afastar uma 'ontologificação e autonomização inadmissíveis do direito de acção'
e quando se tiver presente que em certos domínios especiais e bem delimitados ao
homem individual podem 'substituir-se como centros ético-sociais de imputação
juridico-penal' as pessoas colectivas.
O artigo 12º, nº 2, da Constituição, reconhece expressamente às
pessoas colectivas capacidade de gozo de direitos e submissão aos deveres
'compatíveis com a sua natureza', superando assim uma concepção de direitos
fundamentais exclusivamente centrada nos indivíduos.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, pp. 122 a 124, a determinação de
quais sejam esses direitos e deveres 'só pode resolver-se casuísticamente',
sendo porém claro que 'o ser ou não ser compatível com a natureza das pessoas
colectivas depende normalmente da própria natureza de cada um dos direitos
fundamentais, sendo incompatíveis aqueles direitos que não são concebíveis a não
ser em conexão com as pessoas físicas, com os indivíduos'.
Ora, nada obsta a que o Estado de direito democrático ao qual
incumbe não apenas 'respeitar' os direitos e liberdades fundamentais mas também
'garantir a sua efectivação' possa num quadro jurídico-penal bem delimitado no
seu âmbito e na sua génese motivadora, alargar a responsabilidade criminal às
pessoas colectivas em ordem à protecção de bens jurídicos socialmente relevantes
e cuja defesa é condição indispensável do livre desenvolvimento da personalidade
do homem.
Assim sendo, não se tem por verificado qualquer impedimento
constitucional à criminalização das pessoas colectivas ao nível do direito penal
secundário.
*///*
III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento aos recursos e confirmar o
despacho impugnado.
Lisboa, 20 de Abril de 1995
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto)
Luis Nunes de Almeida
Proc. nº 34/94
1ª Secção
Declaração de Voto
Estamos perante um caso exemplificador de como um problema
linguístico pode induzir uma controvérsia dogmática. A discussão sobre se a
'natureza da coisa' 'pessoa colectiva' admite a responsabilização penal -
remetendo para as categorias que fundamentam essa responsabilização
('livre-arbítrio', 'censurabilidade', 'desvalor da conduta', etc.) - decorre
apenas do facto de o legislador ter denominado de 'pena' uma certa reacção
jurídica, que afecta a própria pessoa colectiva, em matéria de 'crimes contra a
economia e contra a saúde pública'.
Trata-se de um problema de uso da linguagem. É a dimensão
'emocional' das expressões 'penas' e 'responsabilidade penal' que veda ao
intérprete o acesso a uma interpretação jurídico‑funcional das reacções aqui
cominadas pelo legislador.
Não é pelo facto de o legislador haver qualificado como
'responsabilidade penal' aquela que se prevê no artigo 3º, e como 'penas', as
reacções jurídicas do artigo 7º, do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro,
que a estrutura destas reacções há-de ser conceitualizada nos quadros da teoria
da acção penal. Aquelas expressões são tão-somente meios para a afirmação de
determinadas consequências normativas.
A discussão é aqui provocada por um 'uso mágico' da linguagem [cf.
Alf Ross, 'Tü-Tü', in Uberto Scarpelli (ed.), Diritto e Analisi Del Linguaggio,
Milão, 1976, págs. 165-181]. Afastando esse 'uso mágico' da linguagem, temos
que as reacções atípicas que o legislador qualificou como 'penas' e que afectam
a pessoa colectiva não são teorizáveis nos quadros do direito penal. E porque o
não são, perde sentido a questão de constitucionalidade.
(Maria da Assunção Esteves)