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Proc. nº 430/93 Plenário Rel.: Consª. Maria Fernanda Palma
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I
A O Pedido
1. O Provedor de Justiça veio requerer, ao abrigo do artigo
281º, nºs 1 e 2, alínea d), da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes do nº 5 da Portaria 309-E/84, de 23 de Maio, do nº 5 da Portaria 31-P/85, de 12 de Janeiro, do nº 5 da Portaria 894-C/75, de 23 de Novembro, do nº 5 da Portaria
733-G/86, de 4 de Dezembro, do nº 7 da Portaria 925-O/87, de 4 de Dezembro, do nº 7 da Portaria 805-G/88, de 15 de Dezembro, do nº 7 da Portaria 1110-H/89, de
28 de Dezembro, do nº 7 da Portaria 1221-B/90, de 19 de Dezembro, e do nº 8 da Portaria 6-A/92, de 8 de Janeiro.
O Provedor de Justiça entende que tais normas contradizem os artigos 106º, nºs 2 e 3 , 168º, nº 1, alínea i), 201º, alínea b), e 115º, nºs 1 e 5, da Constituição.
2. As normas constantes dos seis primeiros diplomas autorizam a E.P.A.L. a cobrar um adicional por metro cúbico de água aos consumidores do concelho de Lisboa, revertendo o produto dessa cobrança para a compensação dos gastos públicos do Munícipio de Lisboa. A norma constante da Portaria nº 6-A/92, de 8 de Janeiro, autoriza a E.P.A.L. a cobrar 'como parte do preço' um adicional
(cujo valor será fixado na convenção prevista no artigo 10º do Decreto-Lei nº
230/91, de 21 de Junho), igualmente por metro cúbico de água facturada, a todos os consumidores da cidade de Lisboa e cujo montante ficará consignado à
'compensação dos consumos municipais'.
Até 1992, as portarias actualizaram sucessivamente o valor do referido adicional, constituindo uma cadeia de normas dispositivas sobre a mesma matéria, em que o teor literal dos preceitos é basicamente idêntico. Todavia, na Portaria nº 6-A/92, como se referiu, o legislador integra o adicional explicitamente no preço, referindo-se à autorização para 'cobrar, como parte do preço, um adicional, cujo valor será fixado em convenção'.
3. O Provedor refere-se a duas questões prévias à apreciação da inconstitucionalidade daquelas normas : a da eventual ilegalidade das portarias em face dos decretos-leis em que se fundamentaram (argumentando que não seria obstáculo à apreciação, em sede de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade, da violação directa e autónoma pelas portarias de normas e princípios constitucionais); e a da admissibilidade da apreciação das normas já revogadas (por haver interesse e efeito útil na declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e não lhe serem aplicáveis os mecanismos excepcionais do artigo 282º, nº 4, da Constituição).
4. Referindo-se à questão de constitucionalidade, o Provedor alega estarem aquelas normas viciadas de inconstitucionalidade nos seus aspectos orgânico e formal, na medida em que o adicional previsto nos diplomas invocados não constitui uma taxa, mas sim um imposto. O fundamento da qualificação como imposto daquele adicional é a inexistência de uma utilidade divisível no bem prestado (consumo público de água) que justifique o adicional e, correspondentemente, a inexistência de qualquer sinalagma na relação entre o adicional e o consumo privado.
Segundo o Provedor, não haverá qualquer 'utilidade divisível mediatizada nos consumos públicos do Município de Lisboa', de modo a concluir-se que é 'por uma família gastar mais água nos seus consumos domésticos que se lhe pode assacar uma utilidade maior ou menor resultante da fruição de uma fonte luminosa municipal'. E, igualmente, não há qualquer 'adequação entre a utilidade usufruída e os sujeitos tributados' nem qualquer 'correspectividade das prestações', viabilizadora da existência de um sinalagma operante. Por último, o facto de o adicional ser consignado à Câmara impediria que a E.P.A.L. fosse agente da referida correspectividade de prestações.
Ora, como a natureza do imposto implica a exigência de reserva de lei nos termos dos artigos 106º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea i), da Constituição e o referido adicional foi criado pelo Governo, sem precedência de autorização legislativa, as normas que consagram aquele regime são, segundo esta argumentação do Provedor de Justiça, inconstitucionais organicamente.
Por outro lado, verificar-se-ia ainda inconstitucionalidade formal na medida em que o Governo, mesmo que fosse competente, só poderia criar impostos através de decreto-lei (artigos 201º, nº 1, alínea b), 106º, nº 2, e
115, nº 1, da Constituição).
B A resposta do Governo
5. Em resposta ao pedido do Provedor, o Governo veio sustentar a constitucionalidade daquelas normas e, cautelarmente, a restrição dos efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 282º, nº 4, da Constituição, atendendo a razões de interesse público, pela profunda perturbação económica-financeira que adviria do reembolso dos adicionais cobrados desde a sua criação.
6. A argumentação expendida em favor da constitucionalidade partiu da consideração de que:
a) Há um sinalagma entre o consumo de água e o custo do serviço específico de distribuição da água que a E.P.A.L. presta;
b) Subsiste sinalagma no adicional porque 'não se ultrapassa manifestamente o valor do serviço prestado', havendo um mínimo de proporcionalidade ou equilíbrio entre a quantia exigida e o serviço prestado - assim, o adicional é apenas uma forma de aumentar o 'preço' cobrado aos utilizadores de água, de modo a haver correspondência entre o serviço prestado e o custo;
c) Não altera a natureza de taxa do adicional o facto de este ser consignado a custear as despesas do Município de Lisboa com consumos de água públicos. II
A Delimitação do objecto do pedido
7. Objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade são, verdadeiramente, duas normas: a norma contida em preceitos regulamentares de conteúdo essencialmente idêntico constantes de uma sucessão de Portarias e a norma contida na Portaria nº 6-A/92. Esta última distingue-se da primeira na medida em que concebe expressamente o adicional como 'parte do preço' determinado em convenção e não como produto de uma estipulação directa pelo Governo.
A apreciação da constitucionalidade orgânica e formal de tais normas não é prejudicada por uma eventual ilegalidade das portarias, questão que não é suscitada no plano da constitucionalidade. Com efeito, é a própria possibilidade constitucional de as portarias, independentemente de existir qualquer ilegalidade em face dos decretos-leis que as fundamentaram, criarem aquele 'adicional' que surge como imediata questão de constitucionalidade. Uma eventual ilegalidade das portarias não cabe, obviamente, no âmbito da competência do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade (artigo 281º, nº 1, da Constituição) e a análise da legalidade não é pressuposto do juízo de constitucionalidade sobre o conteúdo normativo das portarias, não a prejudicando.
B A questão prévia da utilidade do conhecimento do pedido
8. O pedido tem por objecto uma sucessão de preceitos legais já revogados. Está, todavia, em vigor um dos preceitos, que contempla um adicional a ser cobrado aos consumidores de água como parte do preço pelo consumo de água, cujo valor é estipulado por convenção entre o Governo e a E.P.A.L. A questão que se coloca é a de saber se é justificada uma apreciação pelo Tribunal, com vista à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, das disposições regulamentares revogadas.
Critérios de solução desse problema são, simultaneamente, a subsistência da norma no ordenamento jurídico, apesar da revogação de preceitos regulamentares que a consagraram no passado, e o efeito útil na declaração.
Quanto à primeira questão, é claro que a substância normativa que foi consagrada pelo nº 8 da Portaria nº 6-A/92, de 8 de Janeiro, não é exactamente idêntica à contemplada nas outras portarias. O facto de a última portaria não conceber meramente uma actualização do adicional, mas vir a realizar uma sua caracterização como preço dependente de convenção, impõe que se reconheça, para efeito de apreciação da constitucionalidade, que os preceitos das anteriores portarias não vigoram, hoje, no ordenamento jurídico português na plenitude da sua dimensão normativa.
A questão da utilidade do conhecimento de normas revogadas, em face do artigo 282º, nº 4, da Constituição, tem-se, assim, como pertinente, na medida em que a norma cuja constitucionalidade é questionada não subsiste plenamente no ordenamento jurídico. Na verdade, uma limitação dos efeitos de declaração de inconstitucionalidade, por razões de segurança jurídica, de equidade ou de interesse público excepcional, poderá prejudicar uma declaração de inconstitucionalidade, em caso de normas já revogadas. Segundo a orientação do Tribunal Constitucional - ainda que firmada com votos de vencido -, o juízo prognóstico sobre a limitação de efeitos prejudica o conhecimento da questão de constitucionalidade relativamente a normas revogadas desde que a declaração de inconstitucionalidade, a verificar-se, viesse a ter efeitos que não ultrapassariam os ressalvados pela própria limitação (cf. Acórdãos nºs 308/93,
806/93, 57/95 e 119/95, D.R., II Série, de 22 de Julho de 1993, 29 de Janeiro de
1994, 12 de Abril de 1995 e 7 de Abril de 1995, respectivamente).
9. Por outro lado, nem sequer seria obstáculo à aplicação de um tal critério de decisão, no caso vertente, a possibilidade de a norma em vigor vir a ser declarada inconstitucional. Na verdade, sendo o conteúdo da norma em vigor diferente, diversa teria de ser a fundamentação do juízo de inconstitucionalidade. Deste modo, terá pleno cabimento levantar a questão prévia da limitação de efeitos, nos termos do artigo 282º, nº 4, da Constituição.
Mas verificar-se-ão, neste caso, as razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público excepcional a que a norma constitucional alude?
A declaração de inconstitucionalidade implicaria a devolução do montante cobrado a todos os consumidores, desde 1984 até 1992, o que corresponderia a um encargo excepcional para o Município, sem que o prejuízo sofrido pelos consumidores pelo pagamento do referido adicional fosse, comparativamente ao efeito na economia de cada consumidor, muito significativo. A devolução do adicional, a repercutir-se financeiramente na Câmara Municipal de Lisboa, beneficiária indirecta do referido adicional, criaria um prejuízo financeiro considerável.
Por outro lado, é razoável que a água em Lisboa seja encarecida por força dos custos de distribuição e o adicional poderia ter sido caracterizado, desde o início, como parte do preço, ainda que consignado às despesas públicas do Município. Mesmo que se entenda que é inaceitável a qualificação como taxa do adicional, devido à sua fixação imperativa pelo Governo e prévia afectação aos custos públicos do Município, permitindo à E.P.A.L. suportar a isenção do pagamento dos gastos colectivos de água por essa entidade pública, ter-se-á, no entanto, de reconhecer que uma melhor técnica jurídica na concepção do sistema impediria aquele efeito. A inconstitucionalidade formal e orgânica não sancionaria a subtracção de uma realidade só concebível juridicamente como imposto à reserva de lei, mas apenas uma deficiente técnica legislativa na caracterização de uma realidade financeira configurada juridicamente de outro modo.
Porém, a ponderação dos efeitos públicos negativos de uma declaração de inconstitucionalidade em cotejo com o prejuízo real dos consumidores, pela afectação das suas garantias constitucionais, demonstra uma excessiva prevalência dos primeiros. Verificam-se, deste modo, as razões de segurança e de excepcional interesse público a que o artigo 282º, nº 4, da Constituição se refere.
Com efeito, em situações anteriores o Tribunal Constitucional considerou que se justificava a limitação de efeitos atendendo à necessidade de cotejar o interesse na reafirmação da ordem jurídica com o interesse na eliminação do factor de insegurança, através de um 'juízo de proporcionalidade' em que o interesse público seria ponderado (cf. Acórdão nº 308/93, cit.). E, muito incisivamente, no Acórdão nº 57/95 (cit.), o Tribunal considerou, a propósito da utilidade de uma eventual declaração de inconstitucionalidade de várias normas tributárias já revogadas, que não deixaria, 'manifestamente', de limitar os efeitos dessa eventual declaração, por razões de segurança jurídica.
C A questão da constitucionalidade da norma do nº 8 da Portaria nº 6-A/92, de 8 de Janeiro
10. A questão colocada pelo Provedor de Justiça ao Tribunal Constitucional é, muito directamente, a da natureza de taxa ou de imposto do adicional ao preço do consumo de água na cidade de Lisboa, previsto no nº 8 da Portaria 6-A/92, de 8 de Janeiro:
'A E.P.A.L. é autorizada a cobrar, como parte do preço, um adicional, cujo valor será fixado na convenção, por metro cúbico de água de água facturada a todos os consumidores de água da cidade de Lisboa, excluindo a respectiva Câmara Municipal, cujo montante fica consignado à compensação do valor dos consumos municipais, devendo o valor adicional figurar quer nas facturas quer nos recibos sempre de forma explícita'.
Como caracterizar este adicional?
11. As características doutrinariamente assinaladas para distinguir a taxa do imposto [cf., sobre tal questão, Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2ª ed., 1972, p. 10 e ss.; Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, I, 1981, p. 42 e ss.; Soares Martinez, Manual de Direito Fiscal, 1983, p. 34 e ss.; Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 3ª ed.,
1990, p. 486 e ss.; Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 4ª ed., 1991, p. 214 e ss.; Pitta e Cunha, J. Basto e A. Lobo Xavier, 'Os conceitos de Taxa e Imposto a propósito das Licenças Municipais', em Fisco nº 51/52 (Fevereiro-Março
1993), p. 3 e ss.], como a divisibilidade das prestações, a sinalagma-ticidade e a correspectividade das prestações, não são critérios invocáveis com o mero objectivo de uma subsunção conceptual, quando está em causa um juízo de constitucionalidade (sobre a distinção entre imposto e taxa na jurisprudência do Tribunal Constitucional, cf. Acórdão nº 640/95, D.R., II Série, de 20 de Janeiro de 1996, e a jurisprudência anterior aí citada, bem como o Acórdão nº 76/88, D.R., II Série, de 21 de Abril de 1988, que aborda uma situação semelhante à que agora se analisa).
Na realidade, fora os casos nítidos e expressivos de uma ou outra figura, há todo um conjunto de situações fronteiriças. Assim, a doutrina fiscal tende a aceitar como taxas figuras financeira e economicamente mais funcionais como impostos e a normativizar, cada vez mais, a sinalagmaticidade e a correspectividade das prestações (assim, claramente, Alberto Xavier, em Manual, cit., p. 44, define a sinalagmaticidade da taxa na base de uma mera equivalência jurídica).
12. Todavia, poderá ainda a distinção clássica entre taxa e imposto subsistir perante a maior complexidade das próprias prestações económicas e das relações sociais?
Independentemente da resposta da doutrina fiscal, deverá ser, no essencial, uma distinção funcional, determinada pelos fundamentos e objectivos constitucionais da reserva de lei, o arquétipo do raciocínio jurídico no plano da constitucionalidade.
A complexidade das prestações económicas e das relações sociais e a normativização crescente dos elementos tradicionais do conceito de taxa impõem, no plano da constitucionalidade, um regresso ao discurso fundamentador, explicativo do diferente regime constitucional de ambas as figuras, como o único terreno sólido de um juízo de distinção das figuras.
A subordinação do imposto à reserva de lei exprime a exigência de controlo democrático do poder tributário, isto é, a limitação daquele poder pelo 'consentimento' dos próprios destinatários da Administração Fiscal. O imposto, na medida em que é uma intervenção na propriedade dos cidadãos justificada pela realização de fins sociais, tem de decorrer da vontade democrática e respeitar a igualdade e a justiça tributárias (artigos 106º e 107º da Constituição), aferidas pela capacidade contributiva de cada cidadão [sobre o fundamento da reserva de lei no que respeita ao imposto, cf. Alberto Xavier, Conceito e natureza de acto tributário, 1972, p. 280 e ss.; Pamplona Corte-Real, Curso de Direito Fiscal, 1981, p. 77 e ss.; José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, 'Ainda a distinção entre taxa e imposto: a inconstitucionalidade dos emolumentos notariais e registrais devidos pela constituição de sociedades e pelas modificações dos respectivos contratos', em Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXXVI (IX da 2ª Série, 1994), p. 24 e ss.].
13. A taxa, diferentemente do imposto, não surge como uma intervenção na propriedade dos cidadãos, tendo o tributo em que consiste como causa (no sentido da doutrina do direito civil) o benefício derivado de uma prestação originária de um ente público (sobre o conceito de causa como o
'porquê' do negócio jurídico e a relação fundamental que o permite qualificar, cf. Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, III, 1992, p. 335). A taxa insere-se ainda numa lógica de interacção também característica do mercado e não exprime, pelo modo como se justifica, uma intervenção coactiva no direito de propriedade.
Por outro lado, embora a justificação da taxa (e a justificação surge, neste contexto, como o 'para quê' da taxa, tal como é próprio da função do negócio jurídico - cf. Oliveira Ascensão, ibid.) possa distanciar-se da sua causa - a referida prestação ou benefício auferido pelos cidadãos - e implicar um valor superior ao que seria ditado pelas leis de mercado a título de custo, aquela figura não exigirá (se esse valor for proporcionado) as cautelas de segurança jurídica conferidas ao imposto.
Desta sorte, a taxa surge como uma figura estruturada juridicamente através da sinalagmaticidade e correspectividade das prestações, tendo como causa uma prestação de que é beneficiário o cidadão vinculado ao seu pagamento. A taxa não surge, todavia, necessariamente justificada pelo exacto custo da prestação ou do benefício, distinguindo-se, nesse sentido, do preço, segundo alguns autores. Para a função da taxa pode ser menos relevante o custo e, por exemplo, mais relevante a contenção da utilização de um serviço, por exemplo (no sentido de uma ultrapassagem do princípio da cobertura dos custos pela figura da taxa, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 640/95, cit., e, na doutrina, Papier, Die finanzrechtlichen Gesetzvorbehalt und das grundgesetzliche Demokratieprinzip, 1974, p. 114 e ss., e Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 1991, p. 211 e ss.). A proporcionalidade há-de, no entanto, ser o critério de legitimidade da taxa, enquanto a adequação à capacidade contributiva caracteriza o imposto (sobre a importância da capacidade contributiva na distinção entre taxa e imposto, cf. Javier Sainz Moreno, Elementos de Derecho Financeiro, I, 1983, p. 402 e ss., Cesar Albiñana, Sistema Tributario Español y Comparado, 1986, p. 55, e José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, cit., pp. 14, 15 e 27 e ss.).
14. A base funcional da distinção entre taxa e imposto não impõe, todavia, uma sinalagmaticidade pré-jurídica, mas sim uma sinalagmaticidade construída juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser entendido e aceito como tal pelos cidadãos atingidos. Assim, a consignação financeira de uma prestação económica que surge como uma elevação de um preço estabelecido em convenção poderá não afectar a natureza de taxa da referida prestação, na medida em que se entenda que a elevação do preço tem o seu fundamento (a sua causa) num determinado modo de relacionamento dos cidadãos com os custos (benefícios ou utilidades) e a própria elevação do preço seja aceitável racionalmente como contrapartida de um benefício.
Ora, a possibilidade de caracterizar o adicional com a taxa depende do seguinte:
a) Em primeiro lugar, existe uma especialidade no Município de Lisboa que não pode deixar de ser realçada no seu significado jurídico e económico - a distribuição é efectuada pela E.P.A.L. e não pelo Município. Este facto repercutir-se-á numa lógica de custos, inevitavelmente, e justificará uma repercussão nos preços do consumo da água em Lisboa. Torna-se, assim, esse facto a causa do adicional.
O facto de o Decreto-Lei nº 230/91, de 21 de Junho, ter transformado a E.P.A.L. em sociedade anónima como resposta à necessidade de tornar a empresa 'mais viva e adaptável à participação em soluções locais' e de permitir dotar aquilo que o legislador designou como 'mercado da água' de
'agentes económicos cuja intervenção permita potenciar a construção de novos sistemas e rendibilizar a exploração do abastecimento de água' revela uma nova perspectiva sobre a relação entre o consumo de água e o respectivo preço, subordinada a um modelo de gestão autofinanciador.
Também na Portaria nº 6-A/92 se procede a uma qualificação do consumidor em função de cada local e tipo de consumo, determinando estes uma quota de serviço e o preço de venda da água [artigo 1º, alínea b)], e se remete para convenção entre o Estado, representado pela Direcção-Geral de Concorrência e Preços, e a E.P.A.L. a definição dos preços, por metro cúbico, de venda da
água (artigo 5º da mesma Portaria e artigo 10º do Decreto-Lei nº 230/91).
Assim sendo, parece 'razoável' [acerca da razoabilidade como critério do juízo de constitucionalidade, cf. Il Principio di Ragionevolezza nella Giurisprudenza della Corte Costituzionale (Seminário de Roma de 1992, ob.col.), 1994, passim, sobretudo p. 265 e ss.] que o adicional se justifique por especiais custos de distribuição, não sendo desproporcionada uma qualificação dos consumidores do Município de Lisboa, para efeitos de determinação do preço da água ou de um pagamento adicional, como taxa, do serviço de distribuição. Nem, tão pouco, aquele adicional constituiria uma retribuição exagerada e desproporcionada dos custos do serviço ou das necessidades de financiamento da empresa fornecedora e distribuidora.
b) Em segundo lugar, não é argumento procedente contra a qualificação do referido adicional como taxa o facto de haver uma consignação das respectivas verbas às despesas públicas da Câmara. Com efeito, tal técnica financeira é considerada admissível pela doutrina, permitindo até, segundo alguns autores, a distinção entre taxa e preço. A afectação financeira pré-determinada significa tão só a prévia adstrição a certas necessidades de financiamento da retribuição por um serviço (ou da verba que por ele se justifica), sendo, na verdade, indiferente para o conceito de taxa que seja anterior ou posterior à sua previsão. E o facto de o preço dos custos de distribuição e das respectivas necessidades de financiamento se repercutir diferentemente entre os próprios consumidores do Município de Lisboa, de modo que os maiores consumidores mais se ressentirão com a elevação do preço por metro cúbico de água, justifica-se pela afectação das condições de fornecimento de água (o seu aprovisionamento e tratamento), através da medida da solicitação do seu fornecimento. Deste modo, tal repercussão, dada a proporcionalidade ao consumo, não é manifestação típica de capacidade contributiva.
É assim claro que quem mais consome mais exige da empresa que fornece um bem relativamente escasso e dispendioso, na perspectiva do tratamento e distribuição de tal bem, sendo esta lógica alheia à da justiça tributária
(note-se, todavia, que taxa e capacidade contributiva ainda poderão ser relacionadas, na medida em que, por exemplo, é a menor capacidade contributiva que legitima as isenções, cf. Javier Sainz Moreno, ob.cit., p. 405 e José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, cit., p. 15).
c) Em terceiro lugar, mesmo que não fosse reconhecida uma correspectividade com os encargos da distribuição do adicional ao preço por metro cúbico de água, poder-se-ia ainda assinalar uma relação intrínseca entre o consumo de água pelos munícipes de Lisboa e os gastos colectivos de água na cidade. Sendo a água um bem colectivo, escasso e dispendioso e o seu consumo um factor de vida em sociedade, haveria uma relação entre cada consumidor e os gastos públicos, não tanto, positivamente, porque cada consumidor beneficie individualmente dos gastos públicos, mas, negativamente, porque cada consumidor afecta, condiciona ou restringe o uso colectivo da água. Assim, quanto mais se consuma água mais se limitará um bem escasso e, nessa medida, mais se auferirá individualmente da utilidade repartível de um bem colectivo, não se divisando, ainda, uma relação necessária com a capacidade contributiva geral dos munícipes.
A utilidade financiada pelo adicional resultaria, deste modo, de um acréscimo de disponibilidade individual de um bem colectivo, a água. A sinalagmaticidade e a correspectividade seriam, consequentemente, constatáveis ao nível da relação entre o consumo e a afectação do uso colectivo da água.
d) Finalmente, em quarto lugar, a proporcionalidade existe, pois é a medida do consumo que determina o preço da prestação paga pelos consumidores, não sendo excessivo o preço por metro cúbico de água.
Para além disso, é irrelevante, para a caracterização deste modo de relacionamento entre os consumidores de água e as utilidades de que beneficiam, que a Câmara Municipal não efectue a distribuição da água em Lisboa. O facto de ser a EPAL que surge como cobrador do preço destinado a uma utilidade que só a Câmara concede (os gastos públicos) é absolutamente irrelevante, pois é a EPAL que suporta os gastos públicos do Município.
15. Por tudo isto, as normas em causa mantêm-se nos limites de um conceito jurídico de taxa constitucionalmente adequado, sem que se justifique a interferência da reserva de lei que a Constituição prevê para o imposto. Assim, as normas constitucionais dos artigos 106º, nºs 2 e 3, 168º, nº 1, alínea i), 201º, alínea b), e 115º, nºs 1 e 5, da Constituição, ao imporem, na sua conexão, a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República em matéria de impostos, não foram violadas.
III
16. Em face do exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas constantes dos nºs 5 das Portarias 309-E/84, de 23 de Maio, 31-P/85, de 12 de Janeiro, 894-C/75, de 23 de Novembro, 733-G/86, de 4 de Dezembro, e dos nºs 7 das Portarias 925-O/87, de 4 de Dezembro,
805-G/88, de 15 de Dezembro, 1110-H/89, de 28 de Dezembro, e 1221-B/90, de 19 de Dezembro.
b) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do nº 8 da Portaria 6-A/92, de 8 de Janeiro.
Lisboa, 30 de Outubro de 1996 Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca Luis Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa