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Processo nº 645/93
2ª/Plenário Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. O Procurador-Geral da República veio, 'no uso da faculdade que lhe é conferida pelo artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2, alínea e), da Constituição da República Portuguesa, requerer que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 3 do artigo 44º do Regulamento Policial do Distrito de Faro, homologado por despacho ministerial de 5 de Fevereiro de 1993 e publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Fevereiro (págs. 1871 e seguintes)'.
O citado artigo, depois de, no seu nº 1, estabelecer que nas vias e mais lugares públicos é proibido permanecer ou circular, 'dirigindo gestos ou palavras a outras pessoas susceptíveis de serem entendidos como convite à prática de prostituição, ainda que essa actividade não seja sancionada criminalmente' (al. a)), dispõe no seu nº 3:
'Nas situações consideradas no nº 1, alínea a), e sempre que a gravidade da contra ordenação o justifique, poderá ser interditada ao arguido, mediante determinação escrita, a frequência ou estacionamento em locais públicos ou de livre acesso público devidamente identificados por períodos de 2 a 12 meses, sob pena de crime de desobediência, previsto e punível nos termos do artigo 388º do Código Penal.'
Afigura-se ao Procurador-Geral da República que esta norma
é inconstitucional por violação do estatuído no artigo 168º, nº 1, alínea c),
1ª parte, e d), parte final, da Constituição, na medida em que se 'invade o
âmbito da competência reservada da Assembleia da República'.
São duas as ordens de razões que levam o requerente a concluir pelo invocado vício:
'a) Por um lado, ao pretender criminalizar como 'desobediência' o não acatamento da interdição resultante do disposto na primeira parte do preceito ora impugnado, invade matéria que inquestionavelmente se situa no cerne da reserva da competência da Assembleia da República - sendo perfeitamente pacífico que um Regulamento policial em nenhuma circunstância pode tipificar como 'crime' a violação de um qualquer dever nele estabelecido.
b) Por outro lado, ao pretender estabelecer uma sanção acessória para a contra-ordenação tipificada na alínea a) do nº 1 do citado artigo 44º - a interdição pelo período de 2 a 12 meses, da frequência ou estacionamento em locais públicos ou de livre acesso ao público, devidamente identificados - inova no que ao 'regime geral' dos actos ilícitos de mera ordenação social respeita, já que da enumeração do artigo 21º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, não consta sanção acessória de tal natureza.'
E mais acrescenta que, tendo o Decreto-Lei nº 252//92, de
19 de Novembro (diploma que define o estatuto e competência dos governadores civis e ao abrigo do qual foi emitido o Regulamento em causa) revogado nesta matéria o Código Administrativo, não se teve em conta que esse decreto-lei não contém disposição idêntica à que se continha no artigo 408º, § 5, daquele Código (redacção do Decreto-Lei nº 103/84, de 30 de Março).
Efectivamente, neste se dispunha que:
'§ 5º - Sempre que a frequência ou gravidade da contra-ordenação o justifique, poderá o regulamento prever que o governador civil possa ordenar ao infractor que se abstenha de praticar actos contrários à lei ou ao próprio regulamento, interditando-lhe, pelo período de 2 a 12 meses, a frequência ou estacionamento em locais públicos ou de livre acesso do público, devidamente identificados na ordem.'
Ora, o Decreto-Lei nº 252/92 limita-se 'a conferir competência ao governador civil para aplicar as coimas e sanções acessórias a que haja lugar por violação dos regulamentos por ele elaborados' (artigo 4º, nº
5, alínea f)), não podendo tais sanções acessórias 'deixar de ser as previstas nas diversas alíneas do artigo 21º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro
(na redacção do Decreto-Lei nº 356/89, de 17 de Outubro), onde não se encontra previsto o tipo de 'sanção acessória' ora em apreciação'.
Termina, afirmando que 'na falta de previsão legal, é evidente que não pode uma mera norma regulamentar inovar no que respeita à tipologia das sanções acessórias permitidas em sede de contra-ordenações'.
Junta exemplares do Diário da República, nº 268, série I-A, de 19 de Novembro de 1992, contendo o Decreto-Lei nº 252/92, e nº 42, série II, de 19 de Fevereiro de 1993, donde consta o Regulamento Policial em causa.
2. Notificado o Governador Civil de Faro, nos termos e para os efeitos do artigo 54º da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, veio em síntese conclusiva dizer o seguinte:
'- A criminalização do não acatamento de uma ordem legítima decorre do art. 388º do Código Penal e não do Regulamento Policial do Distrito de Faro;
- A admitir que estamos perante uma sanção acessória esta não tem carácter inovador, porquanto estava já prevista na al. a) do nº 3 do art. 21º do Dec.Lei
433/82, prevendo ainda e também a alínea f) do nº 5 do Dec. Lei 252/92 a existência de sanções acessórias nos Regulamentos Policiais;
- De qualquer maneira entende o Governador Civil que nem sequer estamos perante uma sanção acessória, mas sim perante uma medida de polícia (cfr. art. 272 da CRP).
Pelo exposto requer-se a V. Exª a improcedência do requerimento do Senhor Procurador-Geral da República e ainda que seja declarada a conformidade do art.
44º do R.P.D.F. com a Constituição da República Portuguesa.'
Junta dez documentos, fotocopiados, todos relativos à denúncia de actividades de prostituição nas áreas de Quarteira e Vilamoura, no Algarve.
3. Do que fica exposto, conclui-se que diferentes são os entendimentos que o Procurador-Geral da República e o Governador Civil de Faro têm sobre a natureza da interdição contida no nº 3 do referido artigo 44º: enquanto aquele a designa por sanção acessória, este último entende essencialmente tratar-se de uma medida de polícia, só por mera hipótese admitindo a caracterização de sanção.
Independentemente da averiguação da natureza jurídica de tal interdição, o que releva aqui é a proibição contida na norma do nº 3 do artigo 44º - imposta 'mediante determinação escrita' - de 'frequência ou estacionamento em locais públicos ou de livre acesso público devidamente identificados por períodos de 2 a 12 meses'. Proibição que necessariamente contende com o direito à liberdade e com o direito de deslocação do cidadão, como a liberdade de agir e de se movimentar ou estacar nos locais públicos, o que preenche os direitos fundamentais consagrados nos artigos 27º e 44º da Constituição.
Como, a propósito, se lê no acórdão deste Tribunal Constitucional nº 479/94, publicado na I Série-A, do Diário da República nº 195, de 24 de Agosto de 1994:
'A mera limitação de liberdade (Freiheitsbeschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12).
A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida).
A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se no entanto a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.'
Ora, é sabido que a matéria dos direitos, liberdades e garantias é matéria de reserva de lei parlamentar (artigo 168º, nº 1, b), da Constituição) e tal reserva 'constitui um dos limites do poder regulamentar, porquanto a Administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva, como ressalva dos regulamentos executivos, isto é, aqueles que se limitam a esclarecer e precisar o sentido das leis ou de determinados pormenores necessários à sua boa execução' (acórdão deste Tribunal Constitucional nº 307/88, publicado no Diário da República, I Série, nº 18, de
21 de Janeiro de 1989, identificando e transcrevendo o acórdão nº 74/84, publicado no mesmo Diário, I Série, de 11 de Setembro de 1984).
Como ensina Afonso Queiró:
'A reserva da lei constitui o quinto limite do poder regulamentar: a administração não poderá editar regulamentos (independentes ou autónomos) no domínio dessa reserva. Os únicos regulamentos que nas matérias reservadas à lei se admitem são os regulamentos de execução. O Executivo, neste domínio, só pode editar normas inovadoras sob a forma de decretos-leis, mediante autorização.
[...] Esta designação das matérias reservadas não é possível entre nós: a disciplina integral destas matérias (salvo os pormenores de execução, sempre susceptíveis de ser versados em regulamentos, nos termos já vistos) cabe em princípio à lei, excepcionalmente a decretos-leis - e nunca a regulamento. [cf. Revista de Direito e Estudos Sociais, ano XXVII, pp. 17 e 18].]'
Se tudo isto é assim, torna-se evidente que se violou o limite do poder regulamentar representado pela reserva de lei, uma vez que a matéria respeitante à liberdade e ao direito de circulação consagrados nos artigos citados da Constituição, aqui em causa, se inscreve no âmbito dos direitos, liberdades e garantias.
Registe-se, a propósito, que o poder regulamentar dos governadores civis, em matérias da sua competência policial, foi sensível ao legislador em 1995, que, por via do recente Decreto-Lei nº 316/95, de 28 de Novembro, com entrada em vigor a 1 de Outubro de 1995 (artigo 5º), veio, no artigo 2º, dar nova redacção ao artigo 4º do Decreto-Lei nº 252/92, desaparecendo a alínea c) (a que dava cobertura àquele poder regulamentar), sofrendo meras alterações de redacção as alíneas a) e b), e surgindo as novas alíneas c) e d), no âmbito da competência do governador civil, 'no exercício de funções de polícia', com a seguinte redacção:
'c) Assegurar a observância das leis e regulamentos e garantir a execução dos actos administrativos e das decisões judiciais;
d) Propor ao Ministro da Administração Interna a elaboração dos regulamentos necessários à execução das leis que estabelecem o modo de exercício das suas competências.'
E, no preâmbulo desse diploma pode ler-se:
'Com as alterações operadas, os governadores civis ficam com o exercício das suas competências sujeito a um diploma com força de lei, como acontece com todos os órgãos administrati- vos, retirando-se-lhes competências regulamentares em matérias não suficientemente densifi-cadas por lei, obstando com o ensejo à subsistência de regulamentos independentes.'
Daqui resulta que o legislador ordinário foi sensível ao questionado poder regulamentar dos governadores civis, em matérias da sua competência policial, revelando a sua preocupação no preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 316/95, 'no que concerne às denominadas 'medidas de polícia' a que subjazem razões de ordem pública': 'a sua previsão no presente diploma cumpre não só a mera precedência legislativa mas ainda o princípio da sua tipicidade, em estrita obediência à lei fundamental'.
À luz do exposto, impõe-se a conclusão de que com a interdição em causa, o nº 3 do artigo 44º invadiu a área de competência reservada da Assembleia da República, violando-se, assim, o disposto no artigo
168º, nº 1, b), da Constituição.
4. Atingida esta conclusão, dela necessariamente deflui a inconstitucionalidade da última parte do nº 3 do artigo 44º, já que ela pressupõe a existência da primeira parte.
E isto claramente sem prejuízo de o Tribunal entender que
é constitucionalmente ilegítimo proceder-se à definição dos elementos essenciais de tipos criminais num regulamento.
5. Termos em que, DECIDINDO, declara-se a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do nº 3 do artigo
44º do Regulamento Policial do Distrito de Faro, homologado por despacho ministerial de 5 de Fevereiro de 1993 e publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Fevereiro (págs. 1871 e seguintes) por violação da alínea b), do nº 1, do artigo 168º da Constituição. Lisboa, 27.2.96 Guilherme da Fonseca Maria da Assunção Esteves Bravo Serra Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis Messias Bento Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa