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Proc. nº 813/93
2ª Secção
Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
«
1. A. foi julgado em processo sumário no
Tribunal Judicial de Sintra (1º Juízo), pela prática do crime previsto e punível
pelo artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei nº 124/90, de 14 de Abril (condução sob a
influência do álcool). Julgando procedente a acusação, o tribunal condenou-o na
pena de 90 dias de multa à taxa unitária de 200$00, e em alternativa 60 dias de
prisão; mas não decretou a inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo
4º, nº 2, alínea a), daquele decreto-lei, por considerar que esta norma
violava os artigos 1º, 13º, nº 1, 25º, nº 1, 18º, nº 2, e 88º, nº 1, da
Constituição.
2. Desta sentença, recorreu
obrigatoriamente o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, para
apreciação daquela questão de inconstitucionalidade.
Neste Tribunal, o recorrente pediu que se
determine a reforma do julgado, porquanto o regime estatuído no artigo 4º, n.os
1 e 2, alínea a) daquele decreto-lei, não ofende o disposto no artigo 30º, nº
4, da Constituição, nem envolve qualquer infracção aos princípios
constitucionais da culpa e da proporcionalidade das sanções criminais. O
recorrido, pelo contrário, considera que tal decisão deverá ser mantida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. É objecto do presente recurso a
apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 4º, n.os 1 e 2, alínea a),
do Decreto-Lei nº 124/90, que tem a seguinte redacção:
Artigo 4º
(Inibição da faculdade de conduzir)
1 - Às penas previstas nos artigos 2º e 3º acresce a sanção
acessória de inibição da faculdade de conduzir.
2 - A inibição terá a seguinte duração:
a) Seis meses a cinco anos nos casos previstos no artigo 2º;
[...].
4. O tribunal recorrido considerou que a
inibição da faculdade de conduzir, tal como vem agora configurada neste artigo,
é uma pena acessória que acresce, na terminologia da lei, às penas previstas
nos artigos 2º e 3º' (prisão e multa): 'o legislador introduziu além daquelas
duas penas principais alternativas, a sanção acessória de funcionamento
automático de inibição do direito de conduzir, acopulada à condenação na pena
principal pelo cometimento do crime'.
E, referindo-se à crítica segundo a qual
esta pena 'funciona acessoriamente e de modo automático', assim violando o
disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, acrescenta:
Pode alegar-se que a previsão de uma moldura penal afasta a crítica,
pois permite que, ainda que de funcionamento automático, intervenha
na aplicação da pena acessória a ponderação da culpa.
Ao invés disso, o recurso ao princípio da culpa torna ainda mais
criticável o artigo em análise, mostrando outro flanco à censura
constitucional.
Com efeito, sendo idêntico o período de inibição previsto para o
crime cometido sob a forma dolosa ou sob a forma negligente, há aí violação do
princípio da culpa. O art. 4º, nº 2, al. a), prevê um mesmo período de inibição
para todo o artigo 2º do mesmo diploma, o que não permite destrinçar as
diferentes culpas, dolosa e negligente, na forma de cometimento do crime.
Mas mais: ao prever-se o período de inibição mínima de seis meses, a
moldura da inibição é superior à própria moldura da pena principal pela
prática do crime na forma negligente, ou seja, a mesma culpa levaria a uma
punição na pena principal desfasada da punição na pena acessória. Só o máximo
da pena principal pelo cometimento do crime na forma negligente permitiria a
aplicação da inibição em período semelhante.
Nada justifica esta disparidade, nem aquela indistinção entre a
culpa dolosa e a negligente, tudo impondo a conclusão de que o preceito em
análise viola o princípio da culpa (arts. 1º, 13º, nº 1, e 25º, nº 1, da C.R.P.)
e o princípio da proporcionalidade das sanções criminais (arts. 18º, nº 2, e
88º, nº 1, por identidade de razão, ambos da C.R.P.).
Ou seja: considera-se que a norma em
causa viola o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, e também os
princípios da culpa e da proporcionalidade das sanções criminais. Examinemos
sucessivamente estas três questões.
5. A inibição da faculdade de conduzir
tem sido configurada de modos diversos em sucessivos diplomas que a estabelecem
no âmbito do direito rodoviário, e nem sequer tem havido uniformidade quanto à
sua designação.
As disparidades doutrinais e
jurisprudenciais na matéria são, efectivamente, bastantes e encontram-se
reflectidas, designadamente, no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 224/90
(Diário da República, I Série, de 8 de Agosto de 1990), no Parecer da Comissão
Constitucional nº 3/76 (Pareceres da Comissão Constitucional, 1º Vol., págs.
31-40), e no Acórdão do S.T.J. que aprovou o Assento de 29 de Abril de 1992
(Diário da República, I Série, de 10 de Julho de 1992).
Dessas disparidades resultaram
qualificações divergentes na doutrina: por exemplo, Pinheiro Farinha defendeu
que nuns casos ela seria uma medida de segurança, noutros uma pena acessória, e
noutros ainda um efeito da pena (Scientia Ivridica, 1956, t. V, pags. 177 e
segs.); Vítor Faveiro foi de opinião de que se trataria de uma pena acessória ou
um efeito da pena (Prevenção Criminal, 1957, pág. 20); e Cavaleiro Ferreira
considerou que seria um efeito da pena quando constituísse uma incapacidade
resultante de condenação penal, e uma medida de segurança quando decretada
judicialmente, autonomamente ou como acessória de uma pena (Direito Penal
Português, 1982, pág. 364).
Porém, a jurisprudência dos tribunais
superiores, embora com algumas vozes discrepantes, acabou por propender a
encará-la habitualmente como uma medida de segurança e tal orientação veio mesmo
a receber consagração obrigatória, embora não sem votos discordantes, no
referido Assento de 29 de Abril de 1992, relativamente à 'inibição do direito
de conduzir' estabelecida no artigo 61º do Código da Estrada.
Figueiredo Dias censurou a solução
acolhida naquele Assento (Direito Penal Português, Parte Geral, II - As
Consequências Jurídicas do Crime, § 204, Ed. Notícias, Lisboa, 1993), e até o
próprio facto de o S.T.J. ter fixado jurisprudência sobre a qualificação de uma
reacção criminal: viu aí o risco de futuramente, e de modo ilegítimo, se querer
'deduzir o regime a partir do conceito, confundindo-se a função normativa
(definida pelo regime) com a função conceitual classificatória (a cargo do
intérprete)'.
Como é sabido, são extremamente
controvertidos, em termos de política criminal, quer os efeitos das penas, quer
os efeitos dos crimes, quer ainda a concepção tradicional de penas acessórias,
noções que historicamente correspondem a diferentes tentativas da dogmática
penal no sentido de eliminar (com maior ou menor sucesso) os vestígios das penas
infamantes do direito penal anterior à época iluminista. As actuais concepções
ressocializadoras da intervenção penal apontam para 'retirar aos instrumentos
sancionatórios jurídico-penais qualquer efeito jurídico infamante ou
estigmatizante - inevitavelmente dessocializador e, portanto, criminógeno - que
acresça ao efeito de desqualificação social que já por sua mera existência lhes
cabe' (Figueiredo Dias, ob. cit., § 88).
É neste contexto doutrinal que se veda a
possibilidade de fazer decorrer da aplicação de quaisquer penas, como efeito
necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos. Princípio
geral que encontrou expressão legal no artigo 65º do Código Penal de 1982 e foi
consagrado até no artigo 30º, nº 4, da Constituição, após a revisão operada pela
Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro: 'Nenhuma pena envolve como
efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e
políticos'.
Entende-se também, porém, que a previsão
de certos efeitos jurídicos limitadores daqueles direitos é legítima, pela
função adjuvante da pena principal que podem desempenhar - desde que tais
efeitos concretos sejam judicialmente estabelecidos na sentença condenatória em
função da ponderação concreta da culpa do agente, não podendo a lei fazê-los
resultar automaticamente da condenação como seu efeito necessário. E a
Constituição não veda todo e qualquer efeito necessário das penas, mas apenas
aqueles que se traduzam na perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
O relatório do Decreto-Lei nº 124/90
refere-se à inibição da faculdade de conduzir expressamente enquanto 'pena
acessória' e o próprio artigo 4º a designa como 'sanção acessória' (nº 1) e
mesmo 'pena' (nº 4). Pode, porém perguntar-se se ela não será melhor qualificada
como um efeito da pena.
Figueiredo Dias nota que o Código Penal
vigente considerou como sendo 'penas acessórias' alguns dos tradicionalmente
chamados 'efeitos das penas' (ou efeitos penais da condenação), retirando-lhes
porém o seu também tradicional carácter de produção automática. Esta 'assumida
confusão' (assim se exprime aquele autor, ob. cit., § 197) está expressa no
artigo 65º do Código Penal, como no artigo 30º, nº 4, da Constituição, quando
dispõem que nenhuma pena envolve, como efeito necessário, a perda de direitos
civis, profissionais e políticos.
Mas, independentemente da correcta
qualificação doutrinal da inibição de conduzir (que não dependerá da designação
que o legislador lhe dá, mas desde logo da efectiva conformação legal que o
intérprete aí encontra), o certo é que, neste diploma, ela não surge como um
efeito automático da pena de prisão ou da pena de multa previstas no artigo 2º
do diploma.
Na verdade, essa perda de direitos não é
prevista na lei como um efeito necessário da aplicação de uma pena, mas sim
como uma medida acessória que o juiz aplica e gradua dentro de determinados
limites mínimo e máximo também aí previstos (naturalmente, e conforme adiante
melhor se verá, em função da culpa do agente, segundo as regras gerais).
Sendo assim, já não se poderá dizer que
ela contraria o disposto no artigo 30º, nº 4, da Constituição, mesmo quando se
entenda que a 'faculdade de conduzir' deva ser qualificada como um dos direitos
civis a que se reporta aquela disposição, o que se não afigura, aliás,
inteiramente líquido.
Só há perda de direitos como efeito
automático da pena quando tal perda se produz ope legis, isto é, quando resulta
directamente da lei. É um efeito deste tipo que o artigo 30º, nº 4, da
Constituição proíbe terminantemente, ao dispor que 'nenhuma pena envolve, como
efeito necessário, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou
políticos'.
É que, conforme se reafirmou no citado
Acórdão nº 224/90, com aquele preceito constitucional pretendeu-se proibir que,
em resultado de certas condenações penais, se produzissem automaticamente, pura
e simplesmente, ope legis efeitos que envolvessem a perda de direitos civis,
profissionais e políticos. Mas não se pretendeu impedir que a sentença
condenatória pudesse decretar essa perda de direitos em função de uma graduação
da culpa, feita casuisticamente pelo juiz.
6. A isto, o defensor do arguido objecta,
porém, o seguinte:
O facto de a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir
'ser de aplicação jurisdicional' e dos 'amplos poderes do julgador para graduar
a pena entre um máximo e um mínimo' não altera o sentido constitucional da
limitação de qualquer pena envolver, como efeito necessário, a perda dos
direitos civis, profissionais ou políticos.
É que, o poder jurisdicional do julgador, perante esta norma legal
perde o poder de a aplicar, ou não, uma vez que está acopulada a outra e que tem
'ope legis' de ser decretada, restando apenas ao julgador a possibilidade de
graduar a medida de inibição, atendendo a outras circunstâncias ligadas aos
factos e não ao dolo ou negligência em si, mas apenas quanto à intensidade
destes, e não quanto à intencionalidade do agente.
Assim, a discricionaridade judicial apenas se mantém quanto à
medida da pena acessória, dentro da moldura fixada por lei, mas sem
possibilidades de determinar essa medida 'em função da culpa do agente', mas,
por força da lei, ao aplicar a pena principal, não poderá evitar, como
consequência necessária, a perda de direitos que a sanção acessó-ria envolve.
Isto é: de nada valeria que ao julgador
tivesse sido dada a possibilidade de graduar a inibição dentro dos amplos
limites que a lei prevê (seis meses a cinco anos), se afinal ele não pudesse
fazê-lo em função da culpa do agente, mas sim e apenas em função de outras
circunstâncias que nada têm a ver com essa culpa (como a perigosidade deste, ou
a danosidade social do facto). Pois nesse caso, e como nota a defesa, estaríamos
aqui, afinal, perante uma medida de segurança, 'agora disfarçada de pena
acessória'.
Só que nada permite pressupor, como o faz
a defesa, que a inibição pode ser aqui graduada em função de critérios que não
tenham como referência primacial a culpa do agente (e ainda menos que tenham
como referência a perigosidade deste).
7. Para demonstrá-lo, retomemos as
alegações apresentadas pela defesa:
Assim, a discricionaridade judicial apenas se mantém quanto à medida
da pena acessória, dentro da moldura fixada por lei, mas sem possibilidades de
determinar essa medida 'em função da culpa do agente', mas, por força da lei,
ao aplicar a pena principal, não poderá evitar, como consequência necessária, a
perda de direitos que a sanção acessó-ria envolve.
Nas penas principais de prisão e multa, a graduabilidade pode ser
estabelecida pelo julgador, segundo os critérios apontados na lei, que podem
levar à substituição de penas mais graves por menos graves, de prisão por multa,
ou até à sua suspensão ou isenção da própria pena.
Na pena acessória de inibição, tais critérios não são aplicáveis,
visto que, desde que a pena principal seja imposta, necessariamente acrescerá a
sanção acessória e esta não pode ser substituída, suspensa ou isenta, a não ser
acopulada à pena principal.
[...]
Não se trata de uma discricionaridade judicial na aplicação (ou não
aplicação) de determinadas sanções acessórias, mas uma impossibi-lidade legal
de não aplicar uma sanção acessória, que envolve aqueles efeitos.
Seria uma contradição do sistema, não permitir a Lei
Constitucional que os efeitos de uma pena não pudessem ferir os direitos
fundamentais e aceitar que, como efeito de uma pena principal (prisão ou multa)
aplicável ou aplicada, seja acopulada uma sanção acessória que envolve a perda
de direitos civis, profissionais ou políticos.
Não se pode, assim, aceitar que o legislador tenha devolvido ao
julgador a aplicação de duas sanções, uma das quais em função da culpa e, outra,
'ope legis' em função de interesses em causa ou do comportamento ou
perigosidade do agente.
Seria manter um dualismo que o nosso sistema penal afastou no
actual Código Penal, aplicando ao mesmo delinquente, e pelo mesmo facto, uma
pena principal e uma medida de segurança, agora disfarçada de pena acessória.
Na decisão recorrida, não está em causa a existência, ou não, de
circunstâncias excepcionais de especial valor atenuativo que fossem
susceptíveis de tornar inteligível a não aplicação ao arguido da inibição da
faculdade de conduzir, mas sim a impossibilidade de o julgador poder decidir
entre aplicar, ou não aplicar, aquela inibição.
Tais circunstâncias, mesmo se existissem, nunca poderiam, face ao
imperativo da norma em causa, levar o julgador à não aplicabilidade da inibição,
visto que apenas teriam repercussão na medida da pena principal [...].
Mas até que ponto tais circunstâncias alterariam a medida mínima de
inibição se a culpa revestisse a forma dolosa ou negligente ?
É que o legislador ao fixar idêntica medida para os n.os 1 e 2 do
art. 2º do DL nº 124/90, não deixou ao julgador o poder discricionário de, em
função da culpa, poder reduzir a medida mínima (6 meses) que é aplicável tanto
ao facto imputável a título de dolo, quanto ao facto imputável a título de
negligência.
A norma em causa desrespeita, assim, quer o princípio da culpa, quer
o princípio da proporciona-lidade.
A gravidade social do comportamento do infractor ou a perigosidade
deste, não são factos que possam ser imputados e que levem à aplicação de uma
pena, mas circunstâncias que poderão influir na apreciação do delinquente e,
como tal, na aplicação ou não da pena principal, na sua substituição ou isenção,
mas não na aplicação (ou não aplicação) da pena acessória, nem na medida desta,
se a moldura mínima é igual quer estejamos perante uma infracção por
negligência, quer por dolo.
Levantam-se aqui, em resumo, as seguintes
censuras: a inibição não pode ser graduada pelo juiz em função da culpa do
agente (no fundo, é uma medida de segurança disfarçada de pena acessória); como
também 'não pode ser substituída, suspensa ou isenta, a não ser acopulada à pena
principal'; e o juiz, se houver lugar à pena principal, não pode deixar de
aplicar também a inibição.
Ora, desde logo, em lado algum do diploma
em apreço se determina que o juiz deva ter em conta apenas a perigosidade do
condutor ao aplicar a inibição; mas, sobretudo, também não se diz que ela não
deve ser graduada em função da culpa do agente.
Pelo contrário, e admitindo que a
inibição é configurada como uma pena acessória (como o diploma expressamente a
designa), ao determiná-la em concreto o tribunal não poderá deixar de ter
presente o disposto no artigo 72º, nº 2, alínea b), do Código Penal, que manda
ter em conta a intensidade do dolo ou da negligência (como não pode deixar de
ter em conta as demais alíneas). Esta norma terá de ser considerada em conjunto
com a do artigo 4º, nº 2, alínea a) do Decreto-Lei nº 124/90, e dessa
conjugação resulta claramente salvaguardado o princípio da culpa.
Mas, ainda que se considere que em rigor,
do ponto de vista doutrinário, a inibição é antes um efeito da pena, o simples
facto de o legislador a ter qualificado como 'pena acessória' e de lhe ter
atribuído uma moldura abstracta entre um limite mínimo e máximo, impõe que se
lhe apliquem os critérios de graduação já referidos, como se de uma verdadeira
pena se tratasse.
No Acórdão nº 442/93, Diário da
República, II Série, de 19 de Janeiro de 1994, o Tribunal Constitucional,
examinando a norma do artigo 34º, nº 2, do Decreto-Lei nº 430/83, de 13 de
Setembro (que previa a expulsão de estrangeiros condenados por crimes
relacionados com tráfico e consumo de drogas), notou o seguinte:
...Quando a lei impõe ao juiz que, ao condenar um arguido por certo crime, lhe
aplique obrigatoriamente determinada pena acessória, independentemente de ela
se justificar à luz dos critérios de aplicação concreta da pena, ou que lha
aplique em medida tal que as necessidades de prevenção de futuros crimes podem
não ser capazes de justificar, não permite que, ao punir, o juiz se oriente,
como deve, pelos critérios da necessidade e da proporcionalidade das penas, que,
não obstante, também a si obrigam. Ao cabo e ao resto, uma tal lei não deixa ao
juiz a margem de liberdade de que ele deve gozar para que seja, como deve,
garante de que, ao punir, se puna apenas na medida do que é necessário, tendo em
conta a gravidade do ilícito, a culpa do agente e as exigências de prevenção de
futuros crimes (cf. artigo 72º do Código Penal).
Nesse acórdão, estava-se a examinar uma
decisão judicial que havia aplicado uma medida acessória de expulsão por dez
anos, sem a ter fundamentado devidamente. O Tribunal considerou que, ao aplicar
a expulsão sem a justificar devidamente, aquela decisão judicial havia tomado a
norma em causa com o sentido de que a pena acessória aí prevista seria um
efeito automático da condenação; e que, com esse sentido, a norma violava o
artigo 30º, nº 4, da Constituição.
Ora, no caso da inibição da faculdade de
conduzir, e como vimos, nada permite interpretar a norma do artigo 4º, nº 2,
alínea a), do Decreto-Lei nº 124/90, no sentido de que a medida a aplicar não
deva ser devidamente fundamentada, quer a consideremos uma pena acessória, quer
a consideremos um efeito da pena.
8. Mas (e é esta a segunda questão
levantada pelo tribunal recorrido e que a defesa também retoma) haverá violação
do princípio da culpa por a moldura legal daquela inibição não distinguir entre
a actuação dolosa e a actuação negligente ?
Também não.
Os limites máximo e mínimo fixados no
artigo 4º, alínea a), do diploma são suficientemente amplos (seis meses a cinco
anos de inibição) para permitir uma graduação justa, em função da imputação do
facto a título de dolo ou de negligência. É certo que a medida mínima de seis
meses é aplicável tanto ao caso de dolo como ao caso de negligência;
simplesmente, isso não significa que o juiz possa mecanicamente aplicar a mesma
medida num caso ou noutro; terá de graduá-la, em obediência aos critérios legais
já referidos, designadamente em função da maior ou menor intensidade do dolo ou
da negligência.
9. É certo que o juiz, caso haja lugar à
aplicação da pena principal, não pode deixar de aplicar também a inibição.
Mas essa circunstância em nada afecta o
princípio da culpa, e nem sequer é uma característica específica da pena
acessória.
Na verdade, o mesmo acontece nos
numerosos casos em que a lei prevê, para um dado facto ilícito, a aplicação de
uma pena de prisão e multa. Também nesses casos, quando aplica a pena de prisão,
o juiz não pode deixar de aplicar igualmente a de multa. Não há aí, como não há
aqui, qualquer violação do princípio da culpa.
De todo o modo, bem se compreende que, em
infracções com a natureza daquela a que se reportam os autos, o legislador
preveja a aplicação da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, como
se de uma pena principal se tratasse: isto é, a aplicação da pena resulta da
prova da prática do facto ilícito e da culpa, sem necessidade de se provarem
factos adicionais. É que não deixa de haver uma óbvia conexão entre a inibição
e o facto ilícito. Pois se talvez pudesse questionar-se a medida no caso de não
ter qualquer conexão com a infracção praticada, não se poderá negar que neste
caso tal conexão existe: é por ter violado de forma intensa os seus deveres
enquanto condutor que o agente é privado temporariamente da faculdade legal de
conduzir.
E também não há violação do princípio da
culpa se o juiz, ao aplicar a pena de prisão, tem de aplicar também a inibição
de conduzir, não podendo optar pela dispensa ou suspensão desta medida. Pois o
mesmo acontece quando se condena em prisão e multa: o juiz não pode suspender a
pena de prisão aplicada conjuntamente com a multa sem suspender igualmente esta
última. E também é assim quanto à dispensa de pena, como decorre do artigo 75º
do Código Penal.
Finalmente, e ainda que se entenda que a
substituição da inibição da faculdade de conduzir por caução de boa conduta,
referida no nº 3 do artigo 61º do Código da Estrada então vigente, não é
aplicável ao caso dos autos, cabe assinalar que a substituição é uma faculdade
legal que a Constituição não impõe.
10. E o princípio da proporcionalidade
das penas em nada é vulnerado por a moldura abstracta da inibição (seis meses a
cinco anos) ser superior, nos seus limites mínimo e máximo, às molduras
abstractas da prisão (um mês a um ano) ou da multa (10 a 200 dias): na verdade,
sendo medidas sancionatórias com diferentes naturezas, elas não podem ser
comparadas entre si, cabendo ao juiz estabelecer uma correcta proporção na sua
determinação concreta, de acordo com os critérios estabelecidos no já citado
artigo 72º do Código Penal.
Efectivamente, nada autoriza a pensar que
o número de dias da moldura abstracta da inibição tenha de ser idêntico ao
número de dias da prisão ou ao da multa. Aliás, nem mesmo entre a prisão e a
multa pode ser feita uma equivalência deste tipo: apesar de a lei estabelecer
critérios para a substituição da prisão por multa (artigo 43º do Código Penal) e
para a determinação da prisão alternativa (artigo 46º, nº 3, do Código Penal),
nunca pode haver uma igualdade entre as molduras abstractas respectivas, desde
logo porque a lei começa por fixar em geral o mínimo da multa em 10 dias e o
mínimo da prisão em 30 dias (artigos 40º, nº 1, e 46º, nº 1, do Código Penal), e
estatui em especial limites mínimos e máximos muito diversificados.
11. Por último, poder-se-ia perguntar se
a distância entre o mínimo e o máximo da inibição que a norma em apreço
estabelece - numa proporção de um para dez - não
desrespeitará o princípio da legalidade. No entanto, e tal como já foi observado
no Acórdão nº 667/94 (Diário da República, II Série, de 24 de Fevereiro de
1995), tendo em consideração, desde logo, que nos encontramos, aqui, perante uma
pena acessória e não perante uma pena principal, o Tribunal entende que no caso
não se poderá afirmar que esse princípio se acha vulnerado.
Assim, e em conclusão, a norma em apreço
não padece das inconstitucionalidades apontadas, conforme já se concluíra
igualmente no mencionado Acórdão nº 667/94, cuja doutrina, portanto o Tribunal
aqui reitera.
III - DECISÃO
11. Nestes termos, concede-se provimento
ao recurso.
Lisboa, 15 de Março de 1995
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
José de Sousa e Brito
José Manuel Cardoso da Costa