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Procº nº 491/92
Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório.
1.M... foi autuada pela prática de uma contravenção prevista no
artigo 14º, nº 3, alínea m), do Código da Estrada, e punida pelo nº 7 do mesmo
artigo deste diploma, com a multa de 2 000$00, em virtude de, no dia 26 de
Fevereiro de 1992, pelas 11,h e 35m, no Terreiro D. João V, em Mafra, ter
estacionado o seu veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-.., 'em
zona de estacionamento limitado por parcómetro sem pagar a respectiva taxa'.
Em face do não pagamento voluntário da multa, foi o auto de
transgressão remetido pela PSP ao Tribunal Judicial da Comarca de Mafra, nos
termos e para os efeitos dos artigos 70º, nº 2, do Código da Estrada e 1º, nº 1,
alínea a), do Decreto-Lei nº 387-E/87, de 29 de Dezembro.
Após a marcação do dia, hora e local para a audiência de julgamento,
mas antes da sua realização, proferiu o Mmº Juiz, com data de 19 de Junho de
1992, despacho, no qual concluiu pela inexistência de qualquer ilícito
contravencional cometido pela arguida, absolvendo, consequentemente, a mesma e
ordenando o arquivamento dos autos. Para chegar a uma tal conclusão, considerou
o Mmº Juiz que as normas da alínea m) do nº 3 do artigo 14º do Código da
Estrada, bem como as dos seus nºs. 7 a 11 (pelo menos, e relativamente à do nº
7, no que se refere às zonas de estacionamento de duração limitada) são
organicamente inconstitucionais, uma vez que a criação de contravenções
constitui matéria que se integra na reserva relativa de competência legislativa
da Assembleia da República, pelo que deveria constar de lei proveniente deste
órgão de soberania ou de decreto-lei alicerçado em autorização legislativa e,
por isso, recusou a sua aplicação ao caso concreto.
É o seguinte o conteúdo do referido despacho:
'Questão prévia:
Vem M... acusada da prática de uma contravenção prevista no artigo
14º, nº 3, alínea m), e nº 7, do Código da Estrada, em virtude de se encontrar
numa zona de estacionamento de duração limitada, sem que tivesse pago a
respectiva taxa de utilização.
Vejamos então:
Estipula a alínea m) do nº 3 do artigo 14º do Código da Estrada que
'é proibido estacionar em zonas de estacionamento de duração limitada, sem pagar
a respectiva taxa de utilização'.
Tal alínea, bem como os nºs 7 a 11 do referido artigo 14º do Código
da Estrada foram introduzidos pelo Decreto Regulamentar nº 32/85, de 9 de Maio.
Ora, não se levantam dúvidas que, ao introduzir tais novas
disposições legais, o referido Decreto Regulamentar cria um novo tipo de ilícito
contravencional (uma vez que determina como comportamento ilícito, em termos de
transgressão, uma conduta que até aí o não era), criando igualmente as sanções
para tal tipo de ilícito.
Sucede todavia que a Assembleia da República tem reserva (se bem que
relativa), de competência legislativa, no que se refere à definição dos actos
ilícitos (crimes, contravenções e contra-ordenações), bem como das respectivas
penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos.
Ora, e uma vez que a matéria respeitante a contravenções se engloba
no Direito Criminal, só à Assembleia da República competiria legislar sobre tal
matéria. Aliás, e mesmo que se tratasse da criação de ilícitos de mera ordenação
social, a conclusão a que se chegaria seria idêntica (vd. artigo 168º, nº 1,
alíneas c) e d) da Constituição da República Portuguesa).
Uma vez que se trata de matéria sobre a qual a Assembleia da
República tem competência relativa, poderia ter permitido ao Governo que
legislasse sobre tal matéria (em forma de Decreto-Lei). Mas para que tal pudesse
suceder, teria de ter sido conferida a competente autorização legislativa
(artigo 201º, nº 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa).
Ora tal autorização legislativa não foi concedida (nem, tanto quanto
se sabe, foi sequer requerida).
No preâmbulo do referido Decreto Regulamentar, o Governo faz
referência ao artigo 202º, alínea c), da Constituição da República Portuguesa,
procurando 'explicar' a ausência de autorização legislativa.
Reza tal alínea o seguinte: 'compete ao Governo, no exercício de
funções administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das
leis'.
Ora, a criação de uma nova contravenção não é seguramente matéria
regulamentar.
Na verdade, na definição de Marcello Caetano, Manual de Direito
Administrativo,vol. I, págs. 95 e 96, 10ª edição, entende-se por regulamento a
'norma jurídica de carácter geral e execução permanente dimanada de uma
autoridade administrativa sobre matéria própria da sua competência',
distinguindo-se o regulamento da lei, pelas razões seguintes:
'a) o regulamento só pode estatuir na medida em que a lei lho
consinta: - dentro dos limites por ela marcados -; ou para execução das suas
normas; ou sobre as matérias por ela abandonadas;
b) o regulamento não vale em tudo aquilo que contrariar o disposto
na lei que executa ou a cuja sombra nasce'.
Assim sendo, há que concluir que não pode caber a um mero decreto
regulamentar a criação de um novo tipo de infracção, nem a consequente punição
para tal comportamento (tal decreto poderia apenas regulamentar, de forma a
tornar exequível a perseguição de tal ilícito).
Tal faculdade está reservada pela Lei Constitucional, à Assembleia
da República, ou ao Governo, caso e dentro dos limites estabelecidos pela
competente e prévia autorização legislativa.
Concluimos assim pela inconstitucionalidade da alínea m) do nº 3 do
artigo 14º do Código da Estrada, bem como dos seus nºs 7 a 11 (pelo menos, e
relativamente ao nº 7, no que se refere às zonas de estacionamento de duração
limitada).
Ora, atenta a posição atrás defendida e uma vez que consideramos
tais preceitos inconstitucionais, o estacionamento em tais zonas, sem pagamento
de qualquer quantia, não constitui qualquer tipo de ilícito contravencional. Com
efeito, e atento tal vício, as disposições atrás referidas não podem ser
aplicadas quer pelos agentes de autoridade, quer pelos tribunais.
Pelo exposto, conclui-se pela inexistência de qualquer ilícito
contravencional cometido pelo arguido, em virtude da alegada
inconstitucionalidade, absolvendo-se o mesmo, em consequência e ordenando-se o
arquivamento dos autos ...'(sublinhados na origem).
3. Deste despacho interpôs a Representante do Ministério Público
obrigatoriamente o presente recurso para o Tribunal Constitucional - tendo a
mesma, no requerimento, por manifesto lapso, referido que naquele apenas se
recusou a aplicação da norma da alínea m) do nº 3 do artigo 14º do Código da
Estrada, a qual foi introduzida no ordenamento jurídico pelo Decreto
Regulamentar nº 32/85, de 9 de Maio -, ao abrigo dos artigos 70º, nº 1, alínea
a), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro).
4. O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal conclui
assim as suas alegações:
1º. As normas do nº 3, alínea m), e do nº 7, 3º segmento, do artigo 14º do
Código da Estrada, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto Regulamentar nº
32/85, de 9 de Maio, na parte em que estabelecem que o estacionamento em
zonas de estacionamento de duração limitada sem pagar a respectiva taxa de
utilização é punido com multa de 2 000$00 a 10 000$00 não são inconstitucionais,
pois não violam nenhum princípio ou preceito constitucional, designadamente os
artigos 168º, nº 1, alínea c) e d), e 115º, nº 5, da Constituição.
2º. Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
5. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II - Fundamentos.
6. Foram as seguintes as alterações introduzidas pelo Decreto
Regulamentar nº 32/85, de 9 de Maio, no artigo 14º do Código da Estrada:
'Artigo 14º
1 - ........................................
2 - ........................................
3 - ........................................
m) Em zonas de estacionamento de duração
limitada sem pagar a respectiva taxa de
utilização.
4 - ........................................
5 - ........................................
6 - ........................................
7 - A infracção ao disposto neste artigo será punida com a multa de 1
000$00 a 5 000$00 para o estacionamento em local de paragem proibi- da, de 3
000$00 a 15 000$00 quando se trate de estacionamento de noite nas faixas de
rodagem fora das localidades e de 400$00 a 2000$00 para as restantes
contravenções ao disposto no referido artigo.
Nos casos da alínea m) do nº 3 e do nº 8, ao montante da multa acrescerá
sempre o montante da taxa de utilização porventura em dívida, a ser remetida à
câmara municipal respectiva.
8- Constitui infracção ao disposto neste artigo a utilização de zonas de
estacionamento de duração limitada quando não for cumprido o respectivo
regulamento.
9- Poderão ser bloqueados os veículos estacionados em infracção ao disposto
na alínea m) do nº 3 e no nº 8 do presente artigo. Tais veículos poderão
igualmente ser removidos nos termos da legislação em vigor.
10- O bloqueamento previsto no número anterior pode ser efectuado pelos
vigilantes das zonas de estacionamento de duração limitada.
11- Os vigilantes das zonas de estacionamento de duração limitada
procederão à denúncia, junto das entidades competentes para a fiscalização, das
infracções ao disposto neste artigo, notificando sempre que possível o infractor
de tal denúncia'.
Como resulta do despacho recorrido, o Mmº Juiz julgou
inconstitucionais as normas dos nºs. 3, alínea m), e 7 a 11 do artigo 14º do
Código da Estrada, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto Regulamentar nº
32/85, e recusou a sua aplicação ao caso concreto. Todavia, nem todas as
referidas normas eram susceptíveis de ser convocadas pelo caso concreto, pelo
que não foram todas elas efectivamente desaplicadas pelo Mmº Juiz a quo .Como se
salientou no Acórdão nº 257/92 (publicado no Diário da República, II Série, nº
141, de 18 de Junho de 1993), a 'apreciação das questões de constitucionalidade
por parte do Tribunal Constitucional no domínio dos processos de fiscalização
concreta, radiquem elas em decisões de rejeição ou de acolhimento ..., está
condicionada, consoante os casos, a uma efectiva aplicação da norma cuja
inconstitucionalidade havia sido suscitada durante o processo, ou a uma
potencialidade de aplicação dessa norma, isto é, não fora a sua rejeição com
base em inconstitucionalidade, a norma seria aplicável como fundamento
jurídico-normativo da decisão impugnada'.Ora, atenta a factualidade dos autos de
transgressão, o conteúdo das normas transcritas do artigo 14º do Código da
estrada e a fundamentação do despacho recorrido verifica-se que não foram
verdadeiramente objecto de desaplicação, como bem salienta o Exmº
Procurador-Geral Adjunto,as normas dos nºs. 8,9,10,11, do primeiro e segundo
segmentos da primeira parte e da segunda parte do nº 7 daquele artigo 14º, pelo
que não podem as mesmas ser incluidas no objecto do presente recurso.
Integram, assim, o objecto do recurso de constitucionalidade a
questão da inconstitucionalidade das normas do nº 3, alínea m), e do nº
7,terceiro segmento da primeira parte - precisamente aquela que estabelece a
multa correspondente à contravenção descrita naquela alínea m) do nº 3 -, do
artigo 14º do Código da Estrada, na versão do Decreto Regulamentar nº 32/85, de
9 de Maio, as quais determinam que o estacionamento em zonas de estacionamento
de duração limitada sem pagar a respectiva taxa de utilização é punido com a
multa de 2 000$00 a 10 000$00 (estes montantes - que antes oscilavam entre
400$00 e 2 000$00 - resultam da aplicação dos artigos 1º e 9º do Decreto-Lei nº
240/89, de 26 de Julho, diploma que estabeleceu o aumento dos montantes das
multas previstas para as infracções ao Código da Estrada, respectivo Regulamento
e diversa legislação complementar).
7. No despacho recorrido, o Mmº Juiz sufragou a tese segundo a qual
a definição de contravenções (de quaisquer contravenções) faz parte da reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República. De acordo com
esta óptica, uma vez que as normas desaplicadas criam 'um novo tipo de ilícito
contravencional' e o diploma em que se integram foi editado pelo Governo sem
autorização legislativa, são as mesmas inconstitucionais. Na opinião do tribunal
a quo, a inconstitucionalidade das normas acima identificadas resultaria, por um
lado, de elas constarem de um diploma governamental carecido de autorização
legislativa e, por outro lado, de elas terem sido editadas sob a veste de um
regulamento do Governo (decreto regulamentar) e não de um diploma legal
(decreto-lei).
Analisemos a referida questão de constitucionalidade, nas duas
vertentes assinaladas.
7.1. Adiante-se, desde já, que a tese da inclusão na reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República da matéria da
definição de todas e quaisquer contravenções, incluindo as não puníveis com pena
restritiva de liberdade, não merece o acolhimento deste Tribunal.
Não existe na Constituição, quer na versão originária, quer nas
versões decorrentes das três revisões que se lhe seguiram, qualquer referência
ao ilícito contravencional e às contravenções. Os únicos ilícitos de direito
público acolhidos na Lei Fundamental são o ilícito criminal, o ilícito de mera
ordenação social e o ilícito disciplinar. A eles se refere o artigo 168º, nº 1,
alíneas c) e d), da Constituição, o qual, versando sobre a reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República, dispõe o seguinte:
'1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
(...)
c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
pressupostos, bem como processo criminal:
d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos
ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;
(...)'.
O silêncio da Constituição a propósito do ilícito contravencional
relaciona-se com o conhecido movimento da discriminalização, cujo propósito foi
o de retirar dos quadros do direito penal um larguíssimo número de infracções de
nula ou duvidosa relevância ética, cujo número vem aumentando no actual Estado
social de direito, devido ao seu pendor crescentemente intervencionista,
reservando ao direito penal a tutela dos valores que constituem o 'mínimo ético'
essencial à vida em comunidade [cfr. Eduardo Correia, Direito Penal e Direito de
Mera Ordenação Social, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, vol. XLIX (1973), p. 266, e J. Figueiredo Dias, o Movimento da
Discriminalização e o Ilícito de Mera Ordenação Social,in Jornadas de Direito
Criminal, O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, Lisboa,
Petrony, 1983, p. 322), e que teve a sua primeira consagração legal, no nosso
país, com o Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, mais tarde revogado e
substituído pelo Decreto-Lei nº 433/82, de 7 de Outubro, actualmente em vigor.
O propósito, iniciado com o Decreto-Lei nº 232/79, de acabar com a
figura jurídica das contravenções não veio a ter sequência (o nº 3 do seu
artigo 1º equiparava às contra--ordenações as contravenções puníveis com
sanções pecuniárias, mas foi revogado pelo Decreto-Lei nº 411-A/79, de 1 de
Outubro), coexistindo, por isso, neste momento, ao nível do direito
sancionatório público, as figuras de crime, contra-ordenação e contravenção. A
noção legal de contravenção, face ao estabelecido no artigo 7º do Decreto-Lei nº
400/82, de 23 de Setembro ('Mantêm-se em vigor as normas de direito substantivo
e processual relativas a contravenções'), é a constante do artigo 3º do Código
Penal de 1886 - 'Considera-se contravenção o facto voluntário punível, que
unicamente consiste na violação, ou na falta de observância das disposições
preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção
maléfica'. O direito estradal continua a afirmar-se como o campo de eleição da
subsistência do ilícito contravencional.
Como acentuou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº 56/84
(publicado no Diário da República, I Série, nº 184, de 9 de Agosto de 1984), a
necessidade de harmonização da subsistência jurídica das contravenções com a
omissão de um explícito referente constitucional 'postula a interpretação de que
a alínea c) do nº 1 do artigo 168º da Constituição respeita tão-só a 'crimes e
penas' em sentido estrito ... e, bem assim, a interpretação de que, em vista do
estreito parentesco existente entre os ilícitos contra-ordenacionais e
contravencionais, a alínea d) do nº 1 do artigo 168º da Constituição abrangerá
eventualmente o ilícito transgressional. Quer isto significar que, embora o
Governo possa livremente legislar sobre a criação e extinção de contravenções
não puníveis com pena restritiva de liberdade, já não poderá legislar, salvo
autorização da Assembleia da república, sobre o regime geral de punição das
contravenções e do respectivo processo'.
A demarcação das competências legislativas da Assembleia da
República e do Governo em matéria de direito sancionatório público foi traçada
com rigor pelo já citado Acórdão deste Tribunal nº 56/84, passando a linha aí
gizada a ser trilhada em múltiplos arestos posteriores [cfr., inter alia, os
Acórdãos nºs. 324/90 e 329/92, o primeiro publicado no Diário da República, II
Série, nº 65, de 19 de Março de 1991, e o segundo no mesmo Jornal Oficial, I
Série-A, nº 264, de 14 de Novembro de 1992).
Nos termos daquele primeiro aresto, 'é da exclusiva competência da
Assembleia da República, salvo autorização legislativa ao Governo (e admitindo
hipoteticamente a subsistência constitucional da figura da contravenção):
a) Definir crimes e penas em sentido estrito, o que comporta o poder de
variar os elementos constitutivos do facto típico, de extinguir modelos de
crime, de desqualificá-los em contravenções e contra-ordenações e de alterar
penas previstas para os crimes no direito positivo;
b) Legislar sobre o regime geral de punição das contra-ordenações e
contravenções e dos respectivos processos;
c) Definir contravenções puníveis com pena de prisão e modificar o quantum
desta;
É da competência concorrente da Assembleia da República e do Governo
(e na mesma linha de hipotética sobrevivência constitucional do tipo
contravencional):
a) Definir, dentro dos limites do regime geral, contravenções não puníveis
com pena restritiva de liberdade e contra-ordenações, alterar e eliminar umas e
outras e modificar a sua punição;
b) Desgraduar contravenções não puníveis com pena restritiva de liberdade
em contra-orde-nações, com respeito pelo quadro traçado pelo Decreto-Lei nº
433/82'.
O artigo 14º, nº 3, alínea m), e nº 7, do Código da Estrada, na
redacção do Decreto Regulamentar nº 32/85, de 9 de Maio, determina que constitui
contravenção punível com multa de 400$00 a 2 000$00 (2 000$00 a 10 000$00 após a
alteração introduzida pelos artigos 1º e 9º do Decreto-Lei nº 240/89, de 26 de
Julho) o estacionamento em zonas de estacionamento de duração limitada sem pagar
a respectiva taxa de utilização, tipificando, assim, um ilícito contravencional
não punível com pena restritiva de liberdade. Ora, podendo o Governo, de acordo
com a jurisprudência uniforme e constante do Tribunal Constitucional, legislar
livremente sobre a criação de contravenções não puníveis com pena restritiva de
liberdade, as normas desaplicadas pelo despacho recorrido não infringem o
disposto no artigo 168º, nº 1, alíneas c) e d), da Lei Fundamental, pelo que não
são inconstitucionais.
7.2. É altura de analisar a segunda vertente da questão de
constitucionalidade suscitada pelo presente processo, a qual consiste em saber -
repete-se - se a matéria constante das normas desaplicadas pelo tribunal a quo
podia constar de um regulamento governamental, in casu, um decreto regulamentar.
Salienta-se no despacho recorrido que 'a criação de uma nova
contravenção não é seguramente matéria regulamentar' e que 'não pode caber a um
mero decreto regulamentar a criação de um novo tipo de infracção, nem a
consequente punição para tal comportamento (tal decreto poderia apenas
regulamentar, de forma a tornar exequível, a perseguição de tal ilícito)'. Este
trecho do despacho lavrado pelo Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de
Mafra, onde se contesta a legitimidade constitucional do instrumento normativo
(o decreto regulamentar) utilizado para criar o tipo contravencional referido,
impõe que o Tribunal confronte as normas desaplicadas com o artigo 115º, nº 5,
da Constituição (preceito aditado pela Lei Constitucional nº 1/82). Na verdade,
tendo o Código da Estrada sido aprovado por um diploma de natureza legislativa
(o Decreto-Lei nº 39 672, de 20 de Maio de 1954), pode questionar-se se a sua
alteração por diploma de natureza regulamentar (o Decreto-Regulamentar nº 32/85,
de 9 de Maio) viola o preceituado no artigo 115º, nº 5, da Lei Fundamental, onde
se estabelece que 'nenhuma lei pode criar outras categorias de actos
legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia
externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos
seus preceitos'.
Consagram-se neste dispositivo constitucional os princípios da
preeminência e da tipicidade dos actos legislativos. Ele constitui, no dizer de
J.J.Gomes Canotilho (cfr. Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina,
1991, p. 791), 'a refracção de um princípio básico do sistema de normas sobre a
produção jurídica e que pode sintetizar-se do seguinte modo: nenhuma fonte pode
criar outras fontes com eficácia igual ou maior que a dela própria; pode apenas
criar fontes de eficácia inferior' (cfr. também J.J. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, Coimbra
Editora, 1993, p. 510-513).
Deixando agora de lado a problemática do sentido e alcance do artigo
115º, nº 5, da Constituição, no concernemente aos regulamentos interpretativos e
integrativos (cfr., quanto aos primeiros, o Acórdão deste Tribunal nº 1/92,
publicado no Diário da República, I Série-A, nº 43, de 20 de Fevereiro de 1992),
é seguro que aquele preceito proíbe o legislador de habilitar a Administração a
emanar regulamentos que modifiquem, suspendam, revoguem ou derroguem uma
disposição legal (cfr. o Acórdão deste Tribunal nº 266/92, publicado no Diário
da República, II Série, nº 271, de 23 de Novembro de 1992). O destinatário da
proibição inserta no artigo 115º, nº 5, da Lei Fundamental é o legislador, pelo
que aquele preceito não veda a modificação, suspensão, revogação ou derrogação
de actos de natureza regulamentar através de outros actos regulamentares, como
vem acentuando o Tribunal Constitucional em jurisprudência uniforme e constante
(cfr. os Acórdãos nºs. 303/85, 270/88, 389/89 e 458/89, publicados no Diário da
República, II Série, nº 83, de 10 de Abril de 1986, nº 38, de 15 de Fevereiro de
1989, nº 211, de 13 de Setembro de 1989, e nº 25, de 30 de Janeiro de 1990,
respectivamente).
Tendo em conta o entendimento que vem de ser exposto do artigo 115º,
nº 5, da Constituição, deverá considerar-se que as normas do nº 3, alínea m), e
do nº 7, terceiro segmento da primeira parte, do artigo 14º do Código da
Estrada, na redacção do Decreto Regulamentar nº 32/85, violam aquele preceito
constitucional? A resposta é claramente negativa. Com efeito, como vinca o Exmº
Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, o artigo 1º do Decreto-Lei nº 39
672, de 20 de Maio de 1954, que aprovou o Código da Estrada, estabelecia no seu
§ único que 'o código pode ser alterado por decretos simples ...'.Ao abrigo
deste dispositivo, o Decreto nº 837/76, de 29 de Novembro, alterou por completo
a redacção originária do artigo 14º do Código da Estrada, vindo este artigo
assim alterado mais tarde a ser modificado pelo Decreto Regulamentar nº 32/85.
Ora, sendo o § único do artigo 1º do Decreto-Lei nº 39 672 anterior
à revisão constitucional de 1982 (que introduziu no nosso ordenamento
constitucional a proibição constante do nº 5 do artigo 115º), está ele apenas
ferido de mera inconstitucionalidade superveniente, pelo que são inteiramente
válidos e eficazes os diplomas emitidos à sua sombra até aquela data,
designadamente o referido Decreto nº 837/76, de 29 de Novembro.
Consequentemente, são igualmente válidos os actos regulamentares que, mesmo após
a entrada em vigor da revisão constitucional de 1982, modificaram, suspenderam
ou revogaram os preceitos do Código da Estrada que precedentemente já houvessem
sido validamente objecto de deslegalização (ou degradação do grau hierárquico),
porquanto se, antes da revisão constitucional de 1982, determinados preceitos do
Código da Estrada perderam a categoria e natureza de actos legislativos, sendo
degradados em actos regulamentares, ao abrigo do (então válido) § único do
artigo 1º do Decreto-Lei nº 39 672, nenhum vício de ilegalidade ou de
inconstitucionalidade se comete se, mesmo após a entrada em vigor daquela
revisão, tais preceitos (agora com categoria ou natureza regulamentar) forem
modificados, suspensos ou revogados por actos igualmente regulamentares, isto é,
por actos com o mesmo nível hierárquico.
Conclui-se, assim, que o Decreto Regulamentar nº 32/85, ao alterar o
artigo 14º do Código da Estrada, modificou um preceito que, precedentemente e
pelo Decreto nº 837/76, havia sido objecto de deslegalização, estando-se, por
isso, perante uma situação em que um preceito de natureza regulamentar foi
modificado por um acto igualmente de carácter regulamentar. As normas do artigo
14º do Código da Estrada objecto do presente recurso de constitucionalidade,
apesar de constarem de um decreto regulamentar (o Decreto Regulamentar nº 32/85,
de 9 de Maio), não infringem, pois, o artigo 115º, nº 5, da Lei Fundamental.
III- Decisão.
8. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se conceder
provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve
ser reformada de acordo com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 5 de Abril de 1995
Fernando Alves Correia
Bravo Serra
Luis Nunes de Almeida
José de Sousa e Brito
Messias Bento
Guilherme da Fonseca
José Manuel Cardoso da Costa