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Processo nº 299/95 ACÓRDÃO Nº 597/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- O Ministério Público, como curador de menores junto do Tribunal de Menores de Lisboa, recorreu para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do despacho de 3 de Abril de 1995, da Senhora Juíza desse Tribunal, que recusou a aplicação da norma do artigo 41º da Organização Tutelar de Menores (Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro) em autos de processo tutelar pendentes no 2º Juízo e referentes à menor A, neles identificada.
Escreveu-se na aludida decisão:
'A obstrução à intervenção de mandatário judicial no processo tutelar por parte dos representantes legais ou progenitores do menor, estipulada no artigo 41º da OTM, considera-se inconstitucional por se nos figurar violar tal preceito legal o disposto nos artigos 7º e 8º da DUDH, 6º e 13º da CEDH,
16º, nºs. 1 e 2, 20º e 36º, nºs. 5 e 7, 67º e 68º e 205º da Constituição da República Portuguesa, razão pela qual se recusa a aplicação daquele preceito legal e se admite a intervenção do ilustre advogado dos progenitores da menor dos autos no presente acto.'
2.- Nas alegações do recurso, formulou o Ministério Público as seguintes conclusões:
'1º- A parte final do nº 2 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa considera como elemento integrador do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais o direito ao patrocínio judiciário, que envolve a possibilidade de as partes ou sujeitos processuais se fazerem representar em quaisquer causas por profissional do foro.
2º-Ao impedir a constituição de mandatário judicial próprio no processo tutelar, salvo na fase de recurso, o artigo 41º da Organização Tutelar de Menores introduz uma restrição excessiva e desproporcionada, que atinge o conteúdo essencial daquele direito, impedindo que sejam assistidos por profissional do foro da sua confiança os sujeitos potencialmente afectados pelas medidas decretadas, em desconformidade com o disposto nos nºs. 2 e 3 do artigo
18º da Constituição.
3º- Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida.'
Os recorridos, B e C, não alegaram.
Correram-se os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II
1.- Constitui objecto do presente recurso conhecer da constitucionalidade da norma do artigo 41º da OTM, do seguinte teor:
'A intervenção de mandatário judicial só é admitido para efeitos de recurso'.
Ora, a respeito desta norma, a 2ª Secção deste Tribunal pronunciou-se recentemente em termos que se considera pertinente reproduzir.
Ponderou-se, com efeito, no acórdão nº 488/95, publicado no Diário da República, II Série, de 18 de Novembro de 1995:
'A actual OTM, aprovada pelo Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro, nasceu da necessidade de adaptar a orgânica dos tribunais de menores ao novo esquema de alterações introduzidas à organização dos Tribunais judiciais pela Lei nº 28/77, de 6 de Dezembro.
Esta lei repartiu pelos Tribunais de menores e o de família a competência que vinha sendo tradicionalmente atribuída aos primeiros.
Daí a necessidade de um novo diploma onde se opera uma profunda remodelação do sistema.
Como refere David Borges de Pinho (Da Protecção Judiciária dos Menores e do Estado, p. 15):
[C]om o Decreto-Lei nº 314/78, de 27 de Outubro (actual OTM), pretendeu--se sublinhar o carácter protector e educativo que se deseja vingar na jurisdição tutelar, e daí que, consequentemente, já não se fala em medidas de prevenção criminal. Assim, o acento tónico de tal jurisdição tutelar recai hoje nos aspectos proteccionistas, assistencial e educativo das medidas a aplicar pelos tribunais, muito embora não se possa olvidar que, protegendo-se judicialmente os menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através de tais medidas, estar-se-á, consequentemente, a efectivar todo um trabalho de prevenção criminal que, naturalmente e logicamente, não deixará de advir de uma aplicação atempada, correcta e ajustada de tais medidas.
Tendo o processo tutelar por fim a aplicação de medidas tutelares de protecção, assistência e educação a menores, é um processo de tramitação simples e resumida, que visa encontrar a medida mais adequada a essa finalidade.
Assim:
No processo não há acusação - nem as promoções do curador nem o seu parecer final constituem acusação, nos termos em que esta é entendida nem processo criminal comum;
Não se admitem nele assistentes - apenas se permitindo a intervenção de mandatário judicial na fase de recurso - artigos 40º e 41º;
Inexiste audiência de discussão e julgamento - em sistema de contraditório, como sucede no processo criminal comum.
«Tudo é simples e de execução sumária neste processo» (cf. Manuel de Oliveira Leal-Henriques, Organização Tutelar de Menores, p. 22).
5- Norteado pela regulação de um interesse primordial, que é o do interesse do menor, o processo tutelar é um processo em que a natureza da intervenção do juiz implica também o exercício de uma actividade que postula o contacto imediato do juiz com os interessados, que apela por vezes à sua capacidade imaginativa (cf. Manuel de Oliveira Leal-Henriques, ob., cit., p.
108) e que visa, antes de mais, como se referiu, a protecção, a assistência e a educação do menor no processo tutelar.
Como diz Borges de Pinho, na passagem atrás transcrita, embora na OTM já não se fale em medidas de prevenção criminal, protegendo-se judicialmente os menores e defendendo-se os seus direitos e interesses através das medidas tutelares, está-se a efectuar um trabalho de prevenção criminal que terá de advir de, entre o mais, uma aplicação atempada de tais medidas.
Ora, a aplicação atempada dessas medidas pressupõe que tudo seja simples e de execução sumária, sob pena de o efeito útil de tais medidas se perder.
São medidas cuja aplicação se destina rapidamente a evitar que o menor entre (se não se encontrar já) em situação de risco: de abandono, de maus tratos, de vadiagem, de agente ou potencial agente de crime, etc. Medidas que, pela imediata necessidade de as aplicar e eventual menos boa adequação ao caso, podem ser revistas a todo o momento.
6- Pergunta-se então: é o fim que tem em vista o processo tutelar (a aplicação de medidas de protecção, assistência e educação), o modo como se desenvolve (simplicidade motivada pela urgência, em regra, das medidas), a inexistência de «partes» (como sujeitos de interesses contrastantes) e facto de o menor não estar desprotegido na defesa dos seus interesses (ao curador cabe zelar pelos mesmos) que fazem que não se justifique a intervenção de mandatário judicial naquela fase?
Ou antes, não será desproporcionada ou desadequada a medida legal restritiva do artigo 41º da intervenção do mandatário judicial só «para efeitos de recurso»?
É aqui que se tem de ponderar e resolver se se mostra ou não violado o princípio do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da Constituição, na vertente da «intervenção de mandatário judicial», em processo tutelar (o direito ao patrocínio judiciário reconhecido no nº 2 daquele artigo 20º), quando conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3.
Ora, a restrição ao patrocínio judiciário - elemento integrador daquele direito - revela-se, à luz do artigo 18º, nºs. 2 e 3, da lei fundamental, desproporcionada e desadequada, pois, excluindo-se a defesa dos interesses do menor e dos direitos que na matéria cabem aos pais por um mandatário judicial, ainda que ela não se mostre absolutamente necessária, atinge-se o núcleo essencial do referido direito (direito à nomeação no processo de um «intermediário técnico», «Atendido como a representação em juízo das partes ou sujeitos processuais por profissionais do foro, no que se reporta à condução técnico-jurídica do processo»).
Na verdade, o juiz pode, no decurso do processo, adoptar medidas que restringem fortemente a liberdade dos menores e os poderes que cabem a seus pais.
Assim, há-de entender-se que os interesses do menor e os correspondentes direitos dos pais podem não ficar suficientemente protegidos com a intervenção do Ministério Público, e até com a intervenção do próprio juiz, a quem é conferido o poder de julgar como o árbitro, não se podendo considerar salvaguardado esse «núcleo essencial», e nem a celeridade exigida por tal tipo de processos, visando acudir a um menor em risco ou em vias de o estar, justifica a dispensa de mandatário judicial.
Aliás, do texto constitucional, a propósito da filiação e do poder paternal, extrai-se um complexo de direitos e deveres que espelham aquele poder e o superior interesse dos filhos. Assim:
Os «pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos» (nº 5 do artigo 36º);
Os «filhos não podem ser separados dos pais» (nº 6 do artigo 36º);
Ao Estado incumbe cooperar «com os pais na educação dos filhos»
[artigo 67º, alínea c)];
Os «pais e mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação» (nº 1 do artigo 68º).
Caracterizando-se o poder paternal, minuciosamente regulado nos artigos 1877º e seguintes do Código Civil, «não como um conjunto de faculdades de conteúdo egoísta e de exercício livre, ao arbítrio dos respectivos titulares, mas como um conjunto de poderes-deveres, como uma situação jurídica complexa em que avultam poderes funcionais, que devem ser exercidos altruisticamente, no interesse do filho, de harmonia com a função do direito, consubstanciada no objectivo primacial de protecção e promoção dos interesses do filho, com vista ao seu harmonioso e integral desenvolvimento físico-intelectual e moral» (na linguagem do parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República nº 8/91, de 16 de Janeiro de 1992, in Boletim, nº 418, pp. 285 e segs., com análise detalhada do instituto do poder paternal), com tal caracterização compadece-se a defesa plena dos interesses do menor e, bem assim, a dos correlativos direitos dos pais no processo tutelar por um mandatário judicial, sendo desproporcionado e desadequado excluir ou restringir essa defesa.
7- Em conclusão: parece que o artigo 41º da OTM, nos termos em que proíbe a «intervenção de mandatário judicial», viola o artigo 20º, nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição, como é a tese do recorrente, e tanto basta para o ferir de inconstitucionalidade material.
8- Termos em que, decidindo, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição, a norma do artigo 41º da OTM, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso;
b) Negar, em consequência, provimento ao recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
Aceitando as considerações expostas e a decisão tirada, o acórdão nº 556/95, por sua vez, mais argumenta:
'[...] 2- Adite-se às considerações constantes do transcrito Acórdão e a título de concretização exemplificativa, que, no processo tutelar, é possível a imposição de medidas, ainda que cautelares, que, fortemente, vão restringir o próprio poder paternal, mesmo nos casos em que a situação do menor justificativa da adopção de tais medidas não tem como causa, quer remota, quer imediata, um comportamento activo ou passivo por banda daqueles a quem é confiada a representação do menor.
Isso, só por si, justifica que os interesses, direitos e deveres destes últimos se devam perspectivar como impondo o devido acautelando da respectiva intervenção no processo tutelar, até porque, seguramente, não será difícil cogitar a ocorrência daquilo que, como se lê na alegação apresentada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, são 'apreciações divergentes sobre a melhor forma de realizar o interesse do menor'.
Ora, uma tal intervenção, como forma de acesso aos próprios tribunais, não pode deixar de supôr 'logicamente um correcto conhecimento dos direitos e deveres por parte dos seus titulares' (palavras do Acórdão nº 444/91 publicado na 2ª Série do Diário da República de 2 de Abril de 1991), o que implicará que esse direito fundamental - o acesso aos tribunais - venha a integrar o direito ao patrocínio judiciário, como aliás, tem sido, sem discrepância, reconhecido.
3. Não se vislumbram razões que militem no sentido de a restrição decorrente da norma em apreço se postar como adequada, necessária ou proporcionada em face dos objectivos de celeridade do processo tutelar ou da circunstância de ali não haver um arguido ou não impender sobre o menor uma acusação, ou não se visar senão a protecção do mesmo.
Quanto ao primeiro aspecto, ele só se poderia colocar perante uma
óptica segundo a qual a intervenção de mandatário judicial ou uma qualquer outra forma de patrocínio judiciário contribuiem para diminuir a celeridade processual o que, certamente, é algo de indefensável.
Tocantemente ao segundo, e como se disse já, muito embora as características do processo tutelar o distingam de outras formas de composição de litígios, sendo norteado por objectivos diferentes, isso não significa que haja diferentes apreciações do que seja mais favorável para o menor, sendo até que a intervenção dos progenitores, devidamente patrocinados, pode dar importantes contributos para permitir ao juiz uma visão mais adequada e concretizada sobre a situação sujeita à sua apreciação e da medida aconselhável ao caso, pesando devidamente os interesses daqueles progenitores e as soluções por eles aventadas, na decorrência dos direitos que, constitucional e legalmente, lhes cabem.'
O acórdão termina por considerar a restrição decorrente do artigo 41º como não adequada, não necessária e não proporcionada, assim julgando inconstitucional, por violação do artigo 20º, nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição, a mencionada norma 'na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso'.
2.- Não se vê motivo susceptível de afastar a exposta linha jurisprudencial da 2ª Secção, em relação à qual, por conseguinte, se adere, adoptando-a.
A esta luz, a norma sindicanda não se apresenta como adequada, necessária nem proporcionada. III
Em face do exposto, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma do artigo 41º da Organização Tutelar de Menores, na parte em que não admite a intervenção de mandatário judicial fora da fase de recurso, por violação do artigo 20º, nº 2, conjugado com o artigo 18º, nºs. 2 e 3 da Constituição da República;
b) negar, por conseguinte, provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Lisboa, 17 de Abril de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa