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Proc. nº 193/95
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A interpôs recurso contencioso de anulação junto do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa dos despachos do Conselho de Administração da Caixa Geral de Depósitos que, respectivamente, determinaram a aplicação da pena de demissão da função de empregado daquela entidade (despacho nº 129/88, de 13 de Julho) e a confirmação da suspensão do exercício e do vencimento, anteriormente decretada por despacho de 19 de Junho de 1985, ao abrigo do disposto no artigo 37º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913 (despacho nº 129/88, de 13 de Julho, na versão rectificada de 2 de Setembro de 1988).
2. Em 13 de Agosto de 1990, a entidade recorrida comutou a demissão pela de aposentação compulsiva, tendo mantido, no entanto, a aplicação da aludida suspensão de vencimento desde Junho de 1985. Em consequência, o objecto do recurso ficou cingido a essa decisão, tendo-se julgado extinta a instância em relação à demissão, por inutilidade superveniente.
3. Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa de 13 de Março de 1995, foi julgado procedente o recurso, tendo sido, em consequência, anulado o acto recorrido. Na sentença ora recorrida afirmou-se o seguinte:
'(...)
É que aquela norma, na parte em que consente a perda total do vencimento do funcionário desligado do serviço, 'além de se traduzir na antecipação de um quadro de efeitos semelhantes aos da pena disciplinar de demissão, revela-se também afrontador do princípio da proporcionalidade postulado pelo princípio do Estado de direito democrático, dada a manifesta desconformidade entre a medida cautelar imposta e o fim que através dela se pretendia atingir' - vide arts. 18º, nº 2 e 2º da C.R.P.
(...)'
Em consequência, decidiu-se do seguinte modo:
'(...)
2. Quanto à decisão que 'confirmou' a suspensão de vencimentos entre 19 de Junho de 1985 e 5 de Agosto de 1988, nos termos do §
único do art. 37º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913,
a) Recuso a aplicação daquele preceito legal, na parte impugnada, ou seja, na parte em que permitiu a perda total do vencimento do recorrente, por este se encontrar 'desligado do serviço' e contra si haver sido instaurado um processo disciplinar, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação dos artigos 32º, nº 2 e 18º, nº 2 da C.R.P. atento o disposto nos arts.
206º e 207º, 277º, nº 1 da C.R.P.;
(...)'
4. É desta sentença que vem interposto o presente recurso obrigatório, pelo Ministério Público, ao abrigo do disposto nos artigos 280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional.
Nas suas alegações neste Tribunal, o Ministério Público concluiu do seguinte modo:
'1º - A norma constante do artigo 37º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, na parte em que permite a perda total do vencimento do funcionário desligado do serviço por contra ele haver sido instaurado processo disciplinar é inconstutucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade, postulado pelo princípio do Estado de direito democrático.
(...)'
O recorrido A, por seu turno, concluiu as suas alegações nos seguintes termos:
'I. O art. 37º do Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, na medida em que, sem duração temporal expressamente limitada na lei, permite que o arguido em processo disciplinar, e na pendência deste, seja privado da totalidade das suas remunerações, que podem ser a única fonte do seu sustento e do respectivo agregado familiar, configura uma providência cautelar manifestamente excessiva, violando o princípio da proporcionalidade que se extrai do art. 18º, nº 2, da Constituição;
II. O referido art. 37º, sendo presentemente aplicável aos trabalhadores da Caixa Geral de Depósitos arguidos em processo disciplinar com acusação notificada antes de 31 de Agosto de 1993, e só a estes, coloca os mesmos em plano de desigualdade relativamente aos restantes trabalhadores por conta alheia, quer sujeitos a regime jurídico de prestação de trabalho de direito público quer sujeitos ao regime do contrato individual de trabalho de direito privado;
III. Na verdade, e com excepção dos trabalhadores civis da função pública, a quem a lei permite, no decurso do processo disciplinar, a suspensão de 1/6 do seu vencimento (vencimento de exercício), a nenhum outro trabalhador por conta alheia é permitida, naquela situação, a privação da remuneração;
IV. Por isso, aquele art. 37º, na medida indicada na conclusão I, ofende o princípio da igualdade e não discriminação estatuído no art. 13º da Constituição;
(...)'
5. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II Fundamentação
6. O presente recurso tem por objecto a apreciação da conformidade à Constituição da norma contida no artigo 37º do Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de
1913, e aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, por força do disposto no artigo 36º do Decreto-Lei nº 48.953, de 5 de Abril de 1969, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 461/77, de 24 de Outubro, na parte em que consente a perda total do vencimento do funcionário desligado do serviço.
É a seguinte a redacção desse artigo:
'O funcionário implicado em qualquer processo disciplinar poderá ser desligado do serviço, sem venci-mento, ou com parte dele, enquanto durar a instrução, ou até julgamento final.
§ único. A perda de vencimento será reparada, confirmada ou levada em conta na decisão final do processo.'
7. A perda total de vencimento por tempo indeterminado, aplicável por força da mera instauração de processo disciplinar, independentemente de qualquer avaliação sobre a responsabilidade do arguido, viola o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no nº 2 do artigo 32º da Constituição. E este princípio constitucional é aplicável, no essencial, ao direito disciplinar e não apenas ao direito processual penal, em homenagem a uma analogia substancial entre estes ramos do direito sancionatório público.
Na verdade, tal medida consubstancia uma sanção revestida de especial gravidade que, quando aplicada nos termos em que o foi, representa uma antecipação da condenação. Trata-se de uma medida que se funda num juízo de probabilidade de futura condenação, materialmente idêntica a uma pena, o que claramente contraria a imposição constitucional da consideração do arguido como inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória.
8. Não se ignora que é compatível com o princípio da presunção da inocência a aplicação de certas medidas cautelares e de investigação, bem como, na hipótese de processo disciplinar, a suspensão do exercício de funções e correlativa suspensão do vencimento resultante desse exercício efectivo (o chamado 'vencimento de exercício'), pois tais medidas não configuram uma antecipação dos efeitos da pena, nomeadamente da pena de demissão.
Porém, a norma contida no artigo 37º do Regulamento de 1913, na parte em que consente a perda total do vencimento do funcionário desligado do serviço, traduzindo-se na antecipação dos efeitos da aplicação da pena disciplinar de demissão, ultrapassa ilegitimamente as finalidades cautelares da medida a aplicar numa fase processual de investigação. Nessa medida, afronta, para além do aludido princípio da presunção de inocência, o princípio da proporcionalidade, postulado pelo princípio do Estado de direito democrático
(artigos 2º e 18º, nº 2, da Constituição).
9. E não se diga que a possibilidade de reparação, na decisão final, da perda de vencimento infirma estas conclusões. Na verdade, uma reparação a posteriori é irrelevante para efeito de apreciação da conformidade à Constituição de uma norma que permite a aplicação, numa fase anterior à condenação, de uma medida de natureza claramente sancionatória. Assim, a norma que permite a aplicação, antes do fim do processo, da medida que pressupõe a responsabilidade do arguido é inconstitucional.
Este juízo em nada é afectado pela previsão da possibilidade de reparação, no termo do processo, dos prejuízos sofridos por força da aplicação dessa medida. O que está em causa, repete-se, é a sujeição do arguido a um tratamento excessiva e injustificadamente lesivo dos seus interesses, e que se fundamenta numa culpabilidade presumida.
10. A conformidade à Constituição da norma em crise já foi, aliás, apreciada por este Tribunal, tendo-se então decidido no mesmo sentido
(cf. Acórdão nº 198/90, D.R., II Série, de 17 de Janeiro de 1991).
Também agora se conclui que a norma constante do artigo 37º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913 é inconstitucional, por violação dos princípios da presunção de inocência e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 32º, nº 2, e 2º e 18º, nº 2, da Constituição, respectivamente.
III Decisão
11. Ante o exposto, decide-se julgar inconstitucional a norma constante do artigo 37º do Regulamento Disciplinar aprovado pelo Decreto de 22 de Fevereiro de 1913, aplicável ao pessoal da Caixa Geral de Depósitos, na parte em que permite a perda total do vencimento do funcionário desligado do serviço por contra ele haver sido instaurado processo disciplinar, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida, de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 17 de Abril de 1996
Maria Fernanda Palma
Vitor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Monteiro Diniz
José Manuel Cardoso da Costa