Imprimir acórdão
Processo: n.º 490/92.
Recorrente: Ministério Público.
Relator: Conselheiro Vítor Nunes de Almeida.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — O representante do Ministério Público junto do Tribunal Judicial da Comarca
de Loures deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do tribunal
colectivo, contra a firma «A., L.da», e contra B. alegando os seguintes
fundamentos de facto:
— No dia 8 de Novembro de 1991, uma brigada da Direcção-Geral de Inspecção
Económica, em acção de fiscalização levada a efeito nas instalações de fabrico e
de armazenagem de matérias primas e produtos acabados da «Confeitaria C., L.da»,
deparou aí com os seguintes géneros alimentares que se destinavam a consumo
público: 60 000 kgs de polpa de marmelo; 2500 kgs de polpa de pêssego; 2460 kgs
de polpa de goiaba; 26 500 kgs de abóbora de salmoura; 38 800 kgs de fruta
diversa em calda; 540 kgs de maçã em calda; 2700 kgs de casca de laranja em
calda; 60 000 kgs de cereja em ácido sulfuroso; 250 kgs de tomate e castanha
(doce); 4550 kgs de batatada; 316 kgs de ananás em rodelas e 504 kgs de
marmelada e goiabada já confeccionada.
— Tais produtos foram submetidos a exame directo e microscópico, constando os
resultados de tais exames das alíneas a) a x) da mesma acusação, tendo-se
concluído que os produtos referidos não se encontravam num estado normal,
apresentando-se corruptos ou avariados, uns em situação de criar perigo para a
vida ou integridade física alheia e outros não susceptíveis de prejudicar a
saúde de eventuais consumidores;
— Os arguidos não fizeram qualquer comunicação a entidade fiscal, policial ou
administrativa (artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro), não
existindo qualquer indicativo, sinal exterior, separação ou diferenciação ou
escrito elucidativo de como os produtos se destinavam a troca, devolução ou
inutilização;
— A quantidade total dos produtos inutilizados em consequência do seu estado
anómalo é de 18 903 kgs, no valor de 1 352 000$00 esc. (um milhão trezentos e
cinquenta e dois mil escudos);
— As barricas de plástico que continham matérias primas tinham colados rótulos
idênticos ao constante a fls. 61, indicando a data de 5 de Março de 1991, iodo
lime, produto irritante para os olhos, e ao constante de fls. 62, apelando à
manutenção hermética fechada;
— Na sequência da acção de fiscalização, a Administração Regional de Saúde de
Lisboa ordenou a suspensão imediata de toda e laboração pelo período de 10 dias,
ordenando a adopção de medidas de higiene no estabelecimento e equipamento que
garantissem a salubridade dos géneros alimentícios;
— A primeira arguida é uma sociedade por quotas com o capital social de trinta
milhões de escudos;
— O arguido é representante legal da primeira arguida, sendo responsável pelo
movimento de fabrico e comércio realizado nas instalações da mesma.
Alegando que o arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, pois «embora
tivesse perfeito conhecimento das condições em que se encontravam os referidos
produtos, das condições higio-sanitárias a que os mesmos se encontravam expostos
no estabelecimento, do tempo de permanência e exposição dos mesmos nas
instalações, de que as barricas de plástico apresentavam colados rótulos de
produtos químicos e, bem assim, de que os produtos alimentares se encontravam
impróprios para o consumo, criando perigo, uns, e não criando perigo, outros,
para a saúde de eventuais consumidores, não se absteve de os deter e manter
naquelas condições e instalações para serem lançados no consumo público, com
plena consciência de que tal conduta era proibida por lei».
O Ministério Público incriminou, em consequência, o arguido B. pela prática, em
autoria material, concurso real e sob a forma consumada, pela prática dos
seguintes crimes:
— três crimes de corrupção de substâncias alimentares previstos e punidos no
artigo 273.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal;
— dois crimes de corrupção de substâncias alimentares, previstos e punidos no
artigo 273.º, n.º 3, do Código Penal;
— dois crimes contra a economia, previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.º 1,
alínea b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro;
— dezoito crimes contra a economia, previstos e punidos pelo artigo 24.º, n.º
1, alínea c), do mesmo diploma legal.
2 — O juiz da comarca de Loures, por despacho de 23 de Junho de 1992, decidiu
não receber a acusação na parte relativa à firma «A., L.da», invocando para
tanto a inconstitucionalidade do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de
Janeiro, que, na medida em que consagra a responsabilidade criminal das pessoas
colectivas, violaria o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição.
Foram os seguintes os fundamentos aduzidos para a recusa de aplicação, com base
na sua inconstitucionalidade, do n.º 1 do artigo 3.º referido:
Pode uma pessoa colectiva, uma sociedade comercial, por exemplo, ser
responsabilizada criminalmente?
É conhecido o brocardo societas delinquere non potest — a sociedade não pode
delinquir.
Tradicionalmente, a responsabilidade criminal tem sido apanágio da pessoa
singular.
Não obstante isso, temos lei positiva (o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de
20 de Janeiro) que consagrou expressamente a «responsabilidade criminal das
pessoas colectivas e equiparadas».
E ante a objectividade da lei parece que todas as considerações se devem calar,
nada mais havendo que fazer se não obedecer ao direito positivo legislado.
Vale aqui a chamada «teoria pura do direito» de que Kelsen foi o impulsionador
(Kelsen — Teoria Pura do Direito — 4.ª ed., p. 4242): «Do ponto de vista de um
positivismo jurídico coerente o direito, precisamente como o Estado, não pode
ser concebido senão como uma ordem coerciva da conduta humana — com o que nada
se afirma sobre o seu valor moral ou de justiça».
E mais incisivamente, a fls. 161: «A teoria pura do direito mantém o direito
positivo isento de qualquer confusão com o direito ‘ideal’ ou ‘justo’ — uma
teoria realista, do positivismo jurídico, que se recusa a valorar o direito
positivo».
Quer dizer: — decisivo, decisivo, é que tenhamos uma norma positiva que atribua
responsabilidade criminal a um ente fictício como é uma sociedade comercial…
como a poderia atribuir a um fantasma … que nem por isso poderíamos deixar de
lhe obedecer.
Só que este positivismo jurídico se defronta com tais escolhos ou insuficiências
que se anula ou se inviabiliza a si próprio.
E o primeiro escolho é de ordem constitucional.
Na hierarquia das fontes de direito, nenhuma lei ordinária se poderá manter
actuante se estiver em contradição ou litígio com a norma constitucional. Ora,
sobre este tema dispõe o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição:
— As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres
compatíveis com a sua natureza.
Nesses deveres se compreendem evidentemente os de natureza criminal.
É compatível com a natureza de um ente que é uma ficção jurídica — a
responsabilidade criminal?
É obvio que não.
Para se ser criminalmente responsável há um requisito básico que faz parte do
tipo: — «o dolo, ou, nos casos especialmente previstos na lei… a negligência»
(artigo 13.º do Código Penal).
Não é concebível responsabilizar alguém criminalmente se esse alguém não tiver
actuado com dolo ou, pelo menos, com negligência.
A arguida «A., L.da», só poderia ser condenada pelas infracções de que é acusada
se fosse possível concluir que actuou com dolo — ou, ao menos, com negligência.
Mas isso mais não é do que formas de imputação eminentemente pessoais que, pelo
seu carácter psicológico, íntimo, só podem verificar-se na pessoa humana.
É nesta ordem de ideias que o artigo 12.º do Código Penal — aliás dentro daquela
tradição humanística a que se fez referência — dispõe: «É punível quem age
voluntariamente como titular dos órgãos de uma pessoa colectiva…».
O Decreto-Lei n.º 28/84 devia ter-se ficado dentro dos limites deste bom senso,
não enveredando por soluções espúrias, absurdas e violadoras da Lei Fundamental.
E, mais adiante, escreve-se na decisão recorrida:
Por isso, coerentemente, e não por acaso (as palavras da lei pesam como
diamantes…) o artigo 12.º, n.º 2, da Constituição limita os deveres das pessoas
colectivas — dentro de cuja área se situa a responsabilidade criminal — à
compatibilidade com a sua natureza.
E como se disse, não é compatível com a natureza abstracta, fictícia, de uma
pessoa colectiva a concorrência de um requisito tão intimista como o da culpa ou
dolo.
Mas à parte a sua evidente inconstitucionalidade, o artigo 3.º do Decreto-Lei
n.º 28/84 sofre ainda de uma outra incoerência.
Ele consagra uma dupla responsabilização penal de certo modo aparentada com a
violação do princípio non bis in idem.
Isto é:
Segundo este princípio ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo facto.
Ora, com tal lei, pelo facto objectivo de se comerciarem géneros avariados, por
exemplo — vão ser responsabilizados cumulativamente as pessoas colectivas e os
respectivos agentes.
Não se trata de uma qualquer espécie de comparticipação (que nada tem de
anormal) — mas de um pedir de responsabilidades (por parte do Estado punidor),
em duplicado, pelo mesmo facto.
Qualquer coisa como se o credor de uma sociedade pelo montante de 1000 —
quisesse cobrar esses mil, em duplicado, da sociedade e dos seus gerentes.
Não pode ser. Há que optar.
O título de imputação de certo ilícito à sociedade e aos seus gerentes é a
culpa…
Que a culpa sirva de base de imputação quanto aos gerentes (pessoas singulares)
porque a sua consciência ética lhes censura o terem agido desta forma, quando
poderiam e deviam ter agido de outra… é compreensível.
Mas que essa base ética, a par da punição dos gerentes, fundamente a punição dos
geridos… é de todo incompreensível.
De maneira que, aqui, haveria que escolher: — ou punir os gerentes, pelas
respectivas culpas individuais, em termos de direito penal — e tal como o artigo
12.º do Código Penal prevê… ou punir os geridos (ou seja, as sociedades), em
função da culpa dos gerentes — tal como acontece no direito civil, nomeadamente
no campo vasto da responsabilidade civil contratual ou extra-contratual.
Optar por uma terceira via (punição criminal dos gerentes: artigo 12.º do Código
Penal) e punição de outra natureza (mas não a título de uma impossível
«responsabilidade criminal» da pessoa colectiva) é perfeitamente aceitável e é
isso que em grande medida acontece, por exemplo, com as penas acessórias
previstas no artigo 8.º — e que são típicas de um ente colectivo.
Se o legislador tivesse reservado aos gerentes a responsabilidade criminal, nos
termos gerais (havendo culpa ou dolo) e sancionasse as sociedades com um tipo de
penas e de responsabilidade que não fossem de cariz criminal (as referidas penas
do artigo 8.º) — nada se poderia objectar.
Enveredando por uma solução híbrida, e, mais do que isso, inconstitucional, pela
sujeição ilógica de um ente que é uma ficção jurídica a um tipo de
responsabilidade que é apanágio da pessoa humana, o artigo 3.º do Decreto-Lei
n.º 28/84 é violador do artigo 12.º, n.º 2, da Constituição e por isso não pode
ser aplicado pelos Tribunais: — artigo 277.º, n.º 1, e artigo 207.º da
Constituição.
3 — Desta decisão interpôs o representante do Ministério Público junto daquele
tribunal judicial recurso de constitucionalidade obrigatório.
Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto em exercício apresentou as
competentes alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1.º A norma do artigo 3.º, n.º 1, conjugada com a do artigo 7.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, enquanto prevê que as pessoas
colectivas são responsáveis pelas infracções previstas nesse diploma quando
cometida pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse
colectivo, sendo-lhes aplicáveis as penas principais de admoestação, multa e
dissolução, não são inconstitucionais, pois não violam nenhum princípio ou
preceito constitucional, designadamente os artigos 12.º, n.º 2, e 29.º, n.º 5,
da Constituição.
2.º Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se
a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
Corridos que foram os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II — Fundamentos
4 — A questão que vem suscitada nos autos é a de saber se é constitucionalmente
legítimo imputar-se às pessoas colectivas responsabilidade criminal e
aplicar-lhes penas tais como as constantes do artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei
n.º 28/84, de 20 de Janeiro, em vigor na data dos factos.
É o seguinte o teor dos preceitos em causa:
Artigo 3.º
(Responsabilidade criminal das pessoas colectivas e equiparadas)
1 — As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são
responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas
pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
2 — A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou
instruções expressas de quem de direito.
3 — A responsabilidade das entidades referidas no n.º 1 não exclui a
responsabilidade individual dos respectivos agentes, sendo aplicável com as
necessárias adaptações, o n.º 3 do artigo anterior.
Pelo seu lado, o artigo 7.º, n.º 1, estabelece como penas principais aplicáveis
às pessoas colectivas e equiparadas as seguintes: admoestação, multa e a
dissolução, regulando-se nos números seguintes do preceito não só as
circunstâncias que condicionam a respectiva aplicação mas também o montante da
multa.
Nos termos da decisão recorrida, a norma do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 28/84
viola o n.º 2 do artigo 12.º da Constituição da República Portuguesa, que
estabelece que «As pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos
deveres compatíveis com a sua natureza».
Referida na decisão é também a norma do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, que
determina que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do
mesmo crime».
Importa, assim, apurar se uma responsabilidade penal do tipo da prevista nas
normas do diploma em análise é compatível com a natureza das pessoas colectivas
e, no caso de resposta positiva, se existe qualquer violação do princípio
constitucional do non bis in idem ou de qualquer outro.
5 — A questão suscitada nos autos insere-se no âmbito da perseguição da
criminalidade económica que, entre nós se concretizou com o Decreto-Lei n.º 41
204, de 24 de Julho de 1957.
O diploma em apreço, que veio substituir a regulamentação de 1957, foi editado
ao abrigo da Lei n.º 12/83, de 24 de Agosto, que concedeu ao Governo autorização
legislativa para «alterar os regimes em vigor, tipificando novos ilícitos
penais, definindo novas penas ou modificando as actuais, tomando como ponto de
referência a dosimetria do Código Penal, na matéria de infracções antieconómicas
e contra a saúde pública, entre outras».
O sentido da lei autorizadora, no que se refere às infracções antieconómicas e
contra a saúde pública, é a «obtenção de maior celeridade e eficácia na
prevenção e repressão deste tipo de infracções».
Visando a concretização destes princípios, o Decreto-Lei n.º 28/84 veio
eliminar, nesta matéria, a «distinção entre crimes e contravenções,
privilegiando-se a distinção entre crimes e contraordenações», tratando-se agora
vários comportamentos como contraordenações, em resultado da despenalização de
infracções consideradas contravenções, que passaram a ser objecto do direito de
mera ordenação social.
Segundo o preâmbulo do diploma, houve «o particular cuidado de extremar
rigorosamente os campos dos dois ilícitos em presença, a fim de evitar
sobreposições ou confusões entre as previsões dos correspondentes tipos legais».
Assim, «relegaram-se para o capítulo das contra-ordenações apenas aqueles
comportamentos que não põem em causa interesses essenciais ou fundamentais da
colectividade e que, por isso, carecem de verdadeira dignidade penal».
Ainda de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 28/84, «importante novidade
neste diploma é a consagração aberta da responsabilidade penal das pessoas
colectivas e sociedades, a que algumas recomendações de instâncias
internacionais, como o Conselho da Europa, se referem com insistência.
Tratando-se de um tema polémico em termos de dogmática jurídico-penal, nem por
isso devem ignorar-se as realidades práticas, pois se reconhece por toda a parte
que é no domínio da criminalidade económica que mais se tem defendido o abandono
do velho princípio societas delinquere non potest.
Em todo o caso, o princípio da responsabilidade penal das pessoas colectivas é
consagrado com prudência: exige-se sempre uma conexão entre o comportamento do
agente — pessoa singular — e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em
representação ou em nome deste e no interesse colectivo. E tal responsabilidade
tem-se por excluída quando o agente tiver actuado contra ordens expressas da
pessoa colectiva».
O legislador de 1984, ao assumir esta posição de aceitação da responsabilidade
penal das pessoas colectivas, sentiu necessidade de prever penas principais
especialmente adequadas. Assim, a pena mais grave é a de dissolução, aplicável
a hipóteses muito restritas, em que a pessoa colectiva se tenha constituído,
exclusiva ou predominantemente para a prática de certos crimes previstos no
diploma ou se tenha desviado do seu objecto ou dos seus fins para os cometer,
sendo as outras sanções a admoestação e a multa.
Nos presentes autos, a decisão recorrida recusou a aplicação do artigo 3.º do
Decreto-Lei n.º 28/84, por entender que tal disposição viola o n.º 2 do artigo
12.º da Constituição, atendendo a que a responsabilidade penal das pessoas
colectivas não e compatível com a respectiva natureza.
6 — Assentou tal decisão, iniludivelmente, no princípio traduzido no brocardo
societas delinquere non potest, tradicionalmente concretizado na impossibilidade
de punir as sociedades e pessoas colectivas dentro dos parâmetros conceptuais do
direito criminal eticamente fundado.
Efectivamente, a tese de quem defende a impossibilidade dogmática da
responsabilidade penal das pessoas colectivas parte, por um lado, da
consideração de que não há responsabilidade criminal sem culpa, pelo que, as
pessoas colectivas porque desprovidas de inteligência e de vontade próprias,
necessitam de pessoas singulares que actuem por si, e, por isso, seriam, desde
logo, insusceptíveis de um juízo de censura ética.
Por outro lado, considerando o princípio da pessoalidade das penas, a condenação
de uma pessoa colectiva poderia atingir elementos do seu substractum colectivo
ou mesmo dos seus órgãos que porventura nada teriam tido com a actividade
desenvolvida e considerada delituosa. Por último, considera-se que não sendo
susceptíveis de aplicação a pessoas colectivas as penas privativas de liberdade,
parece difícil alcançar a realização de qualquer dos fins tradicionalmente
atribuídos às penas criminais, através de aplicação de uma sanção desse tipo.
Assim, o Código Penal de 1886 consagrava a ideia de que só a pessoa física,
individualmente considerada, pode ser sujeito activo de infracções criminais
(cfr. artigos 26.º e 28.º daquele Código), concepção esta tradicional no
ordenamento jurídico e na doutrina penalística portuguesa (v. Prof. Dr. Eduardo
Correia, Direito Criminal, vol. i, p. 234; Prof. Dr. Cavaleiro Ferreira, Direito
Penal Português, vol. i, p. 419, e Maia Gonçalves, Código Penal Português na
Doutrina e na Jurisprudência, 3.ª ed., p. 66).
Mas, mesmo no domínio daquele Código, vários diplomas existiam contendo
preceitos que parecem contrariar os princípios nele vertidos.
O artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 41 204, de 24 de Julho de 1957 — diploma
relativo às infracções contra a saúde pública e antieconómicas — estabelecia que
«as sociedades civis e comerciais são solidariamente responsáveis pelas multas e
indemnizações em que forem condenados os seus representantes ou empregados,
contanto que estes tenham agido nessa qualidade, ou no interesse da pessoa
colectiva, salva a prova de que procederam contra ordens da administração»,
parecendo tratar-se aqui de uma responsabilidade de natureza civil (cfr. Castro
e Sousa, «As pessoas colectivas em face do Direito Criminal» e do chamado
«Direito de mera ordenação social», p. 168). Pelo seu lado, o artigo 7.º do
mesmo diploma prevê a aplicação a pessoas colectivas de medidas de interdição do
exercício de profissão, com o consequente encerramento do estabelecimento
comercial, medida que parece ter a natureza de «medida de segurança» prevendo-se
o respectivo recurso para os tribunais administrativos.
Castro e Sousa, depois de analisar disposições de vários outros diplomas em que
considera não se cominarem verdadeiras penas criminais às pessoas colectivas
pois apenas estatuem medidas de segurança ou impõem a responsabilização civil
das sociedades ou ainda cominam meras sanções ordenativas, refere como diplomas
consagradores de verdadeiras sanções criminais, os Decretos n.os 29 034, de 1 de
Outubro de 1938, e 31 280, de 22 de Maio de 1941, assim sacrificando o princípio
societas delinquere non potest.
Porém, a necessidade de contrariar o desenvolvimento de actividades delituosas
actuando sob a forma de organizações societárias investidas na respectiva
personalidade colectiva, com uma multiplicidade de objectivos que abrangem a
vida económica e social e com uma dimensão tal que levou à conclusão da
inefectividade quase total do princípio da mera responsabilização individual dos
órgãos ou representantes da pessoa colectiva, levou à admissibilidade cada vez
mais generalizada da própria responsabilidade criminal das pessoas colectivas,
principalmente no domínio do direito penal económico ou social — usando-se, em
geral, a designação de direito penal secundário para o contrapor ao direito
penal tradicional ou direito penal de justiça (cfr. Prof. Dr. Figueiredo Dias,
«Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma
do direito penal económico e social português», in Revista de Legislação e de
Jurisprudência, n.os 3716 a 3720).
A responsabilidade criminal das pessoas colectivas é hoje admitida, entre nós,
pela generalidade dos autores (contra, Prof. Dr. Cavaleiro de Ferreira, Lições
de Direito Penal, I, 1988, pp. 191-192), designadamente, nos domínios da
criminalidade económica e social, da protecção do ambiente e do consumidor
[cfr., para além da obra de Figueiredo Dias, Prof. Dr. Eduardo Correia,
«Introdução ao Direito Penal Económico» (com a colaboração de José Faria e
Costa), in Revista de Direito e Economia, n.º 3 (1977), pp. 3 e segs.; Lopes
Rocha, «A responsabilidade penal das pessoas colectivas — Novas perspectivas»,
in Direito Penal Económico, p. 162; Figueiredo Dias e Costa Andrade,
«Problemática geral das infracções antieconómicas», in Boletim do Ministério da
Justiça, n.º 262, pp. 5 e segs.; José Faria e Costa, «A responsabilidade
jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos (ou uma reflexão sobre a alteridade
nas pessoas colectivas à luz do direito penal)», in Revista Portuguesa de
Ciência Criminal, ano 2.º, fascículo 4.º, Outubro-Dezembro 1992, p. 537].
De todo alheia a esta admissibilidade não pode considerar-se a intervenção de
organizações internacionais, designadamente, do Conselho da Europa através da
Resolução n.º (77) 28, de 27 de Setembro de 1977, recomendando o reexame dos
princípios sobre a responsabilidade criminal, por forma a viabilizar, em certos
casos, a responsabilização das pessoas colectivas, e as Recomendações n.º
R(81)12, de 25 de Junho de 1981, R(88) 18, de 20 de Outubro de 1988 (sobre
criminalidade económica), e R(82)15, de 24 de Setembro de 1982 (direito penal na
protecção dos consumidores), estudando-se a possibilidade de instituir a
responsabilidade criminal das pessoas colectivas.
Em sede legislativa, importa antes de mais considerar o artigo 11.º do Código
Penal de 1982, no qual, sob a epígrafe «carácter pessoal da responsabilidade»,
se estabelece que «salvo disposição em contrário, só as pessoas singulares são
susceptíveis de responsabilidade criminal».
Assim, a regra geral no domínio do direito criminal é a de que, em princípio, só
as pessoas físicas são susceptíveis de responsabilidade, mas, excepcionalmente,
razões pragmáticas ligadas a uma forte necessidade de repressão e prevenção de
certas práticas criminais podem levar a outra solução, em vista da qual se
considerou útil a ressalva expressa permitindo ao legislador optar pelo
sancionamento de pessoas colectivas.
Com efeito, de acordo com Figueiredo Dias, «não se encontrando o princípio da
individualidade da responsabilidade criminal inscrito na natureza das coisas», a
ressalva da disposição em contrário «só se compreende quando se vê naquele
princípio uma pura opção normativa do legislador, que não um suposto ôntico a
ela previamente imposto; donde a viabilidade e adequação de as pessoas
colectivas serem capazes de acção e de culpa, a efectivar de acordo com as
opções político-criminais do legislador» («Pressupostos da punição e causas que
excluem a ilicitude e a culpa», em Jornadas de Direito Criminal — O novo Código
Penal Português e Legislação Complementar, pp. 50-51).
7 — Com as normas que vêm questionadas nos presentes autos — artigos 3.º, 7.º e
8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro — concretiza-se a abertura
legislativa constante do referido artigo 11.º do Código Penal, tal como
claramente resulta dos pontos 8 e 10 do respectivo preâmbulo. O legislador
decidiu optar manifestamente pela responsabilização criminal das pessoas
colectivas, tendo também previsto penas adequadas a tal opção. E alargou ainda
tal opção relativamente à responsabilidade por actuação em nome de outrem, quer
enquanto órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade,
mesmo se irregularmente constituída ou de mera associação de facto, quer em
representação legal ou voluntária de outrem (artigo 2.º).
A recorrente sustenta a inconstitucionalidade das normas dos artigos 3.º, 7.º e
8.º por violação dos artigos 12.º, n.º 2, e 29.º, n.º 5, ambos da Constituição.
7.1 — O artigo 12.º, n.º 2, na medida em que estabelece que «as pessoas
colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua
natureza» permite concluir que, se a responsabilização criminal das pessoas
colectivas não puder ser entendida como compatível com a sua natureza, então,
não seria possível adequar tal responsabilização com a Lei Fundamental.
Desde logo, importa salientar que o princípio da individualidade da
responsabilidade criminal não tem consagração constitucional expressa, sendo
certo que o preceito que, em direito ordinário, estabelece tal princípio está
concebido por forma a admitir excepções (artigo 11.º do Código Penal).
Por outro lado, a ideia de que se as pessoas colectivas, à semelhança das
pessoas físicas, podem cometer infracções devem em consequência ser penalmente
sancionadas não é ideia nova (cfr. A. Mestre, «Les personnes morales et le
problème de leur responsabilitè pénale», Thése, Paris, 1899, citado em «Les
conditions de fond de la résponsabilité pénale des personnes morales en droit du
travail», de Jean-Florian Eschyle — Droit Social, n.os 7-8, Juillet-Aout 1994,
p. 638). Mas a sua afirmação sempre se defrontava com a impossibilidade de
conceber as pessoas colectivas como dotadas de capacidade de acção ou como
entidades susceptíveis de qualquer juízo de censura e também com a inadequação
das sanções cominadas pelo direito criminal (cfr., para maiores
desenvolvimentos, Lopes Rocha, «A responsabilidade penal das pessoas colectivas
— Novas perspectivas», in Direito Penal Económico, Centro de Estudos
Judiciários, Coimbra, 1985, pp. 119 e segs.).
A responsabilidade criminal das pessoas colectivas admitida hoje,
essencialmente, ao nível do chamado direito penal secundário ou do direito penal
económico, no direito penal do trabalho ou enfim do direito penal do ambiente
assenta, como se referiu, na absoluta necessidade de usar os meios repressivos
próprios do direito criminal no combate das novas formas colectivas de
delinquência aliada à inoperância das sanções criminais usuais relativamente aos
entes colectivos.
No que se refere ao direito penal secundário, escreveu Figueiredo Dias (in «Para
uma dogmática do Direito penal secundário. Um contributo para a reforma do
direito penal económico e social português», Direito e Justiça, vol. iv,
1989-1990, p. 49):
Se, em sede político-criminal, se conclui pela alta conveniência ou mesmo
imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito
penal secundário, não vejo razão dogmática de princípio a impedir que elas se
considerem agentes possíveis dos tipo-de-ilícito respectivos. A tese contrária
só pode louvar-se numa ontologificação e autonomização inadmissíveis do conceito
de acção, a esquecer que a este conceito podem ser feitas pelo tipo-de-ilícito
exigências normativas que o conformem com uma certa unidade de sentido social.
E tão-pouco me parece impensável ver nas pessoas colectivas destinatárias
passíveis dos juízos de censura em que a culpa se traduz. Certo que, na acção
como na culpa, tem-se em vista um «ser-livre» como centro ético-social de
imputação jurídico-penal e aquele é o homem individual. Mas não deve
esquecer-se que as organizações humano-sociais são, tanto como o próprio homem
individual, «obras de liberdade» ou «realização do ser-livre»; pelo que parece
aceitável que em certos domínios especiais e bem delimitados — de acordo com o
que poderá chamar-se, seguindo Max Muller, o princípio de identidade da
liberdade — ao homem individual possam substituir-se, como centros ético-sociais
de imputação jurídico-penal, as suas obras ou realizações colectivas e, assim,
as pessoas colectivas, associações, agrupamentos ou corporações em que o
ser-livre se exprime.
E mais adiante:
Fica assim aberto, do ponto de vista dogmático, o indispensável caminho para se
admitir uma responsabilidade no direito penal secundário, ao lado da eventual
responsabilidade das pessoas individuais que agem como seus órgãos ou
representantes. Não parece, com efeito, que proceda o argumento segundo o qual
a punibilidade por «actuação em nome de outrem» — e portanto de quem age como
titular dos órgãos de uma pessoa colectiva — tornaria dispensável, em
perspectiva político-criminal, a responsabilidade directa da pessoa colectiva.
Provindo hoje as mais graves e frequentes ofensas aos valores protegidos pelo
direito penal secundário, em muitos âmbitos, não de pessoas individuais mas
colectivas, a irresponsabilidade directa destas significaria sempre um seu
inexplicável tratamento privilegiado perante aquelas.
Resulta, assim, com particular clareza do exposto que o dever de
responsabilidade criminal das pessoas colectivas é hoje entendido como um dever
perfeitamente compatível com a natureza própria daquelas entidades e, por isso,
a norma do artigo 3.º que no Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, consagra
tal responsabilização criminal não contraria o artigo 12.º da Constituição.
No mesmo sentido Faria e Costa (modificando a sua anterior posição), mas
entendendo que a «legitimação da punição das pessoas colectivas se deve, em
última instância, encontrar na racionalidade material dos lugares inversos»
(cfr. «A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos», in
Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2.º, fascículo 4.º, p. 537).
Dado que na decisão recorrida a norma questionada veio a ser desaplicada por se
ter entendido que não era possível compatibilizar a responsabilização das
pessoas colectivas com a sua específica natureza, pelo que a sua aplicação
violaria o preceito constitucional do artigo 12.º, n.º 2, chegando-se à
conclusão de que não ocorre aqui uma tal incompatibilidade estrutural, deve
proceder o presente recurso quanto a este fundamento invocado na decisão como
razão da inconstitucionalidade daquela norma.
Um último aspecto importa mencionar.
Se é certo que na decisão recorrida e quanto a este aspecto da responsabilização
penal das pessoas colectivas, apenas vem invocado o artigo 12.º, n.º 2, da
Constituição como parâmetro de constitucionalidade, não parece que não possa
procurar-se em outro preceito o verdadeiro parâmetro de aferição do fundamento
constitucional de tal responsabilização.
Com efeito, a responsabilidade penal das pessoas colectivas, enquanto opção do
legislador, é uma questão que se insere no âmbito da delimitação do poder
punitivo do Estado, enquanto parte do sistema total do controlo social, ou seja,
tem a ver com a concepção e objectivos do Estado de direito democrático, tal
como está concretizado no artigo 2.º da Constituição da República.
De acordo com esta norma, o Estado de direito democrático baseia-se na soberania
popular, no pluralismo de expressão e de organização, no respeito e garantia de
efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e tem por objectivo a
realização da democracia económica, social e cultural.
A responsabilização penal tanto das pessoas singulares como das pessoas
colectivas — esta, tão-somente, a partir do momento em que é expressamente
assumida pelo legislador ordinário — visa a protecção das condições essenciais à
vida do homem em comunidade e, por isso, a plena realização e o máximo
desenvolvimento de cada pessoa, procurando o direito penal a realização dos
valores fundamentais da comunidade, através da protecção de determinados bens
jurídicos em que se concretizam aqueles valores.
Efectivamente, refere Figueiredo Dias («Para uma dogmática…», cit., p. 35), «(…)
a função do direito penal — de todo o direito penal, inclusive do direito penal
administrativo — é a protecção de bens jurídicos considerados como interesses
socialmente relevantes cuja defesa é condição indispensável do livre
desenvolvimento da personalidade do homem».
E mais adiante (p. 37) acrescenta:
Se, como dispõe o artigo 3.º, n.º 2, da Constituição, toda a actividade do
estado (incluída a actividade penal administrativa) se subordina à Constituição
e se funda na legalidade democrática; e sobretudo se, como agora se afirma no
texto revisto do artigo 18.º, n.º 2, as restrições dos direitos, liberdades e
garantias (em que sempre se traduz uma criminalização) devem «limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos; — torna-se então indiscutível a ideia (que de há muito venho
defendendo) segundo a qual entre a ordem axiológica constitucional e a ordem
legal dos bens jurídicos tem de verificar-se uma qualquer relação de mútua
referência. Relação que não é de «identidade» ou sequer de «recíproca
cobertura», mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de
sentido; correspondência que deriva de a ordem axiológica constitucional
constituir o quadro abstracto de referência e, ao mesmo tempo, o critério
regulador da actividade punitiva do Estado. É nesta acepção, e só nela, que os
bens jurídicos protegidos pelo direito penal de justiça se devem considerar
concretizações dos valores constitucionais ligados aos direitos, liberdades e
garantias, os protegidos pelo direito penal administrativo concretizações dos
ligados aos direitos sociais e à organização económica.
Ora, na medida em que a Constituição (artigo 2.º) comete ao Estado de direito
democrático em que se consubstancia a República Portuguesa o respeito e a
garantia de efectivação dos direitos fundamentais e o objectivo de realizar a
democracia económica, terá de ser este preceito constitucional o verdadeiro
parâmetro de conformidade com a Lei Fundamental da responsabilização penal das
pessoas colectivas, uma vez mostrado que a preservação da confiança é um valor
fundamental da vida económica e que a perseguição da maior parte das infracções
ao direito económico passa pela necessidade de punir penalmente, ao lado das
pessoas individuais que agem como seus órgãos ou representantes, a própria
pessoa colectiva.
Mas, por todas as razões já aduzidas, é manifesto que mesmo nesta perspectiva
não ocorre qualquer violação de preceito ou princípio constitucional pela norma
legal que estabelece aquela responsabilização penal.
7.2 — Quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade do artigo 3.º em
análise e baseado na violação do princípio constitucional do non bis in idem,
constante do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição, o mesmo não parece também
poder resistir a uma análise minimamente aprofundada.
O referido preceito da Constituição estabelece que «ninguém pode ser julgado
mais do que uma vez pela prática do mesmo crime», e acerca do mesmo escrevem
Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª ed., p. 194):
O n.º 5 dá dignidade constitucional ao clássico princípio non bis in idem.
Também ele comporta duas dimensões: a) como direito subjectivo fundamental,
garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo
facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra
actos estaduais violadores deste direito (direito de defesa negativo); b) como
princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental),
obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à
definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários
julgamentos pelo mesmo facto.
No caso dos autos, parece manifesto que este princípio não vem posto em causa,
em qualquer das suas referidas dimensões, porquanto tal princípio não obsta a
que pelo mesmo facto objectivo venham a ser perseguidas penalmente duas pessoas
jurídicas diferentes, sendo também passíveis de sanções diferentes.
Efectivamente, a punição penal de quem age em nome de outrem — entre nós,
expressamente prevista no artigo 12.º do Código Penal — não pode dispensar a
responsabilização directa da pessoa colectiva: as pessoas colectivas são,
actualmente, as entidades que cometem as maiores e mais graves violações dos
valores que o direito penal secundário deve proteger, pelo que a mera
responsabilização dos seus órgãos ou representantes sem a correspondente
penalização do próprio ente colectivo implicaria um tratamento privilegiado
destes em relação àqueles.
Por outro lado, como afirma Figueiredo Dias («Para uma dogmática…», cit., p.
51):
Acresce que a «transferência» da responsabilidade, que verdadeiramente caiba à
pessoa colectiva qua tale, para o nome individual de quem actue como seu órgão
ou representante conduziria muitas vezes — sobretudo nos delitos económicos de
grandes empresas, v. g., multinacionais, com diversificadas esferas de
administração, donde deriva uma acentuada repartição de tarefas e de
competências — à completa impunidade, por se tornar impossível a comprovação do
nexo causal entre a actuação de uma ou mais pessoas individuais e a agressão do
bem jurídico produzido ao nível da pessoa colectiva.
Se estes argumentos servem para demonstrar a necessidade da responsabilização
das pessoas colectivas, mostram também que a consagração legal da
responsabilidade individual ao lado da responsabilidade do ente colectivo pelos
mesmos factos não viola o princípio do non bis in idem uma vez que não existe um
duplo julgamento da mesma pessoa pelo mesmo facto, não se verificando, assim,
qualquer violação do artigo 29.º, n.º 5, da Constituição.
Quanto aos artigos 7.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, a recusa da sua aplicação
resulta apenas de se ter recusado a aplicação da norma principal (o artigo 3.º)
que estabelece a responsabilidade penal das pessoas colectivas, isto é, a sua
inconstitucionalidade seria meramente consequencial.
Face ao que fica exposto, é manifesto que os fundamentos invocados na decisão
para recusa da aplicação do artigo 3.º e consequencialmente, dos artigos 7.º e
8.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, não se verificam, pelo que a
conclusão a que se chega vai no sentido da procedência do recurso.
8 — Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência,
ordena-se a reformulação do despacho recorrido, substituindo-o por outro em
conformidade com o que agora se decidiu em termos de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Abril de 1995. — Vítor Nunes de Almeida — Alberto Tavares da Costa
— Armindo Ribeiro Mendes — Antero Alves Monteiro Diniz — Maria Fernanda Palma —
Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto) — Luís Nunes de Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Estamos perante um caso exemplificador de como um problema linguístico pode
induzir uma controvérsia dogmática. A discussão sobre se a «natureza da coisa»
«pessoa colectiva» admite a responsabilização penal — remetendo para as
categorias que fundamentam essa responsabilização («livre-arbítrio»,
«censurabilidade», «desvalor da conduta», etc.) — decorre apenas do facto de o
legislador ter denominado de «pena» uma certa reacção jurídica, que afecta a
própria pessoa colectiva, em matéria de «crimes contra a economia e contra a
saúde pública».
Trata-se de um problema de uso da linguagem. É a dimensão «emocional» das
expressões «penas» e «responsabilidade penal» que veda ao intérprete o acesso a
uma interpretação jurídico-funcional das reacções aqui cominadas pelo
legislador.
Não é pelo facto de o legislador haver qualificado como «responsabilidade penal»
aquela que se prevê no artigo 3.º, e como «penas», as reacções jurídicas do
artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que a estrutura destas
reacções há-de ser conceitualizada nos quadros da teoria da acção penal.
Aquelas expressões são tão-somente meios para a afirmação de determinadas
consequências normativas.
A discussão é aqui provocada por um «uso mágico» da linguagem [cfr. Alf Ross,
«Tü-Tü», in Uberto Scarpelli (ed.), Diritto e Analisi Del Linguaggio, Milão,
1976, pp. 165-181]. Afastando esse «uso mágico» da linguagem, temos que as
reacções atípicas que o legislador qualificou como «penas» e que afectam a
pessoa colectiva não são teorizáveis nos quadros do direito penal. E porque o
não são, perde sentido a questão de constitucionalidade. — Maria da Assunção
Esteves.
1 — Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Junho de 1995