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Proc. nº 252/95
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal de Círculo do Barreiro, foram os arguidos A e B julgados e condenados como co-autores de um crime de associação criminosa e de diversos crimes de emissão de cheque sem provisão e burla agravada, além do mais, nas penas unitárias de, respectivamente, 15 e 16 anos de prisão.
Não conformados com a decisão condenatória dela interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça sem que, nas respectivas motivações, hajam suscitado qualquer questão de constitucionalidade.
Mas, aquando da audiência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, que teve lugar em 9 de Fevereiro de 1995, o mandatário do arguido B, formulou, ditando para a respectiva acta (fls. 20 a 23), o requerimento seguinte:
'A qualquer cidadão assiste o direito de ver reapreciada decisão que afecte interesses seus. Tal princípio está consagrado no artigo 32º da nossa Lei Fundamental. No âmbito do processo civil qualquer parte do processo cuja decisão lhe foi desfavorável tem a possibilidade de recorrer e assim ver reapreciada toda a matéria de facto do Tribunal Superior. Parece-nos que o legislador penal limitou o alcance daquela norma constitucional. De facto, para além de se recorrer directamente para o Supremo Tribunal de Justiça - Tribunal de Revista -
este limita o seu conhecimento, os seus poderes de cognição, ao reexame de matéria de direito - artigo 433º do C. P. Penal com as excepções previstas nos nºs 2 e 3 do artigo 410º do citado diploma. São pois inconstitucionais as disposições do C. P. Penal referidas, por violação do princípio do duplo grau de jurisdição decorrente do artigo 32º, nº 1, do C. P. Penal [Deveria ter-se dito da Constituição]. Pelo que deve ser declarada essa mesma inconstitucionalidade, e devendo o Tribunal de recurso reassumir o acórdão recorrido em toda a sua extensão, ou seja, quer no plano de facto quer no plano jurídico. O recorrente está em tempo para a arguição desta inconstitucionalidade, conforme se verifica do acórdão nº 14/95 do T. Constitucional, proferido no processo nº 432/93 - 1ª Secção, sendo relator o sr. Dr. Juiz Conselheiro Ribeiro Mendes'.
A senhora Procuradora-Geral Adjunta presente na audiência em representação do Ministério Público, respondendo àquele requerimento, fez consignar na acta a seguinte resposta:
'Tem sido jurisprudência do T. Constitucional
que a arguição de inconstitucionalidade tem de ser feita durante o decorrer do processo para que o Tribunal possa sobre ele pronunciar-se. Consabidamente, são as conclusões de recurso que delimitam o âmbito deste. Pelo que este Supremo Tribunal não poderá conhecer agora da questão suscitada. É pois extemporâneo o ora requerido. Quanto ao conteúdo do referido requerimento não assiste razão ao arguido porquanto é também jurisprudência uniforme quer deste S.T.J. quer do T. Constitucional que os artigos 433º e 410º do C. P. Penal não violam o artigo 32º da Constituição da República. Por todo o exposto deve indeferir-se o requerido, condenando-se em custas o recorrente pelo imcidente anómalo'.
Sobre o requerimento do arguido veio depois a ser proferida pelo Tribunal a seguinte deliberação:
'As conclusões da motivação de recurso fixam-lhe o respectivo
âmbito.
Tendo por objecto matéria de direito, devem constar das conclusões e motivações de recurso as normas jurídicas violadas quaisquer que elas sejam.
As alegações de recurso, sejam elas escritas ou orais, devem incidir sobre as questões suscitadas naquelas conclusões da motivação e não sobre outras, sob pena de extravasarem o respectivo objecto.
Assim, considera-se extemporâneo que seja posto, neste momento, uma questão nova designadamente a de inconstitucionalidade de norma até por violar o princípio de lealdade processual'.
E, por acórdão de 16 de Fevereiro de 1995, o Supremo Tribunal de Justiça, não conhecendo da questão de constitucionalidade, negou provimento aos recursos, se bem que haja alterado a medida das penas em que os arguidos tinham sido condenados na primeira instância.
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2 - O arguido B, sob invocação do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), 72º, nºs 1, alínea b) e 2 e 75º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, veio então interpor recurso daquele acórdão para o Tribunal Constitucional em ordem à apreciação da legitimidade constitucional das normas dos artigos 410º, nºs 1, 2 e 3 e 433º do Código de Processo Penal.
Contudo, por despacho de 29 de Março de 1995, o senhor Conselheiro Relator não admitiu recurso.
Para tanto, depois de se assinalar que na motivação o recorrente não fizera qualquer alusão à inconstitucionalidade das normas questionadas aduziu-se, no essencial, a fundamentação seguinte:
Para o Tribunal Constitucional, o recurso das decisões dos tribunais tem, apenas, por objecto a apreciação da norma cuja inconstitucionalidade ou ilegalidade foi posta em causa, e só pode ser interposto em qualquer das hipóteses taxativamente definidas nas alíneas do nº 1 do art. 70 da Lei nº
28/82, de 15.11.1982.
Sem prejuízo da competência própria daquele tribunal, não existe a possibilidade de um recurso generalizado das decisões do Supremo Tribunal de Justiça - que julga como órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais - para o Tribunal Constitucional.
O pensamento contrário, que se evidencia no requerimento de fls.
1702, esse sim, viola o disposto no art. 212, nº1, da CRP.
Na parte do acórdão de 16.02.1995, que respeita ao recurso do arguido B, vindo da primeira instância, nem se recusou a aplicação de qualquer norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade, nem se aplicou norma cuja inconstitucionalidade fosse suscitada ao longo do processo, isto é, anteriormente à interposição do recurso para o Tribunal Constitucional e até à decisão condenatória da primeira instância.
Acresce que ainda recentemente, o Tribunal Constitucional considerou não inconstitucional o art. 433º, do CPP (Ac. nº 322/93, de 5.5.1993). E existe, de facto, uma vasta corrente jurisprudencial, no sentido de que tanto o art.
433º, como o art. 410º, do citado CPP, não enfermam de qualquer inconstitucionalidade, o que se pode considerar como jurisprudência pacífica
(vd., por todos , o Ac. do STJ, de 14.4.1994, no Pº 45.901, e o Ac. do TC º
384/94).
Contra este despacho foi apresentada reclamação a qual, depois de o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 4 de Maio de 1995, haver confirmado a não admissão do recurso, foi remetida a este Tribunal.
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3 - Após um complemento instutório do processo, o senhor Procurador-Geral Adjunto, na vista que lhe foi dada, muito embora tenha considerado que a alegação a que se reporta o artigo 423º do Código de Processo Penal deve ter-se por acto processual idóneo e tempestivo para suscitar uma questão de inconstitucionalidade normativa atinente à definição dos poderes cognitivos do tribunal 'ad quem', pronunciou-se depois no sentido do indeferimento da reclamação pois que esta se configura como manifestamente infundada.
Com efeito, segundo o seu entendimento, não é lícito ao recorrente ignorar que, desde há muito, segundo a jurisprudência reiterada e uniforme o regime instituido por aquelas normas dispõe de plena conformidade constitucional, sendo caso que na sua 'lacónica alegação' não foi produzido qualquer argumento acrescido, que não haja sido debatido e ponderado aquando da formulação daquela orientação jurisprudencial.
Corridos os vistos legais, cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28//82, de 15 de Novembro, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Vem este Tribunal entendendo, em jurisprudência uniforme e reiterada, que o pressuposto de admissibilidade daquele tipo de recurso - do qual o reclamante se serviu - no atinente ao exacto significado da locução
'durante o processo' utilizado em ambos os normativos, deve ser tomado não num sentido puramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância), mas num sentido funcional, tal que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão. Ou seja: a inconstitucionalidade haverá de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de inconstitucionalidade) respeita. Um tal entendimento decorre do facto de se estar justamente perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal a quo sobre a questão
(de constitucionalidade) que é objecto do mesmo recurso.
Deste modo, porque o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e porque a eventual aplicação de uma norma inconstitucional 'não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', há-de ainda entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão de inconstitucionalidade (cfr. sobre este tema, por todos, os acórdãos nºs 62/85 e 94/88, Diário da República, II série, respectivamente, de 31 de Maio de 1985 e de 22 de Agosto de 1988).
Todavia, a orientação geral assim definida, não será de aplicar em determinadas situações de todo excepcionais, em que os interessados não disponham de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes do proferimento da decisão, caso em que lhes deverá ser salvaguardado o direito ao recurso de constitucionalidade.
Na verdade, num plano conformador da sua jurisprudência genérica sobre este tema, o Tribunal Constitucional vem entendendo que naqueles casos anómalos em que o recorrente não disponha de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade durante o processo, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal a quo sobre a matéria a decidir, ainda assim existirá o direito ao recurso de constitucionalidade (cfr. os acórdãos nºs 136/85 e 61/92, Diário da República, II série, respectivamente de
28 de Janeiro de 1986 e 18 de Agosto de 1992).
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2 - Aplicando ao caso sub judice o entendimento jurisprudencial assim definido, há-de dizer-se que apesar de o reclamante não ter suscitado qualquer questão de constitucionalidade na motivação do recurso, ainda o poderia fazer atempadamente, do ponto de vista do preenchimento dos pressupostos do recurso de constitucionalidade, no decurso da audiência a que se reporta o artigo 423º do Código de Processo Penal.
Com efeito, como resulta dos artigos 424º e 425º do mesmo diploma, só depois do encerramento da audiência, o tribunal reúne para deliberar e votar, sendo a seguir elaborado o respectivo acórdão, com o que se esgota o seu poder jurisdicional sobre a matéria.
Deste modo, a suscitação da questão de constitucionalidade, ditada para a acta da audiência, foi deduzida em momento em que o Supremo Tribunal de Justiça ainda não havia proferido a sua decisão sobre o mérito da causa, não existindo assim impedimento a que conhecesse da matéria relativa à definição da extensão dos seus poderes cognitivos no recurso de revista ampliada.
Neste sentido se decidiu no Acórdão nº 14/95, de 31 de Janeiro de 1995, ainda inédito, no qual, num recurso do Ministério Público, se reconheceu que o arguido poderia ter suscitado adequadamente a questão de constitucionalidade 'na resposta à motivação do recurso interposto pelo Ministério Público ou nas alegações orais apresentadas no Supremo Tribunal de Justiça, devendo, neste último caso, ser requerido a menção em acta das razões porque reputava tais normas inconstitucionais'.
Também não se tem por probante a argumentação que extrai a extemporaniedade da suscitação da questão de constitucionalidade do facto de esta não constar das conclusões da motivação do recurso.
É que, como se assinalou no Acórdão nº 41/92, Diário da República, II Série, de 20 de Maio de 1992, 'a questão da natureza oficiosa do conhecimento da inconstitucionalidade [cfr. artigo 207º da Constituição] - nos autos invocada em termos inequivocamente - não só prevalece perante o argumento da 'questão nova' como igualmente se faz valer perante o da limitação do objecto do recurso pelo teor das alegações, baseado no artigo 690º, nº 1, do Código de Processo Civil, nomeadamente porque, em processo constitucional, basta que a decisão do tribunal aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Por outro lado, porque a questão de constitucionalidade se prende directamente com o objecto do recurso interposto perante o Supremo Tribunal de Justiça - o seu julgamento acha-se dependente do próprio âmbito de cognição daquele Tribunal - tem de se concluir que no acórdão recorrido se fez aplicação implícita das normas cuja legitimidade constitucional se havia anteriormente questionado.
E assim sendo, não se verifica, nesta primeira vertente de apreciação, obstáculo à admissibilidade do recurso.
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3 - Mas, apesar de se dar como verificada a existência dos requisitos processuais relativos à tempestiva e adequada suscitação da questão de constitucionalidade por parte do recorrente, será que a reclamação deverá ser desatentida por se considerar, talqualmente sustenta o Ministério Público, que o recurso em causa se apresenta como 'manifestamente infundado'?
É certo que ao reclamante não é lícito ignorar a jurisprudência reiterada e uniforme das duas secções deste Tribunal no sentido da não inconstitucionalidade das normas que pretende ver apreciadas, do mesmo modo que na alegação expendida a favor de tal entendimento não se colhe qualquer argumento novo ou acrescido relativamente à linha de fundamentação que vem suportando aquela jurisprudência.
Sem prejuízo de se aceitar a posição defendida pelo senhor Procurador-Geral Adjunto no sentido de que quando se intenta contrariar uma corrente jurisprudencial firmada após debate aprofundado, é mister que o recorrente traga à colação elementos ou argumentos novos sob pena de o recurso se dever qualificar como 'manifestamente infundado', não pode ignorar-se a divisão de opiniões dos juizes deste Tribunal a propósito da definição daquela jurisprudência.
Com efeito, decidindo embora em todos os casos que até agora lhe foram apresentados em termos de não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 433º e 410º, nºs 1, 2 e 3 do Código de Processo Penal [cfr. por todos os acórdãos nºs 322//93, 170/94 e 172/94, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 29 de Novembro de 1993, 16 e 17 de Julho de 1994), sempre porém tais decisões foram tiradas, em qualquer das suas secções do Tribunal, por quatro votos contra três.
Ora, neste contexto não deve ter-se por manifestamente infundado um recurso que, não obstante a escassa contribuição argumentativa constante da respectiva petição, procura alterar o sentido de uma jurisprudência relativamente à qual existe uma forte dialéctica entre os membros do Tribunal, achando-se a sua subsistência à mercê da mudança de pensamento e de posição de um único juiz.
Aliás, porque o requerimento de interposição de recurso não foi indeferido no tribunal 'a quo' com base no entendimento de ser ele
'manifestamente infundado', ainda quando este Tribunal assim o considerasse, não poderia recusa-lo ao abrigo da disposição contida no artigo 76º, nº 1 da Lei nº
28/82.
E assim sendo, na sequência do exposto, deverá conceder-se atendimento à reclamação.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se deferir a reclamação, devendo, em consequência, ser admitido o recurso de constitucionalidade a que a mesma se reporta.
Lisboa, 7 de Maio de 1996
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Luis Nunes de Almeida