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Processo nº 562/92
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com os sinais identificadores dos autos, veio
interpôr recurso para este Tribunal Constitucional do Acórdão da 1ª Secção do
Supremo Tribunal Administrativo, de 19 de Maio de 1992, que negou provimento a
dois recursos jurisdicionais interpostos pelo mesmo recorrente e confirmou, 'em
consequência, ambos os despachos recorridos - o despacho avulso de fls. 126 que
decretou a nulidade parcial da réplica - e o despacho-saneador sentença de
fls. 130 e ss. que conheceu directamente do pedido' (despachos do Mmº Juiz do
Tribunal Administrativo do Círculo do Porto), julgando a acção improcedente e
absolvendo o Estado do pedido.
Nessa acção pedia o Autor, ora recorrente, a
condenação do Estado 'a pagar-lhe, a título de indemnização por danos morais, a
quantia de 5 000 000$00'.
'Isto porque - alegou em síntese - se encontrou
ilegalmente sujeito a prisão preventiva entre 14-11-89 e 17-1-90 no processo de
querela nº 416/89 da 2ª Secção do 3º Juízo da comarca de Vila Nova de Famalicão,
uma vez que desde aquela 1ª data se encontrava já amnistiado o crime de furto
que nesses autos era imputado à sua autoria' - é o que se lê no relatório do
acórdão recorrido.
2. No requerimento de interposição do recurso para
este Tribunal Constitucional invocou o recorrente a 'al. b) do nº 1 do artº 70
da Lei 28/82' e acrescenta:
'E com base em que o acórdão recorrido interpretou o artº 27, nº 5 da Const. da
República e o artº 225, nº 1, do C.Pr.Penal - como NORMA ou PRINCÍPIO que
estatuem quanto a privações de liberdade ou prisões 'manifestamente' ilegais se
ordenadas por magistrados (providos da necessária competência legal e dentro do
exercício do seu munus) apenas e quando 'se hajam determinado à margem dos
princípios deontológicos e estatutários que regem o exercício da função
judicial ou impulsionados por motivação com relevância criminal, v.g., por
peita, suborno e concussão' (ponto 10 do Acórdão)'.
3. Nas suas alegações, formulou o recorrente as
seguintes conclusões:
'1
O recorrente esteve preso, por mandado de captura emitido pelo Mº Juiz da
Comarca de Famalicão, no proc. de Querela 416/89, no Estabelecimento Prisional
de ---------- - desde 14-11-89 até 17-1-1990;
2
Por um crime então inexistente e como medida cautelar em procedimento criminal
que estava extinto:
E crime inexistente e procedimento criminal extinto - por mera imperatividade e
força da lei.
3
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-1-90 - assim foi já julgado.
4
Acontece que no douto Acórdão recorrido do Supremo Tribunal Administrativo - se
considerou que a prisão preventiva dos autos resultou de 'uma decisão revestida
de total licitude e prolatada dentro das regras técnico-jurídicas e dos cânones
deontológicos - funcionais cabíveis. E, sem embargo de o tribunal Superior não
ter vindo a coonestar a respectiva subsistência, o certo é que esta não veio a
revelar-se injustificada por qualquer erro indesculpável...' E tal consideração
é o fundamento da improcedência do pedido.
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Tais 'considerações, 'norma' ou 'princípio' (art 70, b, 75-A e 79-C, da Lei nº
28/82) - têm o sentido que delas próprias resultam e do contexto da
fundamentação e consideração expressas antes ao longo do Acórdão: em que se
pretendia que, para o douto Acórdão, - a responsabilidade do Estado face ao
cidadão preso por ordem dum Juiz não se baseia tão só em ter acontecido
'privação de Liberdade' 'contra o disposto na Constituição e na Lei' - como
dispõe o artº 27, nº 5, da Const. da República e o cit. artº 5, nº 5, da Conv.
Eu. Dir. do Homem.
POIS QUE,
6
Para o Acórdão recorrido o 'dever de indemnizar', (face a actos jurisdicionais
do Juiz) é apenas aquele que resultar dos termos em que a lei estabelecer, como
os do artº 690º do C.Pr.Penal (erro judiciário) e 1083 do C.P.Civil (p peita)-
suborno ou concussão dos magistrados');
Não se aplicando o Dec.L. 48051
E face ao nº 1 do artº 225 do C.Pr.Penal - só contempla as prisões quando
ordenadas por 'magistrados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária
competência legal ou fora do exercício do seu munus ou ... se hajam
determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o
exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância
criminal, v.g. por peita, suborno ou concussão'.
E quanto ao nº 2 do cit. artº 225 - torna-se necessário 'o erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto e a ocorrência de 'prejuízos anómalos e de
particular gravidade'.
E DAÍ QUE
7
'A conduta do magistrado em apreço foi pois lícita' - 'pois que a apreciação dos
pressupostos de facto de que depende a prisão preventiva é da competência do
juiz do Processo, sendo certo que se apresenta como inquestionável no caso sub
judice quer a competência funcional e legal do magistrado decidente quer o
quadro normativo legal em que se moveu, excluída se encontra a hipótese da
manifesta (no sentido de flagrante, evidente e notória) ilegalidade do
decretamento da prisão preventiva dos autos'. E assim, se interpretou e afastou
a aplicação aos autos do nº 1 do cit. artº. 225 do C.Pr.P..
8
Quanto ao nº 2 desse artigo - exige que a prisão se venha a 'revelar
injustificada por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de
facto'.
O que o douto Acórdão entendeu também não se ter verificado.
9
E nada disso terá acontecido, se o magistrado ordenou e a prisão se efectivou,
determinando aquele, dentro da sua competência legal e dentro do munus, e com
uma interpretação dos factos e da lei, que embora errada-todavia na sua conduta
nada há de censurável técnico-juridicamente ou deontologicamente.
10
Entende o recorrente que NÃO É ESSA A NORMA OU PRINCÍPIO que exorna quer do cit.
artº. 27, nº 5, da Constituição da República quer do cit. artº. 5, nº 5, da
Conv. Eur. dos Dir. do Homem.
11
Bem como entende o recorrente que qualquer disposição legal ou qualquer
interpretação que vá contra ou restrinja a norma ou princípio exornantes dos
cits. arts. 27, nº 5 e 5, nº 5 são inconstitucionais. Como já suscitou e,
nomeadamente, nos arts 14, 15, 28 e 29, da petição inicial; arts 18, 19, 20,
21, 22, 25, 26, 27, 29, 30, 31, 32, 38, 39, 40, 60, 66 e 68 das alegações do
Recurso para o Supremo tribunal Administrativo.
E, assim, é inconstitucional a Norma ou Princípio referidos exornantes do douto
Acórdão recorrido.
NA VERDADE,
12
O artº. 27, nº 5, da Const. da República estatui que a 'privação da liberdade'
contra 'o disposto na Constituição e na Lei 'constitui o Estado no dever de
indemnizar o lesado nos termos que a Lei estabelecer'.
13
Tal preceito é de aplicação imediata e directa - e vale directamente contra a
lei; quando esta estabeleça 'restrições' em desconformidade com o seu comando
(artº 18, nº 1 da C. Rep. e J.J. Gomes Canotilho, Rev. L. J. 124, 86 e Dir.
Const. 192 e anot. ao artº 18).
14
Os 'termos que a lei estabelecer' referem-se à regulamentação do 'comando'
constitucional: o que está para além dele; mas não contra ele; p. ex. a
avaliação do dano, da causalidade, da forma do pagamento, etc. (cit. Gomes
Canotilho, Rev. L. J. 86).
15
E qual o conteúdo, o comando a 'norma' do cit. artº. 27, nº 5? Representa uma
ponderação, um justo equilíbrio dos 'contra-valores' que existem na
problemática da responsabilidade dos Tribunais por decisões contra a lei (J.J.
Gomes Canotilho - Dir. Const., 1991, p. 674; Alegações de recurso para o Sup.
Trib. Ad. nºs 11 a 21).
O artº 27, nº 5, apenas exige a verificação de dois pressupostos objectivos: 1º.
A privação da liberdade; 2º. Contra o disposto na Constituição e na Lei.
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ISTO É, é uma responsabilidade objectiva e não subjectiva. NÃO interessa a
'valoração' da 'conduta' do agente, a 'responsabilidade' do 'sujeito'.
17
Existem na nossa lei muitos outros casos de responsabilidade objectiva (artº
503; 334; 289 e 473 do C. Civil).
18
O Tribunal da Relação do Porto ordenou a libertação do recorrente precisamente
porque a privação da liberdade de que estava a sofrer foi e era 'contra o
disposto na lei'.
19
Não há que confundir a 'licitude' funcional ou a 'licitude' da conduta do
agente, e muito menos a sua 'culpa' (subjectivadas) - com a ilicitude da
situação de privação da liberdade do arguido porque ela meramente e
objectivamente não tem apoio na Lei (mera situação objectiva e a se).
20
ASSIM, o artº 27, nº 5 da Const. da República não vai exigir que se 'avalie' a
'conduta' do magistrado! Ou a 'sua culpa' ou 'a sua responsabilidade! ou a sua
'função'!
Nem sequer vai exigir que se julgue, numa eventual acção de indemnização, se a
'prisão', objectivamente considerada, respeitou o disposto na Lei!.
21
Pois que só se pode considerar admitido o pressuposto de que 'a prisão
preventiva' existiu 'contra o disposto na Lei' - se foi preliminarmente
decidida em Recurso pelo Tribunal competente a revogação da prisão antes
ordenada!
Pois que se não houvesse recurso (ou havendo-o, ele foi improcedente) - então o
despacho do Mº Juiz que ordenou a prisão transitou! E se transitou, então a
prisão preventiva está de acordo com o disposto na lei... Certo que tal resulta
da 'autoridade de caso julgado' (artº 208, 2 da Constituição Rep) - que faz do
'preto branco, ou do torto direito'; como comentam os especialistas de direito
processual.
22
Que podem existir 'erros judiciários' 'objectivos' (independentes da conduta
irrepreensível do agente) - resulta 'insofismavelmente' da instituição dos
Recursos!
23
Obviamente, que a mesma situação concreta de prisão - não pode estar contra o
disposto na lei e na Constituição quando o Tribunal da Relação do Porto a
revoga e manda restituir à liberdade o A; mas já estar (essa mesma prisão) de
acordo com a lei e a Constituição... quando o mesmo Poder Judicial vai decidir
se essa mesma prisão esteve ou não de acordo com a lei e a Constituição - para
com base nessa alternativa conceder ou não uma 'sua satisfação indemnizatória'.
24
Assim, o artº 225 do C.Pr.Penal tem apenas o significado 'positivo' que o artº
27, nº 5, da Constituição lhe consente. Mas não o valor negativo de excluir
indemnização que pelo 'núcleo essencial e irredutível' daquele seja devida.
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Como inconstitucional será - acrescentar, exigir, (como outros pressupostos da
dita indemnização e como conteúdo quer do cit. artº 27, nº 5, quer do cit, artº
225) - que a conduta do agente desrespeite deveres deontológicos ou que exista
dolo ou culpa do agente ou determinações criminais.
26
Na verdade o artº 27, nº 5, tem um núcleo essencial irredutível - de aplicação
directa e não contrariável pela lei ordinária e jurisprudência.
Esse 'núcleo essencial irredutível' é o de existir prisão contra o disposto na
Constituição e na Lei. Não há que - daí restringir: estabelecer diversas
'modalidades' de prisão contra o disposto na lei. E só umas conferirem o direito
a indemnização e outras não.
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Interpretar à priori, o artº 27, nº 5, da Constituição da República como
podendo a lei ordinária 'eleger' as 'modalidades' de 'prisão contra o disposto
na Lei' que determinem indemnização e excluir as outras - era deixar nas mãos
do legislador as chaves para fechar a porta aberta pela 'bela proclamação' da
Constituição.
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Assim, a norma ou princípio, a interpretação do Acórdão recorrido do conteúdo
normativo do artº 225º do Código de Processo Penal e do artº 27º, nº 5, da
Constituição da República - são inconstitucionais; por ofender a norma ou
princípio que se defende exornar do citado artº 27º, nº 5.
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E, consequentemente o julgamento da causa está viciado e ofende o artigo 207º da
Constituição da República devendo proceder o recurso, revogar-se o douto
Acórdão recorrido; a substituir por outro que aplique à matéria dos autos o
referido e defendido princípio ou norma constitucional violada (artº 27º, nº
5): de que para alicerçar o direito peticionado à indemnização é
constitucionalmente bastante que a prisão preventiva tenha sido objectivamente,
a se, contra o disposto na Lei e como já foi julgado pelo douto Acórdão do
Tribunal da Relação do Porto'.
4. O Ministério Público apresentou contra-alegações,
concluindo que:
'1º Durante o processo, o recorrente apenas suscitou a questão da
inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 225º do Código de Processo
Penal de 1987, enquanto:
a) na interpretação do Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, não seria
aplicável a actos praticados no exercício da função jurisdicional;
b) exige que seja 'manifesta' a ilegalidade da prisão para surgir o direito a
indemnização.
2º A decisão recorrida não fez aplicação desses dois segmentos normativos
arguidos de inconstitucionais, pois:
a) reconheceu que o nº 1 do artigo 225º citado era aplicável a actos praticados
no exercício da função jurisdicional;
b) constatou que a prisão imposta ao recorrente não foi, de todo em todo,
ilegal, pelo que a recusa da indemnização não se baseou no entendimento de não
ser 'manifesta' a (inexistente) ilegalidade da prisão.
3º Não tendo a decisão recorrida feito aplicação da norma do nº 1 do aludido
artigo 225º nos segmentos arguidos de inconstitucionais pelo recorrente, o
presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro, era inadmissível, e, por isso, não se deve tomar
conhecimento do mesmo.
4º Caso assim se não entenda, há que apreciar a conformidade da norma
questionada apenas em confronto com o disposto no artigo 27º, nº 5, da
Constituição, e já não face ao artigo 22º da mesma Lei Fundamental e ao artigo
5º, nº 5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pois:
a) aquele artigo 22º, a ser aplicável à responsabilidade do Estado por actos
da função jurisdicional, apenas o será a actos ilícitos praticados com dolo ou
culpa grave;
b) este artigo 5º, nº 5, não oferece maiores garantias que o nº 5 do artigo 27º
da Constituição.
5º Atento o circunstancionalismo do caso concreto do recorrente, em que as
últimas instâncias das respectivas ordens judiciárias com intervenção nos
processos (Tribunal da Relação do Porto e Supremo Tribunal Administrativo) não
reconheceram a ilegalidade da manutenção da prisão preventiva do recorrente,
antes tendo sido explicitamente afirmada a inexistência de ilegalidade, é de
concluir que a interpretação e aplicação feita, no caso, do artigo 225º, nº 1,
do Código de Processo Penal de 1987 em nada colidiu com o disposto no artigo
27º, nº 5, da Constituição.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, se antes não se decidir
dele não conhecer'.
5. Ouvido o recorrente 'sobre a questão prévia
suscitada pelo Ministério Público', veio sustentar, com largo desenvolvimento,
que tal questão 'não tem formalmente razão de ser dado o sentido exornante das
alegações do recorrente'.
6. Vistos os autos, cumpre decidir, começando
naturalmente, pela dita questão prévia, por ser obstáculo ao conhecimento do
mérito do recurso.
O Mmº Juiz do Tribunal Administrativo do Círculo do
Porto, considerou 'assentes entre as partes os seguintes factos' (acolhidos
depois no Acórdão recorrido):
'1) No processo de querela nº 416/89, pendente no 3º Juízo, 2ª Secção, do
Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, foi, em 26 de Outubro de 1989,
proferido pelo Mmº Juiz titular despacho de pronúncia, no qual o ora Autor foi
pronunciado como co-autor de um crime de introdução em lugar vedado ao público
previsto e punido pelo artigo 177º do Código Penal e de um crime de furto
qualificado previsto e punido pelos artigos 296º e 297º, nº 1 e nº 2, alínea c)
e h), do mesmo Código;
2) No mesmo despacho, determinou-se que o ora Autor aguardasse sob prisão
preventiva os ulteriores termos do processo e ordenou-se, em conformidade, a
emissão de mandados de detenção daquele;
3) O ora Autor veio, na sequência do assim decidido pelo referido magistrado, a
ser preso e conduzido ao Estabelecimento Prisional do Porto em 3 de Novembro de
1989;
4) Em 6 de Novembro de 1989, o ora Autor requereu ao mesmo juiz que fosse
arbitrado o valor das indemnizações devidas aos lesados, para efeitos de ele
poder beneficiar da amnistia concedida pela Lei nº 16/86, de 11 de Junho;
5) Tal requerimento veio a ser deferido, tendo o juiz titular do processo
fixado em Esc: 80 000$00 o total da indemnização devida pelo ora Autor ao
ofendido B.;
6) Tendo procedido ao depósito de tal quantia na Caixa Geral de Depósitos, o ora
Autor requereu, em 19 de Novembro de 1989, ao juiz do processo que fosse
declarado amnistiado o crime de furto pelo qual fora pronunciado, ao abrigo dos
artigos 1º, alínea g), e 3º da citada Lei nº 16/86, e ordenada a cessação da sua
prisão preventiva;
7) Porém, por despacho de 21 de Novembro de 1989, o Mmº Juiz titular do 3º
Juízo, 2ª Secção, do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão indeferiu o
referido requerimento, tendo mantido a prisão preventiva do ora Autor
decretada no despacho de pronúncia, com fundamento no disposto no artigo 373º
do Código de Processo Penal de 1929, dado terem sido interpostos (pelo
MINISTÉRIO PÚBLICO e pelo ora Autor) recursos daquele despacho (de pronúncia);
8) Tendo o processo subido ao Tribunal da Relação do Porto, para conhecimento
dos recursos interpostos do despacho de pronúncia, veio aquele Tribunal, por
Acórdão de 17 de Janeiro de 1990, a julgar improcedente o recurso interposto
pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, a declarar extinto, por prescrição, o procedimento
criminal quanto ao crime previsto e punido pelo artigo 177º do Código Penal, a
julgar amnistiado o crime previsto e punido pelos artigos 296º e 297º, nºs 1 e
2, alíneas c) e h), ambos do mesmo Código, com a consequente extinção do
respectivo procedimento criminal, e a ordenar a passagem de mandados de
soltura a favor do ora Autor, para imediato cumprimento;
9) Na sequência do assim decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, o ora Autor
foi, em 17 de Janeiro de 1990, restituído à liberdade'.
O mesmo Juiz usou como fundamentação, na parte que
aqui pode interessar, o seguinte quadro:
- partindo do direito fundamental consagrado no nº 2
do artigo 27º da CRP e da doutrina do Acórdão deste Tribunal Constitucional nº
90/84 (nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol. pág. 267 e segs.),
largamente citado e transcrito, chega à conclusão de que 'o estado de coisas
existentes à data em que foi proferido pelo Tribunal Constitucional tal aresto
alterou-se significativamente com a entrada em vigor, a 1 de Janeiro de 1988
(cfr. artigo único da Lei nº 17/87, de 1 de Junho), do Código de Processo Penal
de 1987. Com efeito, neste diploma, o legislador ordinário, ao definir os
'termos' em que há lugar a indemnização por danos decorrentes da privação da
liberdade, em caso de detenção ou prisão preventiva, fá-lo em termos tais que
abarcam na sua previsão, pela primeira vez no nosso ordenamento jurídico, não
apenas aquelas situações em que a prisão ou detenção tenham tido como exclusivo
fundamento o acto de um órgão ou agente administrativo (situações essas às
quais - como vimos - já antes era directamente aplicável o Decreto-Lei nº 48
051, de 21 de Novembro de 1967, sobre a responsabilidade extracontratual do
Estado no domínio dos actos de gestão [administrativa] pública), como também os
casos em que a privação da liberdade é produzida, não por um acto daquela
natureza, mas sim por um acto da função judicial, isto é, por acto de um juiz.
Assim é que, enquanto, no nº 1 do artigo 225º do
referido Código, se dispõe, com os olhos postos no 1º tipo de situações acima
aludidas, que 'quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos
sofridos com a privação da liberdade', já o nº 2 do mesmo preceito estende a
regulamentação contida no seu nº 1 também àquelas situações em que alguém sofre
'prisão preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por
erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a
privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular
gravidade'. Sabendo-se, como se sabe, que a apreciação dos pressupostos de facto
de que depende a prisão preventiva é, segundo a tramitação legal do processo
penal, feita por um juiz (tanto no inquérito, como nos momentos processuais
subsequentes, as medidas de coacção, ressalvado o termo de identidade e
residência, são aplicadas por despacho do juiz: cfr. artigos 194º, nº 1, 202º,
nº 1, e 268º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal de 1987), já se vê
que o citado nº 2 do artigo 225º, ao prever que possam ser indemnizados pelo
Estado os danos sofridos pelos cidadãos com a privação da liberdade, em caso de
prisão preventiva legal mas injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto de que dependia, está a contemplar hipóteses em que a
prisão preventiva tem na sua origem uma decisão judicial.
De modo que já hoje se não pode dizer - como o fez,
em 1984, o Tribunal Constitucional, no citado Acórdão nº 90/84 - que inexiste
lei a que recorrer, para o efeito da regulamentação do direito à indemnização
reconhecido pelo artigo 27º, nº 5, da Constituição da República aos cidadãos
privados da liberdade em consequência de actos dos juízes no exercício da
respectiva função. Essa lei já existe: os citados artigos 225º e 226º do Código
de Processo Penal de 1987.
E nem se diga que tais preceitos, porque inseridos
num diploma processual só aplicável (por força do disposto no artigo 7º, nº 1,
'in fine', do citado Decreto-Lei nº 78/87) aos processos-crime instaurados a
partir da data da sua entrada em vigor (1 de Janeiro de 1988), seriam
inaplicáveis, pelo menos directamente, ao caso dos autos, visto o processo-crime
no qual foram proferidos os despachos judiciais que sujeitaram o ora Autor a
prisão preventiva se ter regido, até ao trânsito em julgado da decisão que lhe
pôs termo, pelo Código de Processo Penal de 1929, nos termos do mesmo artigo 7º,
nº 1, 'in fine', do Decreto-Lei nº 78/87. Com efeito, disposições como as
daqueles artigos 225º e 226º do Código de Processo Penal de 1987, embora
contidas num diploma de índole processual, possuem, irrecisavelmente, natureza
substantiva. Daí que a regulamentação neles vertida não possa deixar de se
aplicar directamente a toda e qualquer situação de prisão preventiva posterior
a 1 de Janeiro de 1988 (data da entrada em vigor de tais preceitos) que caiba
nas malhas da sua previsão. Ora, como sabemos, o ora Autor esteve
preventivamente preso entre 3 de Novembro de 1989 e 17 de Janeiro de 1990'.
- 'Chegados a este ponto (acrescenta o julgador),
falta tão só averiguar se a prisão preventiva sofrida pelo ora Autor à ordem do
processo de querela nº 416/89, pendente no 3º Juízo - 2ª Secção do Tribunal
Judicial da Comarca de Vila Nova de Famalicão, em consequência dos despachos
proferidos em 14 de Novembro de 1989 e em 21 de Novembro de 1989 pelo
Meretíssimo Juiz a quem aquele processo estava distribuído, se veio a revelar
injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que
dependia (cfr. nº 2 do citado artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987).
Isto porque, tendo tal prisão preventiva sido determinada por actos judiciais
(por actos de um juiz no exercício da sua função), está liminarmente excluído
que, nesta acção, ainda que para meros efeitos indemnizatórios, se possa vir a
qualificá-la de 'manifestamente ilegal', nos termos do nº 1 do mesmo artigo
225º. É que os actos dos juízes proferidos no exercício das suas funções, nos
processos que lhes estão distribuídos, são actos lícitos do poder público
enquanto poder ou função judicial.
No caso concreto, não obstante os aludidos
despachos do Mmº Juiz do 3º Juízo - 2ª Secção do Tribunal da Comarca de Vila
Nova de Famalicão (o de 21 de Novembro de 1989) terem sido, em via de recurso,
implicitamente revogados pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de
Janeiro de 1990 (que declarou extinto, por prescrição, o procedimento criminal
quanto a um dos crimes por que o Autor fora pronunciado e julgou amnistiado o
outro crime que lhe era assacado no despacho de pronúncia), nem por isso perdem
eles 'o carácter de actos judiciais lícitos - pois que proferidos no uso de uma
competência legal (...) e com respeito pelos princípios deontológicos que regem
o exercício da função judicial (o que não está posto em causa)' (cfr. citado
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84). 'É que - como se observou no mesmo
aresto - os recursos judiciais visam apenas o controlo 'material' do conteúdo
das decisões, e não o controlo 'funcional' da conduta dos juízes' (ibidem). 'Ou
seja: visam permitir que a questão contenciosa seja reapreciada por outro
tribunal, suposto melhor qualificado ou habilitado para o seu julgamento, mas
sem que tal reapreciação afecte a legitimidade 'funcional' da decisão do
tribunal inferior (observadas que tenham sido as exigências deontológicas
antes referidas): este tribunal, tal como o tribunal de recurso, não deixou de
exercer a função que constitucionalmente lhe cabe de 'administrar a justiça'
(artigo 205º) com plena e integral 'independência' (artigo 208º), isto é, a
função de dizer o direito (tanto que, não fora o recurso, e a sua definição do
direito do caso teria adquirido carácter definitivo' (ibidem). Por isso, 'a
revogação da decisão do tribunal inferior apenas significa que o tribunal de
recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um juízo diverso do daquele
(...), e que este segundo juízo vai prevalecer, obviamente, sobre o primeiro'
(ibidem).
Assente, pois, que a prisão preventiva sofrida pelo
ora Autor, porque fundada em actos jurisdicionais lícitos, não pode ser
qualificada de manifestamente ilegal, nos termos e para os efeitos do citado nº
1 do artigo 225º, resta averiguar se terá havido, nos referidos despachos do Mmº
Juiz do 3º Juízo - 2ª Secção do Tribunal da Comarca de Vila Nova de Famalicão,
um erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, in
casu, a prisão preventiva'.
- para concluir, finalmente, após larga divagação
sobre os requisitos formais e materiais da prisão preventiva imposta ao
recorrente, que 'não houve, in casu, nenhum erro grosseiro na apreciação dos
pressupostos de facto de que dependia a prisão preventiva, por parte do Mmº
Juiz autor da decisão judicial que sujeitou o ora Autor àquela medida coactiva,
o pedido indemnizatório formulado contra o ESTADO pelo Autor não pode senão
improceder.'
Uma primeira asserção que tem de colher-se da decisão
de primeira instância é a de que nela se considerou claramente que 'que a prisão
preventiva sofrida pelo ora Autor, porque fundada em actos jurisdicionais
lícitos, não pode ser qualificada de manifestamente ilegal, nos termos e para
os efeitos do citado nº 1 do artigo 225º', o que significa que o julgador se
posicionou apenas no âmbito do nº 2 do mesmo artigo 225º, inaplicando à situação
aquele nº 1.
'Isto porque, tendo tal prisão preventiva sido
determinada por actos judiciais (por actos de um juiz no exercício da sua
função), está liminarmente excluído que, nesta acção, ainda que para meros
efeitos indemnizatórios, se possa vir a qualificá-la de 'manifestamente
ilegal', nos termos do nº 1 do mesmo artigo 225º. É que os actos dos juízes
proferidos no exercício das suas funções, nos processos que lhes estão
distribuídos, são actos lícitos do poder público enquanto poder ou função
judicial' - é o que se lê na sentença.
E mais: não emitiu nenhum juízo de
(in)constitucionalidade acerca daquele citado artigo 225º.
7. No recurso jurisdicional interposto dessa decisão
perante a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, pugnou o recorrente, nas
suas alegações, pela aplicabilidade ao caso do nº 1 do artigo 225º nos termos
que se seguem:
'37
Consequentemente, o artº 225º do C.Pr.P., nº 1 abrange também a responsabilidade
da 'função jurisdicional': não havendo razões para uma interpretação restritiva
de tal preceito.
38
Aliás, a interpretação em contrário, nomeadamente a da sentença recorrida -
excluindo do artº 225, nº 1, a função jurisdicional (e mesmo que fosse
interpretação cabida para tal artigo) seria então inconstitucional.
39
ISTO É, se o artº 225, nº 1, pretende como norma concretizadora excluir a
função jurisdicional: ela ofende os artºs 22 e 25, nº 7 da Const. da Rep. e o
artº 5, nº 5 da Dec. U.Dir. do H. - e como tal é inconstitucional.
d) O termo 'manifestamente' ilegal
40
Por idêntica razão se entende que o nº 1 do artº 225 do C.Pr.P. é
inconstitucional enquanto exclui de responsabilidade do Estado-Juiz as prisões
'ilegais': quando não por forma manisfesta. Certo que tal restrição não é
'concretizadora', mas 'redutora' do núcleo essencial já definido e de aplicação
imediata dos cit. artºs 22 e 25, nº 7 da C. da R.P. e 5, nº 5 da C. Eur. dos
Dir. do H.'
E mais: no artigo 60º das mesmas alegações
expressamente diz que 'entende que ao caso é aplicável o nº 1 do cit. artº 225
do C.Pr.P.'
'Todavia, sem conceder, e caso assim não se entenda - então subsidiariamente o
seu direito à indemnização deverá radicar-se nos cit. artºs 22 e 27, nº 5 da
Const. da Rep. artº 5, nº 5 do C.E. Dir. do H., Dec.L. 4805 e nº 2 do artº 225
do C.Pr.Penal'.
Posições reafirmadas nas conclusões dessas mesmas
alegações como se transcreve, na parte que interessa:
'24
Assim, uma interpretação restritiva do nº 1 do artº 225 não tem fundamento nem
na letra da lei, nem no seu espírito, nem na unidade do sistema, nem seria
razoável (artº 9 do C. Civil): e é desmentida pelo nº 2 do mesmo artigo.
25
Aliás tal interpretação restritiva do nº 1 do cit. artº 225 seria
inconstitucional - por ofender os artºs 22 e 25, nº 7 da C. da R. e artº 5º, nº
5 da D.U.D.H..
26
Por idênticas razões se considerou que o nº 1 do artº 225 do C.P.P. sendo
'redutor', e não simplesmente concretizador dos preceitos citados em 18º - é
inconstitucional, ao exigir que a ilegalidade seja ainda e mais 'manifesta'.
34
Manter uma prisão preventiva, que é uma medida cautelar dum procedimento
criminal e que visa evitar a fuga do arguido ao julgamento ou evitar a
perturbação 'desse' procedimento - quando o crime e o próprio procedimento se
extinguiram: é, obviamente, um mero absurdo lógico, social e jurídico. É um
acto manifestamente ilegal a todas as luzes.
E no entanto estava em causa a lesão concreta dum bem fundamental num Estado
democrático e de direito: como o é a 'liberdade' do cidadão!.
35
Se se entender, e sem conceder, que não é aplicável o nº 1 do cit. artº 225 -
então face ao seu nº 2 o caso configura um 'erro grosseiro' na decisão da
matéria de facto, dos pressupostos de da manutenção da prisão'.
Uma segunda asserção a colher, agora da posição do
recorrente, é a de que ele se posiciona sempre no âmbito da aplicação do nº 1 do
artigo 225º, sustentando insistentemente a ilegalidade manifesta da sua prisão
preventiva, situação que não foi contemplada na decisão do juiz de instância.
8. E, por fim, o Acórdão recorrido ponderou, quanto
àquela posição do recorrente, e fazendo a censura do decidido, o que se segue:
'10. Tal como já se deixou dito atrás, pretende o autor obter do Estado, a
título de danos não patrimoniais, uma indemnização de 5000 contos para si
resultantes da sua alegada manutenção em situação de prisão preventiva ilegal
no período compreendido entre 14 de Novembro de 1989 até 17 de Janeiro de 1990.
E baseia o seu pedido quer no nº 5 do artigo 27º da Constituição da República,
quer no nº 5 do artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, quer nos
artigos 2º e 9º do Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, quer,
finalmente, no disposto no artigo 225º do Código de Processo Penal de 1987.
A invocada situação de prisão preventiva ocorreu já em plena vigência do
Código de Processo Penal de 1987, o qual entrou em vigor em 1 de Janeiro de
1988 - cfr. artigo único da Lei nº 17/87, de 1 de Junho.
Estatui esse preceito - o artigo 225º do Código de Processo Penal:
'1. Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal,
pode requerer perante o tribunal competente indemnização dos danos sofridos com
a privação da liberdade.
2. O disposto no número anterior aplica-se a quem tiver sofrido prisão
preventiva que, não sendo ilegal, venha a revelar-se injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia, se a
privação da liberdade lhe tiver causado prejuízos anómalos e de particular
gravidade. Ressalva-se o caso de o preso ter concorrido, por dolo ou
negligência, para aquele erro.'
O Excelentíssimo Conselheiro Maia Gonçalves no seu Código de Processo Penal
Anotado, 1988, 2ª edição, pág. 278, em anotação a esse preceito e depois de
obtemperar que não havia disposições correspondentes no Código de Processo Penal
de 1929, escreve:
'O disposto neste capítulo sobre indemnização por privação da liberdade ilegal
ou injustificada resulta de convenções a que Portugal aderiu, designadamente
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aprovada pela Lei nº 65/78, de 13
de Outubro, que no artigo 5º, nº 5, dá direito a indemnização a qualquer pessoa
vítima de prisão ou de detenção em condições contrárias às que nesse artigo se
estabelecem e que a nossa lei interna perfilhou. Resulta ainda do disposto no
artigo 2º, nº 2, alínea 38), da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26
de Setembro.'
Representam tais disposições normativas - acrescentamos nós - a concretização na
lei ordinária do princípio da indemnização por danos causados em consequência
da privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei,
consagrado no nº 5 do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa e que
este preceito põe a cargo do Estado.
Debruçando-se sobre este preceito constitucional os Drs. G. Canotilho e
Moreira escreveram em Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição,
1º volume, pág. 202, que o mesmo abrangia, na sua previsão, os casos de prisão
preventiva injustificada ou de prisão ordenada por autoridade judicial sem o
processo devido, o que representava um alargamento da responsabilidade civil
do Estado contemplada no artigo 22º da Lei Fundamental a factos ligados ao
exercício da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao
clássico erro judiciário. E mais: 'O facto de a Constituição remeter para a lei
a regulamentação da indemnização não tolhe a aplicabilidade directa e imediata
deste preceito, devendo os órgãos aplicadores dar-lhe eficácia, mesmo na falta
de lei'. E, finalmente, recomendavam que 'Na parte em que não seja
inconstitucional deverá aplicar-se o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro
de 1967'.
Na esteira deste entendimento, também o acórdão do Tribunal Constitucional nº
90/84, de 30 de Julho de 1984, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 353,
pág. 188, considerava ter a citada norma constitucional 'devolvido para a lei a
definição dos termos em que haverá lugar a indemnização'... não se tendo ainda o
legislador pronunciado ex professo a tal respeito, mas logo sustentando 'que no
nosso ordenamento jurídico existe já lei a que recorrer para o efeito da
regulamentação do direito à indemnização: tratar-se-á das situações em que a
prisão ou a detenção tenham tido como exclusivo fundamento o acto de um órgão
ou agente administrativo, situações às quais será directamente aplicável o
Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, sobre a responsabilidade
extra-contratual do Estado no domínio dos actos de gestão (administrativa)
pública'.
Também no acórdão desta Secção de 9 de Outubro de 1990, no Recurso nº 25 101, se
entendeu que o Decreto-Lei nº 48 051 não abrangia a função jurisdicional, já
que esta não integrava a chamada Administração, e os actos judiciais no âmbito
daquela função jurisdicional não suportam a qualificação de actos de gestão
pública. É assim que o 'dever indemnizatório é apenas aquele que resultar dos
termos em que a lei estabelecer como os dos artigos 690º do Código de Processo
Penal (erro judiciário) e 1085º do Código de Processo Civil (peita, suborno ou
concussão dos magistrados)'.
Neste mesmo sentido, veja-se o acórdão de 31 de Maio de 1990, no Recurso nº 28
139. Contra, isto é, no sentido da qualificação como actos de gestão pública
geradores da responsabilidade do Estado como único centro de imputação dos seus
órgãos, pertencentes estes a qualquer um dos seus poderes, vejam-se os acórdãos
deste Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Março de 1989, no Recurso nº 26
525, e de 14 de Maio de 1991, no Recurso nº 19 273.
Seja como for, e no que concerne especificamente ao decretamento ou manutenção
de uma situação de prisão preventiva em infracção a preceitos de natureza
constitucional ou legal, sejam estas situações imputáveis a órgãos ou agentes
administrativos ou a órgãos jurisdicionais, encontram hoje plena
regulamentação no capítulo V do título II do novo Código de Processo Penal de
1987, cujos preceitos, embora inseridos num diploma de carácter adjectivo,
assumem natureza eminentemente substantiva. E porque assim é não lhes pode ser
aplicável a ressalva contida no nº 2 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 78/87 da
aplicação desse novo Código apenas aos processos crimes instaurados a partir da
sua entrada em vigor (1 de Janeiro de 1988); para além de que a situação de
prisão preventiva que serve de causa de pedir à presente acção se verificou em
toda a sua plenitude já no domínio e vigência desse diploma, como já acima se
deixou dito.
No nº 1 do artigo 225º em análise prevêem-se não só as prisões ou detenções
preventivas manifestamente ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades
administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais, agindo
estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do exercício do seu
múnus ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do cargo, se hajam
determinado à margem dos princípios deontológicos e estatutários que regem o
exercício da função judicial ou impulsionados por motivações com relevância
criminal, v. g. por peita, suborno e concussão.
Já no nº 2 do preceito em apreço se contemplam as situações em que a prisão
tenha cobertura legal quer pela qualidade e autoridade do órgão ou agente que a
decretou quer pelos pressupostos abstractamente vertidos na lei para tal
decretamento. E para que, em tais hipóteses, ocorra o dever de indemnizar põe a
lei as seguintes condições:
- que a prisão preventiva venha a revelar-se injustificada por erro grosseiro na
apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;
- se a privação da liberdade tiver causado no detido ou preso prejuízos
anómalos e de particular gravidade.
No que toca ao primeiro requisito, escreveu o Excelentíssimo Senhor Juiz
Conselheiro Maia Gonçalves, na obra e local citados:
'Os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, por mais zelosos
que puderem ser no cumprimento dos seus deveres estão sempre sujeitos a alguma
margem de erro. Por isso mesmo a lei aqui só leva em conta, para fundamentar a
responsabilidade do Estado e o consequente direito à indemnização, o 'erro
grosseiro', isto é, aquele em que um agente minimamente cuidadoso não
incorreria'.
Sabido pois que a apreciação dos pressupostos de facto de que depende a prisão
preventiva é da competência do juiz do processo, sendo certo que se apresenta
como inquestionável no caso sub judice quer a competência funcional e legal do
magistrado decidente quer o quadro normativo-legal em que se moveu, excluída se
encontra a hipótese da manifesta (no sentido de flagrante, evidente e notória)
ilegalidade do decretamento da prisão preventiva do autor. A conduta do
magistrado em apreço foi, pois, lícita, pelo que é com referência à hipótese
contemplada no nº 2 do citado artigo 225º que a situação sub judice deve ser
equacionada.
Há, pois, que formular a seguinte pergunta: a subsistência da prisão preventiva
do autor no considerado período, compreendido entre 14 de Novembro de 1989 e 17
de Janeiro de 1990, em consequência dos despachos proferidos em 14 de Novembro
de 1989 e 21 de Novembro de 1989 pelo Senhor Juiz do 3º Juízo da comarca de Vila
Nova de Famalicão veio ou não a revelar-se injustificada por erro grosseiro na
apreciação dos respectivos pressupostos de facto?
De realçar que a lei fala em pressupostos de facto e não em pressupostos de
direito; é pois claro que pretendeu afastar a respectiva previsão dos casos em
que haja sido cometido qualquer erro acerca da lei a aplicar ou da
qualificação jurídica dos factos em presença, ou seja, erro de direito em
qualquer das suas modalidades de erro na aplicação, erro na interpretação ou
erro na qualificação. E isto sem dúvida num objectivo de preservar a
independência dos juízes na administração da justiça, os quais apenas se
encontram, no exercício da sua competência funcional, apenas limitados pelo
dever de obediência à Constituição e à lei e pelo respeito aos juízos de valor
legais, não podendo porém ser responsabilizados pelos juízos técnicos emitidos
nas respectivas decisões, ainda que estas possam, em via de recurso, ser
alteradas por tribunais de hierarquia superior - cfr. artigos 205º e 208º da
Constituição da República Portuguesa e 4º e 5º do Estatuto dos Magistrados
Judiciais, aprovado pela Lei nº 21//85, de 30 de Julho. E, tal como se observou
no acórdão do Tribunal Constitucional nº 90/84 supra citado, o facto de uma
decisão do juiz de 1ª instância acabar por ser revogada pelo tribunal superior
nem por isso lhe 'faz perder o carácter de acto judicial lícito, pois que
proferido no uso de uma competência legal... e com respeito pelos princípios
deontológicos que regem o exercício da função de julgar'. E mais: 'os recursos
judiciais visam apenas o controlo material do conteúdo das decisões e não o
controlo 'funcional' da conduta dos juízes...; visam permitir que a questão
contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado para
o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a legitimidade
'funcional' da decisão do tribunal inferior' (sic).
Tem pois de verificar-se um erro de facto acerca dos pressupostos da decisão de
decretamento ou de manutenção da prisão preventiva; isto é, torna-se necessário
que os factos expressamente invocados pelo julgador para fundamentar a sua
decisão não existam ou não correspondam à verdade. Para o Prof. Marcelo
Caetano, in Manual, tomo I, 10ª edição, pág. 492: 'O erro de facto incide sobre
as pessoas, coisas, situações ou circunstâncias a que a vontade se refere,
podendo ser erro na motivação ou erro sobre o objecto'. E para o Prof. Manuel
de Andrade, em Direito Civil - Teoria Geral, volume II, pág. 234, é de facto o
erro que verse sobre qualquer outra circunstância que não a existência ou o
conteúdo duma norma jurídica (interpretação) ou ainda sobre a sua aplicação.
Ora ao decretar a prisão preventiva do recorrente, o Senhor Juiz da comarca
ancorou-se sem dúvida nos requisitos legais contemplados nos artigos 291º do
Código de Processo Penal de 1929 e 209º do Código de Processo Penal de 1987,
aplicáveis ex vi dos artigos 2º e 7º do Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de
Fevereiro. E como a pena máxima abstractamente fixada na lei para o crime de
furto previsto e punido nos artigos 296º e 297º, nºs 1 e 2, alíneas c) e h), do
Código Penal, pelo qual o arguido foi pronunciado, se cifrava em 10 anos de
prisão, teria o mesmo de aguardar, em princípio, na situação de preso preventivo
os ulteriores termos do processo; e dizemos em princípio já que o juiz sempre
poderia, por razões ponderosas, expressamente invocadas, substituir essa prisão
por outra providência cautelar menos gravosa - cfr. artigo 204º do Código de
Processo Penal de 1987. Para o decretamento dessa medida preventiva restritiva
da liberdade não tinha pois o magistrado que aduzir qualquer motivação factual,
bastando-lhe a invocação da subsunção da infracção cometida ao respectivo tipo
legal.
Mas que dizer do despacho que decidiu manter a prisão preventiva do arguido
mesmo depois de este haver depositado a importância indemnizatória arbitrada
ao ofendido e de haver apresentado um requerimento a solicitar a aplicação da
amnistia instituída pela Lei nº 16/86?
Já se disse que o despacho em apreço se estribou no preceituado no artigo 373º
do Código de Processo Penal de 1929, que estatuía: 'O recurso do despacho de
pronúncia suspende o andamento do processo, mantendo-se porém a prisão ou a
caução ordenadas na pronúncia'. Entendeu o Senhor Juiz da comarca que, dado ter
sido interposto pelo Ministério Público recurso do despacho de pronúncia, do
seu eventual provimento poderia resultar que o crime de furto pelo qual o autor
havia sido pronunciado deixasse de ser abrangido pela amnistia instituída pelo
artigo 1º, alínea g), da Lei nº 16/86, visto passar a ser qualificado por uma
outra circunstância qualificativa (a da alínea d) do nº 2 do artigo 297º do
Código Penal). É certo que o Tribunal Superior não veio a entender dessa forma e
acabou por decretar a amnistia pretendida pelo autor, mas a interpretação que o
Senhor Juiz de 1ª instância fez da lei era uma das interpretações possíveis ou
plausíveis da questão suscitada, ambas as instâncias se havendo confinado no
domínio da busca das melhores soluções jurídicas, a agregar mediante a
formulação dos competentes juízos técnico-funcionais.
Daqui se conclui que a situação de prisão preventiva de que ora curamos, para
além de não enfermar de qualquer 'ilegalidade', e muito menos 'manifesta',
resultou antes de uma decisão judicial revestida de total licitude e prolatada
dentro das regras técnico-jurídicas e dos cânones deontológico-funcionais
cabíveis.
E, sem embargo de o tribunal superior não ter vindo a coonestar a respectiva
subsistência, o certo é que esta não veio a revelar-se injustificada por
qualquer erro indesculpável, no sentido de 'escandaloso, crasso ou supino...',
para utilizar a definição que o Prof. Manuel de Andrade dá de 'erro grosseiro' -
o chamado error intolerabilis - in Direito Civil - Teoria Geral, volume II,
pág. 239.
Erro cuja existência competiria, de resto, ao autor demonstrar, face ao disposto
no artigo 342º, nº 1, do Código Civil. E diga-se, a este propósito, que - contra
o que alega o autor nas suas alegações - a não suspensão, a não revogação, a
não substituição ou o não reexame dos pressupostos da sua prisão preventiva nada
tiveram a ver com eventuais perigos de subtracção à acção da justiça ou de
perturbação do procedimento penal: o julgador ateve-se exclusivamente ao
argumento jurídico da pendência de recursos cujos resultados poderiam - na sua
óptica - vir a influir negativamente na pretensão do autor de relaxamento
dessa situação coactiva.
Aliás, e como salienta o Excelentíssimo Conselheiro Maia Gonçalves, in obra
citada, pág. 257, os requisitos ou condições gerais da prisão preventiva
contemplados nos artigos 202º e 204º do Código de Processo Penal de 1987 - como
de resto os seus homólogos do Código de 1929 (artigo 291º e segs §§) - são
alternativos e não de verificação cumulativa obrigatória; basta assim que
exista um deles - v. g. o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do
crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da
tranquilidade públicas para que a medida possa ser decretada.
É claro que pode existir e haverá por certo lugar a 'erro grosseiro' na
ponderação, valoração ou mesmo na selecção dos factos integradores dos
requisitos contemplados nos artigos 202º, 204º e 209º do Código de Processo
Penal de 1987 (cfr. artigo 291º do Código de Processo Penal de 1929) para o
decretamento da prisão preventiva ou dos utilizados para a apreciação -
espontânea ou provocada - dos casos de revogação, alteração ou extinção dessa
medida - cfr. artigos 212º a 218º do primeiro diploma citado. Hipóteses estas a
equacionar de forma casuística e entre as quais se não integra seguramente -
como já se demonstrou - o caso vertente.
***
11. E porque assim se decide precludido e prejudicado (...) o conhecimento da
questão de saber se a privação da liberdade - nos termos em que ocorreu -
causou ou não ao recorrente 'prejuízos anómalos e de particular gravidade' -
segundo requisito prescrito no nº 2 do artigo 225º do Código de Processo Penal
- para que seja concedida ao autor - ora recorrente - a pretendida
indemnização.
***
12. Tendo decidido neste pendor, terá igualmente que subsistir o recorrido
despacho saneador-sentença'.
Uma terceira asserção e que decorre deste acórdão é a
de que nele se acatou o decidido na primeira instância ('Tendo decidido neste
pendor (...) - é o que se lê no aresto), colocando-se a censura nos limites
estritos da decisão e concluindo-se revestir a situação em causa da prisão
preventiva 'de total licitude e prolatada dentro das regras técnico-jurídicas e
dos cânones deontológico-funcionais cabíveis' (tal situação, 'para além de não
enfermar de qualquer 'ilegalidade', e muito menos 'manifesta'' - é o que consta
do acórdão). Daí que no acórdão se passasse e só a dar resposta à 'seguinte
pergunta': 'a subsistência da prisão preventiva do autor no considerado
período, compreendido entre 14 de Novembro de 1989 e 17 de Janeiro de 1990, em
consequência dos despachos proferidos em 14 de Novembro de 1989 e 21 de Novembro
de 1989 pelo Senhor Juiz do 3º Juízo da comarca de Vila Nova de Famalicão veio
ou não a revelar-se injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto?'
Portanto, e talqualmente se viu na decisão de
instância, também o acórdão recorrido, pelo menos aparentemente, se movimentou
no quadro do nº 2 do artigo 225º, partindo da 'total licitude' da situação de
prisão preventiva do recorrente e achando mesmo 'precludido e prejudicado (...)
o conhecimento da questão de saber se a privação da liberdade - nos termos em
que ocorreu - causou ou não ao recorrente 'prejuízos anómalos e de particular
gravidade' - segundo requisito prescrito no nº 2 do artigo 225º do Código de
Processo Penal - para que seja concedida ao autor - ora recorrente - a
pretendida indemnização'.
9. Feito este longo percurso das peças processuais
dos autos que aqui podem interessar, o que se extrai é que o presente recurso
para este Tribunal Constitucional abrigou-se na alínea b), do nº 1 do artigo
70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro ( alínea b) do nº 1 do artigo 280 da
CRP), sendo determinante a busca da 'norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo', o que passa pela delimitação do objecto do
recurso.
Ora, do teor das alegações do recorrente - de todas
elas atrás referenciadas - e do requerimento de interposição do recurso para
este Tribunal Constitucional decorre que ele, nem sempre de modo claro e
límpido, questionou persistentemente a interpretação feita nas instâncias 'do
conteúdo normativo do artigo 225º do Código de Processo Penal e do artigo 27º,
nº 5, da Constituição da República' na perspectiva constante 'de que para
alicerçar o direito peticionado à indemnização é constitucionalmente bastante
que a prisão preventiva tenha sido objectivamente, a se, contra o disposto na
Lei e como já foi julgado pelo douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto'.
Erigindo-se como normas postas em causa pelo
recorrente aqueles artigos 225º e 27º, nº 5, na interpretação que lhes teria
sido dada nas instâncias, é bom de ver que, desde logo e liminarmente, se tem de
afastar a invocação do artigo 27º, nº 5, da CRP, porque não pode preencher o
objecto do presente recurso.
Como diz o Ministério Público, 'a fiscalização da
constitucionalidade de normas a cargo do Tribunal Constitucional só pode ter
por objecto o confronto entre normas infraconstitucionais (ou interpretações
destas normas) e normas constitucionais (...). Assim, não pode ser objecto de
recurso para o Tribunal Constitucional a pretensa interpretação
inconstitucional, feita pela decisão recorrida, de uma norma constitucional,
pois, nesse caso, em direitas contas, a inconstitucionalidade é imputada
directamente à decisão judicial e não a qualquer norma infraconstitucional'.
Fica, portanto, em aberto, unicamente, a norma do
artigo 225º do Código de Processo Penal, mas a arguição feita pelo recorrente,
na tal perspectiva em que se coloca, em todas as peças processuais, só pode
atingir o nº 1 desse artigo.
Sempre o recorrente se dirigiu àquele nº 1 e nunca
suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do mesmo artigo,
conjecturando, aliás, a sua aplicação como mera aplicação subsidiária ('Se se
entender, e sem conceder, que não é aplicável o nº 1 do cit. artº 225 - então
face ao seu nº 2 o caso (...)' - é a linguagem do recorrente).
Ora, sobre o nº 1 do artigo 225º, apesar de ter o
acórdão recorrido assumido claramente o entendimento de que, in casu, a
manutenção da prisão do recorrente não fora ilegal tout court, antes resultara
'de uma decisão judicial revestida de total licitude (...)', centrando toda a
discussão e pronúncia no âmbito de aplicação do nº 2 do mesmo artigo 225º, para
confirmar o decidido na primeira instância, a verdade é que tomou uma posição
acerca daquele nº 1, delimitando-o por via interpretativa de modo negativo. É
quando diz o que se segue: 'No nº 1 do artigo 225º em análise prevêem-se não só
as prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais levadas a cabo por
quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda por magistrados
judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência legal ou fora do
exercício do seu múnus ou, mesmo actuando investidos da autoridade própria do
cargo, se hajam determinado à margem dos princípios deontológicos e
estatutários que regem o exercício da função judicial ou impulsionados por
motivações com relevância criminal, v. g. por peita, suborno e concussão'.
Nesta passagem do acórdão quer-se, no fundo, fazer
aplicação do nº 1 do artigo 225º interpretando-o como reportando-se apenas a
determinadas situações de prisões ou detenções preventivas manifestamente
ilegais quando levadas a cabo por magistrados judiciais, quando, na tese do
recorrente, 'é constitucionalmente bastante para que a prisão preventiva tenha
sido objectivamente, a se, contra o disposto na Lei' ('Isto é: é uma
responsabilidade objectiva e não subjectiva. NÃO interessa a 'valoração' da
'conduta' do agente, a 'responsabilidade' do 'sujeito')'.
10. Se isto é assim, delimitado como ficou o objecto
do recurso, e acolhida a posição do acórdão recorrido, impõe-se que dele se
tenha de conhecer, contra o entendimento perfilhado pelo Ministério Público.
É que, não falta aqui, como entende o Ministério
Público, um pressuposto da admissibilidade do presente recurso de
constitucionalidade, à luz da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº. 28/82,
o de ter efectivamente a decisão recorrida aplicado ou utilizado norma(s)
arguida(s) de inconstitucionalidade pelo recorrente.
Com efeito, e como se viu já, a questão de
inconstitucionalidade suscitada durante o processo pelo recorrente centrou-se
no nº 1 do artigo 225º, e o acórdão recorrido, apesar de suscitar e demonstrar
que, no caso, a prisão não fora, de todo ilegal, também se serviu dessa norma,
interpretando-a, mas sem a desaplicar na perspectiva da inconstitucionalidade
levantada pelo recorrente. Pois que, defendendo este que não há que 'estabelecer
diversas 'modalidades' de prisão contra o disposto na lei', o acórdão recorrido
arredou tal entendimento, estabelecendo, pelo contrário, um quadro restrito de
hipóteses, cabíveis naquele nº 1 do artigo 225º, e daí partiu para com tal
interpretação, fazer aplicação da norma. Quando é entendimento do recorrente
'que qualquer disposição legal ou qualquer interpretação que vá contra ou
restrinja a norma ou princípio exornantes dos cits. arts. 27, nº 5 e 5, nº 5
são inconstitucionais'.
Assim, tendo chegado a decisão recorrida a fazer
interpretação e aplicação, na perspectiva delimitadora em que se colocou,
daquele nº 1 do artigo 225º, arguido de inconstitucionalidade - e só ele- pelo
recorrente, o recurso interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º
da Lei nº 28/ /82, tem de ser admitido e, por consequência, dele se tem de tomar
conhecimento, improcedendo a questão prévia levantada pelo Ministério Público.
11. Havendo, assim, que conhecer do mérito do
recurso, importa considerar desde logo a delimitação do seu objecto, e marcar o
confronto com a norma ou princípio ou as normas ou princípios da Constituição.
De acordo com a delimitação já feita - e nada mais se
pode adiantar -, o preceito questionado é o nº 1 do artigo 225º do Código de
Processo Penal, que dispõe:
'Quem tiver sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal pode
requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos com a
privação da liberdade'.
A marcação do confronto passa pela consideração do
afastamento do artigo 5º, nº 5, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem
('Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às
disposições deste artigo tem direito a indemnização' - é o seu texto), que o
recorrente invoca, pois, como regista o Ministério Público, nada aditando aquela
Convenção ao que já consta da Constituição, no seu artigo 27º, não interessa
apreciar, no recurso de constitucionalidade, como é este, a eventual
desconformidade entre norma de direito interno - aquele º 1 do artigo 225º - e
a aludida Convenção.
Diga-se, em todo o caso, que a alínea c) do nº 1 do
mesmo artigo 5º da Convenção consente que qualquer pessoa seja presa ou detida
'a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver
suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos
razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se
pôr em fuga depois de a ter cometido', o que cobre claramente as situações de
prisão preventiva, em termos, aliás, menos rigorosos que os consagrados nos
artigos 27º, nº 3, alínea c), e 28º da nossa Constituição, pelo que, neste
ponto, não é possível ofender aquela Convenção sem simultaneamente ofender a
Constituição da República Portuguesa.
Por outro lado, o nº 5 do artigo 27º desta Lei
Fundamental garante indemnização por privação por liberdade contra o disposto
'na lei', e, para este efeito, a aludida Convenção cabe neste conceito de
'lei' (neste sentido, cfr. Ireneu Cabral Barreto, 'Nota sobre o Direito à
Liberdade e à Segurança', na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 2,
fascículo 3, págs. 443 e seguintes, em especial pág. 473).
E a mesma marcação passa ainda pela consideração do
afastamento do artigo 22º da Constituição, que, conjugando-se com o artigo 271º,
consagra o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes
públicos, ponto em que o Ministério Público, nas suas alegações, se afadiga em
demonstrar que o âmbito normativo-material daquele artigo 22º 'não abrange a
responsabilidade por actos lícitos da função jurisdicional' e não é, por isso,
com base nele que 'há que apreciar a constitucionalidade da norma questionada'.
É que, contrariamente ao trajecto seguido pelo
Ministério Público, com judiciosas considerações, não é caso de chamar à colação
a norma do artigo 22º da Constituição, desde logo porque o recorrente não o faz
no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade nem nas
conclusões das suas alegações, sendo meramente pontual e episódica no texto das
mesmas alegações a referência àquela norma e ao regime constante do Decreto-Lei
nº 48051, de 21 de Novembro de 1967.
Depois porque, mesmo na óptica do artigo 79º-C, da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pelo artigo 2º da Lei nº 85/89, de 7 de
Setembro, nunca seria caso de aferir a violação de tal norma pelo questionado
nº 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal, pois se aí se consagra, em
geral, o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entes
públicos, 'por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e
por causa desse exercício', também no artigo 27º, nº 5, da Constituição, se
consagra de igual modo o mesmo princípio da responsabilidade civil do Estado,
mas por actos de 'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na
lei' (como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira, aí se 'consagra expressamente
o princípio da indemnização de danos nos casos de privação inconstitucional ou
ilegal da liberdade (ex.: prisão preventiva injustificada, prisão ordenada por
autoridade judicial sem o 'processo devido'), o que representa o alargamento da
responsabilidade civil do Estado (cfr. art. 22º) a factos ligados ao exercício
da função jurisdicional, não se limitando esta responsabilidade ao clássico erro
judiciário (cfr. art. 29º-6)' - Constituição anotada, 3ª ed., pág. 187).
No quadro do mesmo instituto jurídico da
responsabilidade civil do Estado, o artigo 22º regula essa responsabilidade,
em geral, e o artigo 27º, nº 5, regula-a para a situação específica de
'privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei'.Daí que, de
forma mais linear, se possa afirmar, como faz o Ministério Público, que não é
com base naquele artigo 22º que 'há que apreciar a constitucionalidade da
norma questionada', na medida, em que a hipótese sub judicio se localiza no
plano de uma 'privação da liberdade', sofrida pelo recorrente.
12. Feita, assim, a redução da controvérsia presente
ao confronto entre o nº 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal e o nº 5 do
artigo 27º da Constituição, é bem de ver desde logo que este Tribunal
Constitucional já se debruçou sobre esta norma constitucional.
E fê-lo nos termos que se seguem, quando ainda não
era conhecido, nem estava em vigor aquele nº 1 do artigo 225º:
'Simplesmente, ainda que em último termo deva entender-se que o princípio da
responsabilidade do Estado consignado no artigo 27º, nº 5, não pode
efectivar-se, no tocante a actos jurisdicionais, enquanto não estiver
legislativamente concretizado, não deixa esse princípio de incorporar o
reconhecimento de um verdadeiro direito das pessoas prejudicadas por uma prisão
inconstitucional ou ilegal. Ou seja: nesse preceito constitucional não se
assina apenas uma tarefa ao legislador (uma 'incumbência legislativa'); antes
simultaneamente se reconhece um 'direito fundamental', a cuja efectivação essa
incumbência se preordena.
Que é assim, resulta logo do teor do preceito - no qual se impõe ao Estado um
'dever', cujo natural correlato será certamente um 'direito'; e resulta, bem
assim, da sua função ou finalidade normativa específica - pois que está aí em
causa, manifestamente, não o reconhecimento de um qualquer objectivo interesse
público, mas a tutela de um interesse subjectivado em determinadas pessoas:
naquelas que foram concretamente atingidas por uma actuação do Estado que lesou,
afinal, o seu 'direito à liberdade'. Mas que no artigo 27º, nº 5, da
Constituição, se reconhece já um 'direito' dos cidadãos é corroborado ainda
pela própria inserção sistemático-normativa do preceito no catálogo dos direitos
fundamentais - isto é, naquela parte da lei fundamental funcionalmente votada à
definição de 'posições jurídicas subjectivas' (à definição das 'estruturas
constitucionais subjectivas', como também se diz), a qual nessa insuprível
'dimensão subjectiva' tem a sua marca característica, e a razão da sua
especificidade no quadro global da Constituição (cf. sobre o ponto, Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, especialmente pp. 84 e segs).
Significa isto que - continuando a pressupor a inviabilidade da concretização do
princípio do artigo 27º, nº 5, sem uma prévia intervenção legislativa - essa
inviabilidade decorre, não da inexistência de um direito, e sim apenas da falta
de uma condição da sua exequibilidade; temos já, pois, um direito, só que, não
exequível, enquanto a lei não definir 'os termos' do seu exercício. Ora essa
circunstância assume um decisivo relevo no respeitante à utilidade do
prosseguimento do presente recurso' (acórdão nº 90/84, in Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 4º vol. 1984, págs. 278/279).
Noutro passo, a propósito da situação de 'uma
privação 'inconstitucional' da liberdade', que terá sido 'produzida por um acto
judicial (por acto de um juiz)', pode ler-se no mesmo acórdão:
'(...)não perderá tal despacho (o acto de um juiz) o carácter de um acto
judicial lícito - pois que proferido no uso de uma competência legal (...) e com
respeito pelos princípios deontológicos que regem o exercício da função
judicial (o que não está posto em causa). É que os recursos judiciais visam
apenas o controlo 'material' do conteúdo das decisões, e não o controlo
'funcional' da conduta dos juízes. Ou seja: visam permitir que a questão
contenciosa seja reapreciada por outro tribunal, suposto melhor qualificado ou
habilitado para o seu julgamento, mas sem que tal reapreciação afecte a
legitimidade 'funcional' da decisão do tribunal inferior (observadas que tenham
sido as exigências deontológicas antes referidas): este tribunal, tal como o
tribunal de recurso, não deixou de exercer a função que constitucionalmente lhe
cabe de 'administrar a justiça' (artigo 205º) com plena e integral
'independência' (artigo 208º), isto é, a função de dizer o direito (tanto que,
não fora o recurso, e a sua definição do direito do caso teria adquirido
carácter definitivo). A revogação da decisão do tribunal inferior apenas
significa que o tribunal de recurso emitiu sobre o facto ou sobre o direito um
juízo diverso do daquele (...), e que este segundo juízo vai prevalecer,
obviamente, sobre o primeiro' (mas, sendo assim - acrescenta-se ainda no
acórdão - 'o que teremos é a exigência ao Estado de uma indemnização por danos
causados pelo acto de um juiz agindo licitamente em tal veste - ou seja, por um
acto lícito do poder público, enquanto 'poder' ou 'função' judicial' - loc. cit,
págs 274/275).
Por seu turno, quanto ao regime de indemnização por
privação da liberdade fixado inovatoriamente no Código de Processo Penal vigente
- o regime ainda não conhecido na data em que foi proferido o citado acórdão nº
90/84 -, João Castro de Sousa ('Os Meios de Coacção no Novo Código de Processo
Penal' Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Processual Penal -
O Novo Código de Processo Penal) escreveu:
'...No Capítulo V do mesmo Título regula o Código a indemnização por privação
da liberdade, distinguindo os pressupostos do respectivo arbitramento
consoante esta seja ilegal ou injustificada.
O nº 1 do art. 225º respeita à reparação devida quando a privação da liberdade
tiver sido manifestamente ilegal, dando assim cumprimento à injunção constante
do nº 5 do art. 27º da Constituição e ao disposto no nº 5 do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 e no nº 5 do art. 5º da
Convenção Europeia.
Por sua vez, o nº 2 do mesmo art. 225º estabelece que a reparação a arbitrar é
extensiva aos casos de prisão preventiva formalmente legal mas que se vem a
revelar injustificada por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto
de que dependia. Todavia, em tal caso, a indemnização só será arbitrada caso a
privação da liberdade tiver causado ao detido prejuízos anómalos e de
particular gravidade, consa-grando-se assim uma solução análoga à contida no
art. 9º do Dec.-Lei nº 48051, de 21 de Novembro de 1967, relativamente à
responsabilidade do Estado pela prática de actos legais ou lícitos'.
E, no Parecer nº 12/92, do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, de 30 de Março de 1992 (cuja doutrina foi
tornada obrigatória para todos os Magistrados e Agentes do Ministério Público
através da Circular nº 5/92 da Procuradoria-Geral da República), concluiu-se:
'1ª A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui
o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer
(artigo 27º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa);
2ª Os cidadãos que hajam sofrido detenção ou prisão preventiva manifestamente
ilegal têm direito a exigir do Estado indemnização pelos danos decorrentes dessa
privação da liberdade (artigo 225º, nº 1, do Código de Processo Penal);
3ª Os cidadãos que hajam sofrido prisão preventiva legal que se venha a revelar
supervenientemente injustificada por erro grosseiro na apreciação dos
respectivos pressupostos de facto para que não hajam concorrido com dolo ou
negligência, têm direito a indemnização pelo Estado se da privação da liberdade
lhes advieram prejuízos anómalos e de particular gravidade (artigo 225º, nº 2,
do Código de Processo Penal);
4ª As causas que não sejam atribuídas por lei a jurisdição especial são da
competência dos tribunais comuns (artigos 66º do Código de Processo Civil e
14º da Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro);
5ª Inscreve-se na competência do contencioso administrativo o conhecimento das
acções de indemnização intentadas pelos particulares contra o Estado por danos
decorrentes de actos de gestão pública (alínea b) do § 1º do artigo 815º do
Código Administrativo);
6ª Concretamente, compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer das
acções referidas na conclusão anterior (artigo 51º, nº 1, alínea b), do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei nº
129/84, de 27 de Abril);
7ª O Estado realiza a actividade que lhe é própria no quadro das distintas
funções política ou governamental, legislativa, jurisdicional e administrativa;
8ª O conceito 'actos de gestão pública' a que se referem a alínea b) do § 1º do
artigo 815º do Código Administrativo e a alínea h) do nº 1 do artigo 51º do
Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, reporta-se à actividade
administrativa stricto sensu do Estado, portanto não incluindo os actos que
integram a função jurisdicional;
9ª O conhecimento das acções relativas à indemnização dos danos decorrentes do
exercício da função jurisdicional e parajurisdicional a que se reportam as
conclusões 2ª e 3ª não compete, pois, aos tribunais administrativos;
10ª Compete aos tribunais comuns de jurisdição cível conhecer das acções de
indemnização intentadas contra o Estado por danos decorrentes da prisão
preventiva ou detenção ilegais ou da prisão preventiva injustificada'.
Procedendo à análise do artigo 225º do Código de
Processo Penal, e após transcrevê-lo, afirmou-se nesse Parecer.
'É manifesto o que é evidente, inequívoco ou claro, isto é, o que não deixa
dúvidas.
Será prisão ou detenção manifestamente ilegal aquela cujo vício sobressai com
evidência, em termos objectivos, da análise da situação fáctico-jurídica em
causa, como é o caso da prisão preventiva com fundamento na indiciação da
prática de um crime a que corresponda pena de prisão de máximo inferior a três
anos, e da detenção com base na indiciação de uma infracção criminal apenas
punível com pena de multa.
Trata-se da responsabilidade civil do Estado tendente à reparação dos prejuízos
derivados de erros judiciários, configurando-se em termos de responsabilidade
por actos lícitos.
Contraponto da referida obrigação de indemnizar por parte do Estado é o direito
subjectivo dos cidadãos directamente lesados com a privação da liberdade ao
ressarcimento.
O prejuízo reparável abrange, à míngua de distinção pela lei e de inexistência
de motivação razoável para que o intérprete a ela proceda, a partir do tempo
da prisão preventiva ilegal, os danos patrimoniais - emergentes e os lucros
cessantes -, e os morais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito,
necessariamente resultantes da privação da liberdade.
O nº 1 contém normação de amplitude e conteúdo diverso do nº 2, pois ali
prevê-se a privação de liberdade em razão de detenção ou de prisão preventiva, e
aqui só em virtude da prisão preventiva.
Os pressupostos de indemnização a que alude o nº 1 consubstanciam-se na privação
da liberdade manifestamente ilegal, na existência de prejuízo reparável e de um
nexo de causalidade adequada entre este e aquela.
A obrigação de indemnização - e o correspondente direito - a que se reporta o
nº 2 deste artigo depende, porém, da verificação dos seguintes elementos:
- prisão preventiva injustificada;
- motivação na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos com erro
grosseiro;
- não ocorrência para aquele erro do visado por dolo ou negligência;
- verificação de prejuízos anómalos e de particular gravidade;
- existência de nexo de casualidade adequada entre o dano reparável e a prisão
preventiva.
No nº 2 prevê-se o caso da prisão preventiva haver sido legal, mas
posteriormente se haver revelado total ou parcialmente injustificada por erro
grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos fácticos.
O erro é o desconhecimento ou a falsa representação da realidade fáctica ou
jurídica envolvente de uma determinada situação.
O erro grosseiro é o erro indesculpável, crasso ou palmar em que se cai por
falta de conhecimento ou de diligência.
Tendo em consideração que a responsabilidade civil do Estado em apreço deriva
de actos lícitos no exercício da actividade jurisdicional, nem todos os
prejuízos derivados da prisão preventiva injustificada são reparáveis, mas só
os anómalos e de particular gravidade.
A exigência, como pressuposto do direito ao ressarcimento, da anomalia e
especial gravidade do prejuízo, aponta no sentido de que só são reparáveis os
prejuízos excepcionalmente graves.
Ademais, com a limitação por via negativa do direito à indemnização no caso do
arguido haver concorrido de modo censurável do ponto de vista ético-jurídico
para o erro de apreciação dos pressupostos fácticos de cominação da prisão
preventiva, faz-se apelo à sua acção ou omissão intencional ou culposa no quadro
do esclarecimento dos factos relevantes para o efeito'.
13. A partir destes dados, tudo está em saber se a
aplicação do nº 1 do artigo 225º que é feita no acórdão recorrido, com a
interpretação nele seguida de que aí se abrangem 'não só as prisões ou detenções
preventivas manifestamente ilegais levadas a cabo por quaisquer entidades
administrativas ou policiais, como ainda por magistrados judiciais',
tipificando-se as condições em que estes podem agir ilegalmente, contraria o nº
5 do artigo 27º da Constituição, quando este se reporta à 'privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei'.
E parece que não.
Como também ficou dito no citado acórdão nº 90/84,
trata-se aqui de 'situações em que a Constituição deixa deliberada e
intencionalmente dependente do legislador - dito de outro modo: em que remete
para o legislador - a efectivação de um certo princípio, ou do direito por este
reconhecido. Trata-se de princípios relativamente aos quais, atentas as suas
implicações e a complexidade da sua concretização, o legislador
constitucional entende impor-se uma nova ponderação normativa - complementar da
que ele próprio fez, mas da qual não quis tirar (ou permitir que se tirassem)
logo todas as possíveis consequências. Ou seja: trata-se de hipóteses em que,
pelo facto de a concreta conformação do princípio exigir a consideração de
diferentes tópicos ou pontos de vista e uma delicada ponderação de soluções e
resultados, a Constituição comete a respectiva incumbência ao órgão
primariamente vocacionado e legitimado para a tarefa política de reelaborar e
desenvolver a ordem jurídica. O que significa que, ao fazê-lo, o legislador
constitucional não apenas atribui ao legislador ordinário um específico
encargo, mas, verdadeiramente, lho reserva' - loc. cit., pág. 277.
O legislador, portanto, cumpriu a directiva
constitucional no nº 1 do artigo 225º, prevendo aí os casos de 'detenção ou
prisão preventiva manifestamente ilegal' e distinguindo no nº 2 os casos em que
ela não é ilegal. Não lhe estava vedado pelo legislador constitucional seguir
esse caminho, pois o nº 5 do artigo 27º limita-se a prever a 'privação da
liberdade contra o disposto na Constituição e na lei', derivando, no plano da
responsabilidade civil, o dever de indemnizar por parte do Estado de actuações
lícitas ou ilícitas dos órgãos intervenientes nessa privação da liberdade.
'O artigo 225º do novo Código de Processo Penal interpreta correctamente o
sentido da norma constitucional ao estender o dever de indemnização aos casos
de prisão preventiva que, não sendo ilegais, se revelaram injustificados por
erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia e se da
privação da liberdade resultaram prejuízos anómalos e de particular gravidade.
Haverá, pois, aqui uma responsabilidade directa do Estado por actos da função
jurisdicional, por lesão grave do direito de liberdade' - é o entendimento de
Gomes Canotilho e Vital Moreira, loc. cit., pág. 188.
De igual modo, não se vê como possa considerar-se
violadora da norma constitucional a interpretação que, na tese já acolhida,
teria sido seguida no acórdão recorrido, para se fazer aplicação do nº 1 do
artigo 225º, pois, reportando-se este preceito apenas a determinadas situações
de prisões ou detenções preventivas manifestamente ilegais quando levadas a
cabo por magistrados judiciais, está-se ainda no âmbito normativo constitucional
do nº 5 do artigo 27º.
Mesmo na óptica do recorrente de que 'é
constitucionalmente bastante para que a prisão preventiva tenha sido
objectivamente, a se, contra o disposto na lei', ou seja, é bastante 'uma
responsabilidade objectiva e não subjectiva', a tipificação das hipóteses de
'detenção ou prisão preventiva manifestamente ilegal', quando se trata de actos
de magistrados judiciais, como é feito no acórdão recorrido, assim se dando uma
interpretação ao nº 1 do artigo 225º, não briga com a norma constitucional do
nº 5 do artigo 27º. Aqui não se veda ao interprete uma tal tipificação, para
alcançar o que é, no plano da privação da liberdade ilegal, atentar 'contra o
disposto na Constituição e na lei': 'não só as prisões ou detenções (...)
levadas a cabo por quaisquer entidades administrativas ou policiais, como ainda
por magistrados judiciais, agindo estes desprovidos da necessária competência
legal ou fora do exercício do seu múnus ou, mesmo actuando investidos da
autoridade própria do cargo, se hajam determinado à margem dos princípios
deontológicos e estatutários que regem o exercício da função judicial ou
impulsionados por motivações com relevância criminal, v. g. por peita,
suborno e concussão'.
Daí que tenha o Supremo Tribunal Administrativo
afirmado expressamente a legalidade da manutenção da prisão preventiva do
recorrente, movendo-se então no campo de aplicação o nº 2 do artigo 225º do
Código de Processo Penal, por não caber a hipótese sub judicio nos tipos de
conduta de privação da liberdade ilegal, à luz da interpretação feita do nº 1 do
mesmo artigo 225º.
Com o que a 'interpretação e aplicação que as
instâncias fizeram da norma do nº 1 do artigo 225º do Código de Processo Penal
de 1987 em nada colidiu com o disposto no artigo 27º, nº 5, da Constituição',
como também conclui o Ministério Público nas suas alegações.
14. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao
recurso.
Lisboa, 15 de Março de 1995
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida