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Proc. nº 117/94
1ª Secção
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Tribunal Cível da Comarca do Porto, em processo litigioso de
expropriação urgente, sendo expropriante A., e expropriada B., fixou em Esc:
29.184.OOO$00 o montante da indemnização pela expropriação de uma parcela de
terreno com a área de 3.184 m2 e pela desvalorização da parte sobrante. A
sentença acolheu, assim, o parecer dos peritos do tribunal segundo o qual, esta
parte, agora convertida em zona non aedificandi, sofreu uma desvalorização de
30%, a que correspondia o valor de Esc: 10.080.000$00, valor que haveria de
integrar aquela indemnização global.
Desta sentença recorreu a A. para o Tribunal da Relação do Porto.
Afirmou então que 'a pretensa desvalorização da parte sobrante', decorrendo de
servidão non aedificandi, imposta directamente por lei, não seria indemnizável
e que, por isso, a sentença recorrida violava o artigo 3º, nº 2, do Código das
Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro.
A Relação do Porto, em acórdão de 1 de Julho de 1993, julgou
inconstitucional aquela norma, do artigo 3º, nº 2, do Código das Expropriações
de 1976, por violação dos artigos 13º e 62º, nº 2, da Constituição da República.
Recusou assim a sua aplicação ao caso e confirmou a decisão recorrida.
O Ministério Público interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 280º, nºs 1, alínea a) e 2 da Constituição
da República e dos artigos 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Alegou o Sr. Procurador Geral-Adjunto neste Tribunal, que se
pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da norma impugnada. Alegaram
também a entidade expropriante e a entidade expropriada.
II - As normas e a fundamentação
A questão de constitucionalidade, relativa à norma do artigo 3º, nº
2, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de
Dezembro, que determina que 'as servidões derivadas directamente da lei não dão
direito a indemnização, salvo quando a própria lei determinar o contrário', foi
já analisada pelo Tribunal Constitucional. No acórdão nº 262/93, D.R., II Série,
de 21-7-93, afirmou-se, nomeadamente:
' A resposta, no caso, à pergunta por uma indemnização constitucionalmente
exigível derivando da constituição de uma servidão non aedificandi há-de ter-se
na perspectiva em que essa servidão emerge de um processo (mais amplo) de
expropriação. É nesse pressuposto que se procede à abordagem teórica
subsequente.
No caso de constituição de servidão non aedificandi, como o que é
referido à norma do artigo 3º, nº2, não se configura uma expropriação em
sentido clássico, isto é, uma 'expropriação translativa do direito de
propriedade do solo do particular para a Administração'. Está antes em causa
uma expropriação que 'sacrifica o jus aedificandi do proprietário do solo por
motivos de interesse geral'. ['Sobre as intervenções da Administração Pública
no jus aedificandi que merecem o qualificativo de expropriações', cf. Alves
Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, págs.
381-382; cf., também, José de Oliveira Ascensão, Expropriações e Nacionalização,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pág. 45: '(...) Momento da transferência da
propriedade - se o houver.
Porque pode a expropriação dirigir-se apenas a uma extinção de direitos
privados, ou a uma oneração de direitos privados (...)'].
Mas ainda que a imposição de uma servidão non aedificandi se não
reconheça no conceito de expropriação, sempre terá que justificar-se à luz do
princípio do Estado de direito democrático (C.R.P., artigo 2º) e da
responsabilidade do Estado por actos lesivos dos direitos dos particulares, que
ali vai implicada. A servidão non aedificandi, na medida em que traduz uma
diminuição efectiva do valor do prédio serviente, constitui uma intromissão
onerosa do Estado na esfera jurídico‑patrimonial do respectivo titular. E
aferir da legitimidade dessa medida é também convocar os princípios da
igualdade, da proporcionalidade e da justa indemnização. (C.R.P., artigos 13º,
nº1, e 62º, nº2).
2. A ideia de que a aptidão de edificabilidade dos terrenos
(expropriados) é um valor susceptível de indemnização foi afirmada pelo Tribunal
Constitucional ao julgar a constitucionalidade das normas do artigo 30º, nºs 1 e
2, do Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro. Este Tribunal considerou que
essas normas, consagrando critérios restritivos de determinação do montante da
indemnização - dos quais se excluía a aptidão de edificabilidade dos terrenos
expropriados como factor de fixação valorativa - determinavam para os cidadãos
seus titulares uma oneração acrescida e injustificada, assim contrariando os
princípios da igualdade e da justa indemnização, constitucionalmente consagrados
(cf, entre outros, os acórdãos nºs 341/86, 109/88, 381/89 e 420/89,
publicados, respectivamente, nos D.R., IIª série, nºs 65, de 19.3.87; 202, de
1.9.88; 207, de 8.9.89; e 213, de 15.9.89 - e ainda os acórdãos que declaram a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral daquelas normas, nºs 131/88 e
52/90, publicados, respectivamente, nos D.R., Iª série, nºs. 148, de 29.6.88, e
75, de 30.3.90.).
No acórdão nº 341/86 (cit.) ponderou-se, a propósito do jus
aedificandi: '(...) mesmo naqueles casos em que a Administração impõe aos
particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem objecto do vínculo, lhes
diminuem, contudo, a utilitas rei, se deverá configurar o direito a uma
indemnização, ao menos quando verificados certos pressupostos (...) o 'jus
aedificandi deverá ser considerado como um dos factores de fixação valorativa,
ao menos naquelas situações em que os respectivos bens envolvam uma muito
próxima ou efectiva potencialidade edificativa (no mesmo sentido, cf. o acórdão
nº 131/88, cit.).
Também no acórdão nº 184/92 (D.R., II Série, nº 216, de 18 de
Setembro de 1992) que julgou inconstitucional a norma do artigo 9º, nº1, do
Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro, por violação dos artigos 13º e 62,
nº2, da Constituição, se sublinhou, entre o mais: 'o artigo 9º (...) não permite
que, na determinação do valor dos bens expropriados, se atenda à sua aptidão
para neles se vir a construir. (...) Tal norma contém, pois, um critério
restritivo, já que nem sempre permite que a expropriação por utilidade pública
se faça mediante o pagamento de justa indemnização'.
3. O problema põe-se agora fora daqueles quadros em que a 'aptidão
de edificabilidade' constitui um dos valores a ter em conta na determinação do
montante da indemnização, isto é, fora dos quadros de translação da propriedade
do solo. No caso concreto, o que está em causa é o sacrifício do valor de
edificabilidade com a manutenção da titularidade do solo pelo particular
onerado.
Ora, o problema da diminuição do valor patrimonial da parcela não
expropriada, que vai implicado na obrigação de não edificar justifica, do mesmo
modo, a aplicação ao caso dos princípios constitucionais da igualdade, da
proporcionalidade e da justa indemnização (C.R.P., artigos 13º e 62º, nº2).
E para a questão não releva a opção por uma ou outra das diferentes
doutrinas que vêem no jus aedificandi ou 'uma componente essencial do direito de
propriedade do solo' ou 'uma faculdade atribuída pelo plano urbanístico' (cf.
Alves Correia, ob. cit., págs. 348-383). É que, como afirma Gomes Canotilho, 'o
círculo dos interesses protegidos indemnizatoriamente relevantes não pode
circunscrever-se à hipótese de direitos subjectivos, antes há que alargá-lo a
outras situações subjectivas, menos perfeitas e menos juridicamente protegidas
que os verdadeiros direitos subjectivos, mas, de qualquer modo, com consistência
jurídica suficiente para, no caso de compressão grave, poderem justificar, a
favor do seu titular, uma protecção ressarcitória'. (O Problema da
Responsabilidade do Estado por Actos Lícitos, Coimbra, 1974, págs.296-297.).
A propósito da responsabilidade do Estado nos casos de sacrifício do
jus aedificandi, acrescenta o mesmo autor: 'os deveres inderrogáveis de
solidariedade política, económica e social não podem justificar a exclusão da
indemnização no caso de medidas substancialmente expropriatórias que, não
operando embora um efeito translativo do domínio, originam uma penetrante
incidência no Kerngehalt [núcleo de conteúdo] dum bem constitucionalmente
garantido'. (O Problema... cit., pág. 300).
Com referência ao concreto problema da indemnização, nos casos de
imposição de uma servidão non aedificandi resultante de expropriação, afirmou-se
no acórdão nº 184/92, cit.: 'a diminuição das utilidades da coisa por virtude da
imposição de certos vínculos administrativos (maxime de uma servidão non
aedificandi) é susceptível de fazer nascer uma obrigação de indemnizar. Por
isso, resultando a servidão non aedificandi do acto expropriativo, tem ela que
ser levada em conta na determinação do montante a pagar, a título de
indemnização.'
Neste quadro da expropriação, nenhuma solução legislativa está,
pois, constitucionalmente legitimada a inviabilizar a ponderação da intensidade
ablatória das ingerências estaduais e da consistência das posições jurídicas que
reclamam uma indemnização.
Os princípios da autonomia, da igualdade e da proporcionalidade vêm
delimitar, neste plano, o espaço de prognose do legislador.
À imposição de um vínculo de inedificabilidade imposto no interesse
público a um particular, em consequência de um processo de expropriação parcial,
sobre a parcela sobrante do terreno expropriado, não pode a lei ligar a exclusão
necessária e automática de uma indemnização.
Do mesmo modo que na expropriação clássica, configura-se aí um 'acto
de império' (O. Ascensão), incidente sobre uma posição de valor económico
juridicamente relevante.
A justa indemnização vem precisamente realizar a 'descompressão' da
esfera jurídico-patrimonial do particular onerado, transmudando o resultado do
acto lesivo numa situação equivalente à que corresponderia a uma ausência da
interferência estadual. Isso traduz uma exigência dos princípios
constitucionais do Estado de direito (responsabilidade por actos lesivos dos
direitos dos particulares) e da igualdade (o dano não pode implicar um acréscimo
desigual e injustificado de contribuição dos cidadãos onerados para os encargos
públicos).'
E, densificando depois o conceito de justa indemnização, o Tribunal
Constitucional concluiu assim:
'(...) a norma do artigo 3º, nº2, do Código das Expropriações (Decreto-Lei nº
845/76, de 11 de Dezembro) afronta os princípios constitucionais da igualdade,
da proporcionalidade e da justa indemnização. Retira aos cidadãos onerados com
a servidão non aedificandi, em resultado da expropriação, o direito de serem
ressarcidos pela diminuição efectiva do valor da parcela sobrante do terreno
expropriado, fazendo com que os mesmos contribuam por forma injustificada e
acrescida para a realização do interesse público.
No mesmo sentido, e em situações idênticas, haveriam de decidir
também os acórdãos nºs 594/93, D.R., II Série de 29-4-94, 329/94, D.R., II
Série, de 30-8-94 e acórdãos nºs 405/94 e 438/94, ainda inéditos.
E é essa jurisprudência que aqui se reitera.
III - Decisão
Nestes termos, decide-se julgar inconstitucional a norma do artigo
3º, nº 2, do Código das Expropriações (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de
Dezembro), na medida em que não consente a indemnização do prejuízo resultante
da imposição de uma servidão non aedificandi sobre parcela sobrante de terreno
expropriado, por violação dos artigos 13º e 62º, nº 2, da Constituição,
confirmando-se a decisão recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 4 de Abril de 1995
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Luís Nunes de Almeida