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Processo n.º 813/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B. e C., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 28 de setembro de 2011.
2. No requerimento de interposição de recurso, com relevo para o que importa apreciar e decidir, lê-se o seguinte:
«IV. Inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada:
A interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas nos artigos 30º, 77º, 217º, 218º e 256º, n.º 1 do CP, este último na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29º, n.º 5 da CRP».
3. Pela Decisão Sumária n.º 645/2011, decidiu-se negar provimento ao recurso, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, “pelo facto de a questão que vem suscitada nos autos ter sido já objeto de jurisprudencial constitucional anterior”, com a seguinte fundamentação:
«3.1. Impõe-se uma primeira clarificação sobre o objeto do presente recurso. Como se sabe, o mesmo é delimitado pelo recorrente no requerimento de interposição. Neste requerimento, o Recorrente especificou expressamente a inconstitucionalidade que pretende ver apreciada, enunciando-a pela seguinte forma: “interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas no artigo 30º, 77º, 217º, 218º e 256º, n.º 1 do CP, este último na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29º, n.º 5 da CRP.”
A questão que assim se apresenta não é nova. Com efeito, o Tribunal Constitucional teve já oportunidade de apreciar, em duas ocasiões, a questão da eventual inconstitucionalidade de interpretação judicial que conclua que, em determinado caso concreto, a conduta do agente preenche as previsões de falsificação de documentos de burla, no sentido de se verificar uma situação de concurso real de crimes. Em ambas as ocasiões, pronunciou-se o Tribunal no sentido da não inconstitucionalidade das interpretações que então se apresentaram a escrutínio. Trata-se dos acórdãos n.ºs 303/2005 e 375/2005, publicados no Diário da República, II série, de 5 de agosto de 2005 e de 21 de setembro de 2005.
3.2. A Lei n.º 29/2007, de 4 de setembro, modificou o tipo de crime de falsificação ou contrafação de documento, acrescentando, na parte final do n.º 1, do artigo 256.º do CP, a expressão “preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”, dispondo agora aquela norma o seguinte: “Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime (…)”. A relevância autónoma desta alteração sob a perspetiva da fiscalização da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas apenas se poderia perspetivar caso o objeto do recurso integrasse a problemática atinente à aplicação da lei processual penal no tempo. No entanto, como se começou por explicitar, o recurso prende-se apenas com a interpretação das normas relevantes no sentido de se ter verificado, in casu, uma situação de concurso real de crimes. É a este aspeto, portanto, que nos devemos ater, relevando, portanto, aquela alteração legislativa apenas na perspetiva da interpretação que à mesma foi atribuída pela decisão a quo. Entendeu o tribunal recorrido que a mesma aponta no sentido da punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime (cfr. fls. 167).
4. A questão que agora se oferece traduz-se, assim, em saber se uma interpretação judicial de tipos legais de crime – no caso, dos crimes de burla e de falsificação de documento – que conclua pela existência de concurso real de crimes e, portanto, pela punição autónoma dos mesmos, viola o princípio ne bis in idem, constante do artigo 29.º, n.º 5 da Constituição.
Em situações deste tipo, importa realçar, como salientou o Acórdão n.º 375/2005, já citado, que não compete ao Tribunal Constitucional determinar, com independência da questão de conformidade constitucional que tem para decidir, quais são exatamente os bens jurídicos tutelados pelos vários tipos legais de crime, ou se existe uma situação de concurso de crimes. Estes dados constam do juízo judicial proferido pelo tribunal a quo o qual se apresenta ao Tribunal Constitucional como um dado de onde este parte para a tarefa de controlo da constitucionalidade.
O que a Relação entendeu foi que se verificava uma situação de concurso real uma vez que o legislador terá pretendido a punição autónoma do crime de falsificação quando cometido como instrumental de outro crime. Assim, o argumento jurídico da instrumentalidade, invocado pelo Recorrente, sairia prejudicado, “num claro reforço da tutela do bem jurídico tutelado pelo crime de falsificação [dando assim letra de lei àquele que era já o entendimento uniformizado da jurisprudência]” (cfr. fls. 167-168).
Ora bem, a este propósito, escreveu-se o seguinte no Acórdão n.º 375/2005, cuja fundamentação é inteiramente transponível para a situação que se oferece nos autos: (…)
Pelo que, face a estes fundamentos, resta negar provimento ao recurso».
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando os seguintes argumentos:
«1. A Decisão Sumária, proferida ex vi artigo 78.º-A, n.º 1 da LTC, negou provimento ao recurso interposto pelo recorrente por “a questão que vem suscitada nos autos ter sido já objeto de jurisprudência constitucional anterior, entendendo-se que a mesma é de manter”,
2. Mais consignando que: “A relevância autónoma desta alteração sob a perspetiva da fiscalização da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas apenas se poderia perspetivar caso o objeto do recurso integrasse a problemática atinente à aplicação da lei processual penal no tempo. No entanto, como se começou por explicitar, o recurso prende-se apenas com a interpretação das normas relevantes (...)”. Ora,
2. Do teor do requerimento de interposição de recurso impetrado pelo recorrente resulta que o objeto do recurso se prende com a inconstitucionalidade e ilegalidade da interpretação conferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a diversos preceitos legais contidos no CP (ponto III do recurso citado na douta Decisão Sumária), designadamente:
- a violação dos artigos 2º, n.º 1 e 2 e 256º, n.º 1 do CP e do artigo 29.º, n.º 4 da norma normarum (violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido) e
- violação dos artigos 30º, 77º, 217º, 218º e 256º do CP e do artigo 29.º, n.º 5 da Lei Fundamental (violação das regras do concurso real na condenação pela prática do crime de burla e do crime de falsificação de documento). Posto isto, e em primeiro lugar, cumpre desde logo suscitar a seguinte questão:
3. Aquando da preparação da presente Reclamação, na página 5 da douta Decisão Sumária proferida e aludida, foi o reclamante confrontado com o seguinte trecho: “A relevância autónoma desta alteração sob a perspetiva da fiscalização da constitucionalidade de normas ou interpretações normativas apenas se poderia perspetivar caso o objeto do recurso integrasse a problemática atinente à aplicação da lei processual penal no tempo.” Ora,
4. No modesto entender do recorrente, a natureza das questões suscitadas é inequivocamente subjetiva, pelo que não se descortina a que se refere a decisão quando alude “à aplicação da lei processual penal no tempo”.
5. Nesta confluência, é manifesto que a decisão sumária padece de obscuridade que importa esclarecer, a fim de salvaguardar o direito do recorrente a ver a decisão sob escrutínio apreciada através de competente Reclamação para a Conferência. Sem embargo,
6. Postulando que o que se pretendia referir era a questão da aplicação de Lei Penal no tempo, dir-se-á o seguinte: o reclamante suscitou cabalmente, salvo o devido respeito, a questão da (in)constitucionalidade na vertente da violação dos artigos 2º, n.º 1 e 2 e 256º, n.º 1 do CP e do artigo 29.º, n.º 4 da norma normarum (violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido) no primeiro travessão do Ponto III do seu recurso. No entanto,
7. Por manifesto lapso pois que suscitou a questão, do qual desde já se penitencia, não reproduziu tal problemática no ponto IV, o qual não passa de um resumo das questões anteriormente suscitadas. Nesta confluência,
8. Entende, salvo o devido respeito, que foi cabalmente suscitada a aludida inconstitucionalidade, pelo que deveria ter sido ordenada a notificação do reclamante para apresentar as suas alegações. Sem embargo,
9. Caso assim se não entenda, o que apenas por mera cautela de raciocínio se concebe, deveria ter sido ordenada a sua notificação, nos termos do disposto no artigo 76º, n.º 5 da LTC, para suprir a aludida deficiência».
4. Notificados os recorridos, respondeu apenas o Ministério Público, o que fez nos seguintes termos:
«1º
Pela Decisão Sumária 645/11, de 29 de novembro (cfr. fls. 809-816 dos autos), o Ilustre Conselheiro Relator entendeu negar provimento ao recurso oportunamente interposto (cfr. fls. 777-785, 792-796 dos autos), para este Tribunal Constitucional, pelo recorrente, A. , do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de setembro de 2011 (cfr. fls. 750-771 dos autos).
(…)
4º
Considerou, desde logo, na Decisão Sumária 645/11, ora reclamada, o Ilustre Conselheiro Relator, que o recorrente delimitou, no requerimento de interposição de recurso, o respetivo objeto (cfr. fls. 812 dos autos).
E tal objeto encontra-se, na verdade, inequivocamente definido pelo próprio recorrente (cfr. fls 783-784, 795 verso dos autos), nos seguintes termos:
“IV. Inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada:
A interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas no artigo 30º, 77º, 217º, 218º e 256º, nº 1 do CP, este último na redação dada pela Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente na prática de ambos os ilícitos em concurso real, é manifestamente inconstitucional por violadora do disposto no artigo 29º, nº 5 da CRP”.
5º
Ora, relativamente a esta questão de inconstitucionalidade, o Ilustre Conselheiro relator salientou, muito justamente, haver jurisprudência anterior deste Tribunal Constitucional, no sentido da sua não inconstitucionalidade (cfr. fls. 812 dos autos) (destaques do signatário):
(…)
7º
Ora, quanto a esta questão de inconstitucionalidade, ainda segundo o Ilustre Conselheiro Relator, o Acórdão 375/2005, deste Tribunal Constitucional, havia sido claro, ao considerar (cfr. fls. 814 dos autos) (destaques do signatário):
(…)
8º
Na sua reclamação para a conferência, o arguido não deixa, aliás, de reconhecer (cfr. fls. 823-824 dos autos) (destaques do signatário):
“6. Postulando que o que se pretendia referir era a questão da aplicação da Lei Penal no tempo, dir-se-á o seguinte: o reclamante suscitou cabalmente, salvo o devido respeito, a questão da (in)constitucionalidade na vertente da violação dos artigos 2º, nº 1 e 2 e 256º, nº 1 do CP e do artigo 29º, nº 4 da norma normarum (violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido), no primeiro travessão do Ponto III do seu recurso. No entanto,
7. Por manifesto lapso pois que suscitou a questão, do qual desde já se penitencia, não reproduziu tal problemática no ponto IV, o qual não passa de um resumo das questões anteriormente suscitadas.
8. Entende, salvo o devido respeito, que foi cabalmente suscitada a aludida inconstitucionalidade, pelo que deveria ter sido ordenada a notificação do reclamante para apresentar as suas alegações. Sem embargo,
9. Caso assim se não entenda, o que apenas por mera cautela de raciocínio se concebe, deveria ter sido ordenada a sua notificação, nos termos do disposto no artigo 76º, nº 5 da LTC, para suprir a aludida deficiência.”
9º
Crê-se, porém, que não assiste razão ao recorrente.
Com efeito, este Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido que a fixação do objeto do recurso é - para o bem e para o mal - feita através do respetivo requerimento.
Como referido, por exemplo, no Acórdão 460/11:
(…)
10º
Assim, o eventual lapso do recorrente, de que ele, aliás, se penitencia, acaba por determinar o irremediável destino da presente reclamação para a conferência.
Com efeito, a Decisão Sumária 645/11, ora reclamada, não deixou de, devidamente, apreciar a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente, no seu requerimento de interposição de recurso, nada havendo, por isso, a indicar em seu desabono.
Se essa não era, afinal, a questão que o requerente quereria suscitar, sibi imputet!
11º
Por todo o exposto, crê-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 645/11, que determinou a sua apresentação.»
5. Já depois de ter sido proferida a decisão sob reclamação, os presentes autos foram redistribuídos em virtude de o relator primitivo ter cessado funções neste Tribunal.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O reclamante sustenta que a decisão sumária padece de obscuridade, na medida em que “não se descortina a que se refere a decisão quando alude «à aplicação da lei processual no tempo»”.
Decorre dos artigos 669.º, n.º 1, alínea a), e 716.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 69.º da LTC que, proferida decisão, o recorrente pode pedir o esclarecimento de alguma obscuridade que a mesma contenha. Entendendo-se que a decisão judicial é obscura quando, em algum passo, o seu sentido seja ininteligível.
Da passagem da decisão sumária onde se insere aquela expressão resulta, de forma clara, face ao objeto do recurso interposto, que a alteração legislativa ocorrida em 2007 não tem relevância autónoma nos presentes autos, uma vez que o recurso tem a ver “apenas com a interpretação das normas relevantes no sentido de se ter verificado, in casu, uma situação de concurso real de crimes”. O que, verdadeiramente, é ininteligível é a seguinte afirmação do reclamante: “a natureza das questões suscitadas é inequivocamente subjetiva, pelo que não se descortina a que se refere a decisão quando alude «à aplicação da lei processual no tempo»” (itálico aditado).
Em suma, não há que aclarar a Decisão Sumária n.º 645/2011.
2. A presente reclamação tem a ver exclusivamente com a delimitação do objeto do recurso de constitucionalidade interposto. O reclamante entende que neste também se integra «a questão da (in)constitucionalidade na vertente da violação dos artigos 2.º, n.º 1 e 2 e 256.º, n.º 1 do CP e do artigo 29.º, n.º 4 da norma normarum (violação do princípio da aplicação da lei mais favorável ao arguido)». Entende que suscitou cabalmente tal questão no «primeiro travessão do Ponto III do seu recurso», tendo sido por mero lapso que não reproduziu tal problemática no ponto IV [IV. Inconstitucionalidade que se pretende ver apreciada:].
Do n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC decorre que o recorrente tem o ónus de indicar a norma cuja inconstitucionalidade pretende no requerimento de interposição de recurso, a peça processual que define o respetivo objeto (cf., entre muitos outros, os Acórdãos dos Tribunal Constitucional n.ºs 286/2000 e 293/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Ora, nesta peça processual, no ponto que dedicou à definição do objeto do recurso, o recorrente indicou apenas a interpretação conferida pelo Tribunal a quo às normas contidas nos artigos 30.º, 77.º, 217.º, 218.º e 256.º, n.º 1 do CP, este último na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, no sentido de entre o crime de burla e de falsificação de documentos existir pluralidade de resolução criminosa, incorrendo o agente na prática de ambos os ilícitos em concurso real. O que obsta ao convite a que se referem os n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, por não se poder concluir, de todo, pela falta de um dos elementos previstos neste artigo. O recorrente indicou, de facto, a norma cuja apreciação pretendia.
Acresce que quer no primeiro travessão do Ponto III do recurso quer na presente reclamação não é enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada aos artigos 2.º, n.ºs 1 e 2, e 256.º, n.º 1, do Código Penal, limitando-se o então recorrente, ora reclamante, a sustentar a violação destes artigos a par do artigo 29.º, n.º 4, da Constituição.
Importa, pois, concluir pelo indeferimento da reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir o requerido.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.