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Proc. nº 600/96
1ª Secção
Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A ..., arguido em processo crime, veio deduzir reclamação nos termos do nº 4 do art. 76º da Lei do Tribunal Constitucional contra o despacho do Desembargador relator no Tribunal da Relação de Lisboa que lhe não admitiu um recurso de constitucionalidade oportunamente interposto.
Fundamentou a reclamação nos seguintes termos:
- Em 17 de Abril de 1996, o reclamante requereu ao Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa 'a declaração de nulidade de duas buscas', bem como a alteração da medida de coacção que lhe fora imposta, mas os seus pedidos foram indeferidos;
- Desta decisão foi interposto recurso para a Relação de Lisboa, o qual subiu imediatamente e em separado. Este Tribunal não conheceu do mérito das nulidades deduzidas, por ter considerado terem as mesmas sido arguidas fora do prazo previsto no art. 120º, nºs. 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Penal, por uma delas, a ter ocorrido, estar sanada pela confirmação feita pelo arguido de que havia dado autorização para a busca domiciliária e, por último, porque o recurso versando tal matéria só poderia subir com o que eventualmente fosse interposto da decisão final. Por outro lado e quanto à medida de coacção prisão preventiva considerou que o despacho havia transitado em julgado, circunstância que inibiria a reapreciação do mesmo, 'a excepção da consideração que aqui o caso julgado está sujeito à regra «rebus sic stantibus» em virtude da natureza excepcional e subsidiária da medida coactiva em questão';
- O reclamante apresentou requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade quanto a diferentes normas (arts. 120º, nºs. 2 e 3, alínea a), 121º, nº 1, alíneas b) e c), 407º, nº 3, 4º do Código de Processo Penal e
672º do Código de Processo Civil, nas interpretações dos mesmos acolhidos no acórdão da segunda instância). Nesse requerimento indicara que o recurso era interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional e frisara 'que dado o modo como o Tribunal da Relação se pronunciou era imprevisível estabelecer um juizo de prognose que facultasse ao recorrente a hipótese de atempadamente ter suscitado nas instâncias a inconstitucionalidade das normas, com que, objectivamente, não contava fossem aplicadas';
- Esse entendimento não foi sufragado no despacho reclamado, considerando o relator que cabia ao recorrente precaver-se e questionar desde logo as eventuais inconstitucionalidades das normas susceptíveis de serem aplicadas ao caso, mas o reclamante considera 'extremamente difícil adivinhar quais as normas aplicadas quando as mesmas não fazem parte da sequência comum de um recurso e são aplicadas quando está esgotado o poder jurisdicional, a que acresce que dada a complexidade dos normativos da C.P.P. a esta matéria atinentes, seria exigir um esforço sobre humano de cada recorrente em imaginar quais as normas que pudessem ser aplicadas ou mesmo tivessem susceptibilidade para tal';
- Segundo o entendimento da jurisprudência do Tribunal Constitucional, deve ser admitido o recurso em casos como o presente, 'desde que a sequência processual tenha sido de modo a não facultar ao recorrente a impugnação constitucional das normas impugnadas' (fls. 1 a 5).
2. Através de acórdão proferido em 19 de Julho de 1996, a conferência manteve o despacho reclamado.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, tendo os mesmos sido distribuídos em férias, dada a situação de prisão preventiva do reclamante.
Teve vista dos autos o representante do Ministério Público, o qual exarou parecer em que preconiza a improcedência da reclamação (a fls. 26 vº a 27 vº).
Foram corridos os vistos legais.
4. Cumpre, assim, conhecer da presente reclamação.
II
5. Da certidão junta aos autos constam as diferentes peças processuais apresentadas pelo ora reclamante e as decisões judiciais que sobre elas recaíram.
Assim, no requerimento apresentado em 17 de Abril de 1996, o reclamante arguiu a nulidade de duas buscas realizadas, uma delas realizada na residência dele, considerando que, num caso, não existia qualquer mandado de busca nem autorização dada pelo arguido e, no outro, a busca não havia sido imediatamente comunicada nem validada pelo Juiz de Instrução. Teria havido violação dos nºs. 1 e 2 do art. 177º do Código de Processo Penal. Por outro lado, pediu a cessação da prisão preventiva, por considerar essa medida coactiva excessiva na sua situação, invocando o nº 3 do art. 122º do mesmo código.
Através de despacho de 30 de Abril de 1996, foram indeferidas as arguições de nulidade e foi denegado o termo da situação de prisão preventiva. Quanto à busca realizada num bar-cervejaria onde o arguido trabalhava como empregado, ponderou-se que o proprietário do estabelecimento estivera presente durante a busca, não se tendo a ela oposto. Quanto à busca realizada na residência do arguido, fora esta autorizada por ele e foi confirmada a autorização de forma expressa no interrogatório subsequente. Quanto ao pedido de alteração de medida coactiva, considerou-se que não havia razões para alterar a ponderação anteriormente feita e que conduzia ao decretamento da prisão preventiva.
Na motivação do recurso interposto deste despacho para a Relação de Lisboa, apresentada em 14 de Maio de 1996, o arguido suscitou preventivamente uma questão de inconstitucionalidade quanto à norma do nº 5 do art. 174º do Código de Processo Penal nos seguintes termos:
' Considerando o teor do auto de notícia, na parte em que refere que o recorrente estava referenciado como traficante, tudo indica que a acção desenvolvida, o foi, porquanto o recorrente se revelava suspeito às autoridades.
Assim sendo como se prescreve no artgº 251 nº 1 do C.P.P., a Polícia pode proceder a buscas no local em que os suspeitos se encontrarem, sendo porém aplicável o disposto no nº 2 da mesma norma, ou seja, a aplicação do regime do artgº 174 nº 5 do C.P.P. - comunicação imediata da busca e validação pelo Senhor Juiz de Instrução sob pena de nulidade.
Outra interpretação da norma do artgº 174 nº 5 do C.P.P. leva-nos à arguição da inconstitucionalidade da mesma se se considerasse que é legal uma busca em que se deva dar conhecimento ao disposto no artgº 174 nº 5 que não seja apreciado pelo Senhor Juiz de Instrução logo que lhe seja presente o expediente por violação do disposto no artgº 32 nº 1 da C.R.P.'.
E relativamente ao nº 2 do art. 174º do Código de Processo Penal, admitindo-se a sua aplicação hipotética à busca realizada no local de trabalho do arguido, suscitou-se a inconstitucionalidade da interpretação da mesma 'no sentido de que a prova decorrente de uma busca efectuada em local reservado é valida sem autorização judicial, por violação do artgº 32 nº 1 e nº 6 da C.R.P.'
Estas arguições de inconstitucionalidade constam das conclusões 4ª e
10ª da motivação.
Através do acórdão de 26 de Junho de 1996, a Relação de Lisboa não tomou conhecimento do recurso relativamente à parte do despacho que incidiu sobre a nulidade das buscas uma vez que, 'não se estando no campo de aplicação do art. 126º CPP (proibição de provas) ou do art. 119º CPP (nulidades insanáveis), aquelas nulidades dependem da arguição que deveria ocorrer em momento oportuno e não passados quase 2 meses sobre o 1º interrogatório do arguido, acto em que foi assistido por advogado - art. 120º, nº 2 e 3-a) - CPP'. As invocadas nulidades tinham assim ficado cobertas pelo despacho judicial que validara a detenção, despacho transitado em julgado. Quanto à substituição da medida coactiva aplicada por outra menos gravosa, o acórdão rejeitou-a, julgando improcedente o recurso. A decisão que ordenara que o arguido aguardasse o julgamento na situação de prisão preventiva transitou em julgado, dispondo de eficácia de caso julgado formal. Ainda que tal caso julgado formal não seja imutável, tendo eficácia temporalmente limitada 'rebus sic stantibus', por força do princípio de prensunção de inocência do arguido e do carácter sempre subsidiário e excepcional daquela medida coactiva, a Relação de Lisboa considerou que o arguido não invocara, nem provara, qualquer 'alteração atenuativa dos pressupostos e circunstâncias que motivaram a sua prisão preventiva'.
6. O ora reclamante pretendeu interpor recurso de constitucionalidade deste acórdão, indicando como objecto as seguintes normas:
'- a do artgº 120 nº 2 e 3 alínea A do CPP se interpretados no sentido de que a arguição de nulidade de busca tem de ser feita antes de o acto estar terminado por violação do disposto no artgº 32 nº 1 e 32 nº 6 da C.R.P..
- a do artgº 121 nº 1 alíneas B e C do CPP se interpretados no sentido de que a confirmação por parte de um arguido de um auto de notícia e a sua autorização para a realização de uma busca domiciliária, origina a impossibilidade de suscitação do disposto no artgº 32 nº 1 e 32 nº 6 da C.R.P..
- a do artgº 407 nº 3 do C.P.P. se interpretado no sentido que um recurso versando a nulidade de busca e nulidade de busca domiciliária deve subir a final com o que eventualmente vier a ser interposto da decisão final, por violação do disposto no artgº 28 nº 2, 32 nº 1 e 32 nº 6 da C.R.P..
- a do artgº 4 do C.P.P. e artgº 672 do C.P.C. se interpretados no sentido de que em Processo Penal a decisão que impõe a Prisão Preventiva transita em julgado, postulando a força de caso julgado formal, por violação do disposto no artgº 32 nº 1 da C.R.P.'.
Invocou que não havida suscitado as questões de inconstitucionalidade dessas normas antes de proferido o acórdão de que pretendia recorrer mas que a sequência processual não fora 'de molde a facultar ao recorrente oportunidade efectiva de levantar a questão, por se terem aplicado normas que não foram equacionadas em nenhuma das instâncias e como tal estranhas ao próprio recurso mas que inviabilizam o mesmo', de tal forma que se justificaria, nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional (acórdão nº 569/95), a admissibilidade do recurso.
7. O relator não admitiu o recurso por entender que o recorrente deveria ter previsto a aplicabilidade das normas sobre prazos de arguição de nulidades visto que o processo é 'na sua forma mais simplista uma sequência de actos ordenados, lógica e cronologicamente, com vista à obtenção da justa decisão da causa - seu escopo último; será bom de ver que os actos processuais só terão utilidade se praticados no momento oportuno - v. g. a arguição de nulidades'. Acrescia que a interpretação perfilhada das normas aplicadas pelo acórdão recorrido não era de tal modo 'absurda, extravagante ou ambígua' ou contrária às 'regras de hermenêutica jurídica' que pudesse ter surpreendido o arguido, de forma a abrir-lhe a via do recurso de constitucionalidade.
8. Desde já se afirma que a reclamação apresentada não merece deferimento.
O art. 280º da Constituição, ao regular a fiscalização concreta de constitucionalidade, indica como uma das espécies de recursos possíveis os interpostos 'das decisões dos tribunais... que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' (nº 1, alínea b)). Os recursos de constitucionalidade devem, assim, ser interpostos da decisão que haja julgado improcedentes certas questões de constitucionalidade suscitadas perante esses tribunais. A mesma solução consta, como é óbvio, do art. 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional veio, porém, a reconhecer que havia situações excepcionais em que se justificava a dispensa do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido.
O acórdão nº 94/88, dando-se conta do já decidido nos acórdãos nºs.
90/85 e 136/85, reafirmou a ressalva de 'alguma hipótese de todo excepcional «e certamente anómala», em que o interessado «não disponha de oportunidade processual para levantar a questão [de inconstitucionalidade] antes de proferida a decisão»' ( in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º vol., págs.
1095-1096). Teve-se, no fundo, em conta situações em que houve de acautelar a posição do recorrente que não teve qualquer possibilidade, de acordo com as regras ordenadoras do iter processual em causa (ou então porque tais regras foram grosseiramente violadas), de suscitar a questão de inconstitucionalidade antes da decisão do tribunal recorrido. Nesse acórdão, ampliou-se tal ressalva, por identidade de razões, a situações em que, no decurso do processo e após o momento processual adequado, sobreveio uma alteração legislativa imediatamente aplicável aos processos pendentes, não sendo já possível ao interessado suscitar a questão de inconstitucionalidade. No acórdão nº 479/89, por outro lado, afirmou-se que não podia 'deixar de recair sobre as partes em juizo o ónus de considerarem as várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretendem socorrer, e de adoptarem, em face delas, as necessárias cautelas processuais (por outras palavras, o ónus de definirem e conduzirem uma estratégia processual adequada)'. E acrescentou-se ainda que 'a simples
«surpresa» com a interpretação dada judicialmente a certa norma não será de molde (ao menos, certamente, em princípio) a configurar uma dessas situações excepcionais (...) em que será justificado dispensar os interessados da exigência da invocação «prévia» da inconstitucionalidade perante o tribunal a quo' (in Acórdãos, 14º vol., pág. 149).
Esta jurisprudência tem sido repetida em inúmeras ocasiões, sem discrepâncias.
Ora, na reclamação sub judicio, é manifesto que o reclamante tinha o
ónus de ter suscitado perante o Tribunal da Relação a questão de constitucionalidade de parte das normas que deveriam constituir objecto do recurso, atinentes ao regime de arguição de nulidade de buscas e que só vieram a ser indicadas no requerimento de interposição do recurso. De facto, quanto às normas dos arts. 120º, nºs. 2 e 3, alínea a), e 121º, nº 1, alínea b) e c), do Código de Processo Penal, era de prever, como afirma o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, 'a aplicação ao caso «sub judicio» do regime de sanação de nulidades... face à matéria que constava dos autos', não se percebendo como podia o arguido deixar de considerar a possibilidade de se entender que, não se tratando de matéria prevista nas proibições de prova ou de nulidades insanáveis, havia prazos para suscitar tais nulidades não podendo a arguição ocorrer
'passados quase 2 meses sobre o 1º interrogatório do arguido, acto em que foi assistido por advogado'.
Relativamente às normas dos arts. 407º, nº 3, do Código de Processo Penal, 4º deste mesmo diploma e 672º do Código de Processo Civil há-de concluir-se que as mesmas não foram aplicadas como rationes decidendi do acórdão recorrido. Mas ainda que o tivessem sido, de novo o arguido tinha o ónus de prever a sua aplicação ao caso sub judicio.
Quanto à primeira daquelas normas, sobre o regime de subida do recurso, não foi ela aplicada pela decisão de segunda instância. Foi invocada como obiter dictum, para reforçar a ideia de que a questão não poderia em qualquer caso ser resolvida nesse momento temporal, se as arguições de nulidade tivessem sido tempestivas. Seja como for, a norma em si é relativamente neutra, já que o regime de subida diferida dos recursos se retira a contrario sensu dos nºs. 1 e
2 do mesmo art. 407º. Mas o reclamante, se entendesse que o regime de subida referido quanto a certo recurso era inconstitucional, devia ter prevenido a eventualidade de aplicação desse regime face ao disposto nos nºs. 1 e 2 do art.
407º, suscitando a questão perante o Tribunal da Relação.
Quanto às duas últimas normas, é evidente que o Tribunal da Relação não as aplicou na dimensão apontada pelo reclamante, na medida em que, da leitura do acórdão em causa, resulta que o Tribunal da Relação admite a modificabilidade da decisão de imposição de uma medida de coacção se ocorrer alteração de circunstâncias (o caso julgado seria 'rebus sic stantibus'). Ora, como refere o representante do Ministério Público, na decisão de segunda instância alude-se a que 'o decidido acerca da prisão preventiva do arguido constitui caso julgado
«rebus sic stantibus», susceptível de ser reapreciado sempre que ocorram alterações nas circunstâncias relevantes para ajuizar da situação prisional do arguido (em termos, proventura, análogos aos que estão estabelecidos para a jurisdição voluntária, no art. 1411º do CPC)'.
9. Há, assim, que concluir que quanto às duas primeiras normas impugnadas, não é possível deferir a reclamação por a questão da sua inconstitucionalidade não ter sido suscitada durante o processo, tendo o reclamante o ónus de prever a sua aplicação na motivação do recurso por ele interposto. Quanto às três últimas normas, não foram as mesmas aplicadas, nas dimensões indicadas, pela decisão da Relação.
Não se verificam, assim, os pressupostos processuais para abrir a via de recurso da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
III
10. Termos em que o Tribunal Constitucional indefere a presente reclamação, pelas razões expostas.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em unidades de conta.
Lisboa, 5 de Novembro de 1996
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Antero Alves Monteiro Diniz
Vitor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa