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Proc. nº 270/94 ACÓRDÃO Nº 345/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal do Trabalho de Almada, A propôs acção sumária, emergente de contrato individual de trabalho, contra B, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 974.998$00, e juros de mora legais, importância respeitante a salários, férias e subsídios de férias e de Natal, vencidos e não pagos.
Alegou para tanto haver celebrado com o Réu um contrato para lhe prestar serviços como jogador profissional de futebol, válido por um ano a contar do dia 1 de Agosto de 1989, sendo que deixou aquele de lhe pagar os salários devidos a partir do mês de Março de 1990.
O Réu veio contestar a acção, aduzindo que o contrato de trabalho invocado pelo Autor como fundamento do pedido, por não se encontrar registado na Federação Portuguesa de Futebol, não dispõe de qualquer validade legal.
Por sentença de 15 de Julho de 1992, foi julgada a acção parcialmente provada e procedente, condenando-se o Réu a pagar ao Autor a quantia de 175.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, devidos desde a sua citação e até integral pagamento.
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2 - Inconformado com o assim decidido, levou o Autor recurso ao Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 2 de Março de 1994, alterou a sentença recorrida aumentando a condenação a favor do Autor para o montante de
1.030.000$00, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados a partir dos respectivos vencimentos.
Suportou-se na seguinte fundamentação:
'Esquematizados, assim os factos provados, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações do recorrente, a questão a decidir é a de saber se o artº 11º do DL 413/87 está ou não em vigor, e, em caso afirmativo, se o mesmo está ou não ferido de inconstitucionalidade quando se pretenda a sua aplicação ao foro laboral.
Tais questões encontram-se hoje largamente debatidas na doutrina e na jurisprudência, tendo nós aderido à posição defendida no Acórdão desta Relação de 27 de Outubro de 1993, proferido no processo nº 8.712 da 4ª Secção, em que foi A. Rudolfo Sérgio Rodriguez Rodriguez e R. Sporting Clube de Portugal, e em que, embora se aceite a vigência de tal preceito legal, entende-se que o seu
âmbito de aplicação está restrito ao domínio da fiscalidade, sob pena de inconstitucionalidade formal e material se se entender aplicável ao foro laboral.
Com efeito, e como bem se salienta no douto parecer do Digno Magistrado do Ministério Público junto desta Relação, ...`O artº 11º do D.L. nº 413/87, de 31 de Dezembro, não tem aplicação, não pode ser invocado, no juízo laboral.
De contrário, a pretender-se a sua aplicação às relações de trabalho, então o mesmo estaria ferido de inconstitucionalidade formal e material.
Por um lado, porque, visando a alteração da legislação de trabalho - consequências de um não registo de um contrato de trabalho, implicando a nulidade deste -, não se mostra cumprido o que dispõe o artº 54º nº 5 alínea d) da C.R.P.. Por outro lado, sendo matéria relativa a direitos e garantias (dos trabalhadores) da competência da Assembleia da República, salvo ocorrendo autorização ao Governo - artº 168º da referida Constituição da R. Portuguesa - o Governo não obteve autorização legislativa para tal, salvo para legislar sobre matéria fiscal - e não laboral, repita-se -, conforme expressamente se refere no D.L. nº 413/87 e artº 63º da Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro'.
Assim, sendo inconstitucional o mencionado preceito, o contrato de trabalho entre A. e B' e constante de fls. 5 dos autos, embora não registados na Federação Portuguesa de Futebol, pode ser invocado em juízo, pois de outro modo, sempre que à entidade contratante não agradassem os resultados de um jogador, socorrer-se-ia do outro contrato declarado e para si muitíssimo menos oneroso, para através dessa via conseguir o fim pretendido - o despedimento do atleta - sem ter de suportar mais encargos até final do termo do contrato, porquanto estes tipos de contrato, na generalidade dos casos, cingiam-se apenas aos montantes aproximados do ordenado mínimo nacional'.
Para além disso, e na esteira do Acórdão acima referido, entende-se que o artº 11º do D.L. 413/87 está ferido também de várias inconstitucionalidades materiais.
Com efeito, viola o princípio da `igualdade', consagrado no artº 13º do C.R.Portuguesa, ao impedir que se invoque em juízo o contrato real, quando é à entidade patronal que incumbe o seu registo na Federação Portuguesa de Futebol
(Base III, nº 1, da P.R.T. para os futebolistas profissionais publicado no B.M.T. nº 26 de 15 de Julho/75, e alínea a) da Comunicação Oficial da F.P.Futebol de 27 de Fevereiro de 1978); viola também os princípios constitucionais do `livre acesso dos cidadãos ao direito e aos Tribunais', consagrados nos artºs 18º, 19º e 20º da C.R. Portuguesa, na medida em que impede os praticantes desportivos de fazerem valer em juízo as cláusulas dos contratos realmente queridos por ambas as partes, pois, embora formalmente tal direito se encontre assegurado, não o está materialmente, na medida em que obriga o Juíz a aplicar as cláusulas do contrato simulado e não as do contrato real; viola ainda o princípio constitucional da `segurança no emprego', consagrado no artº 53º da C.R.Portuguesa, pois, como se salienta no Ac do S.T.J. de 20 de Janeiro de
1993, publicado em C.J., Ac. do S.T.J., Ano I, Tomo I, 1993, em caso de litígio, a invocação do contrato fica dependente do registo, que, como já acima se disse, é repete-se, efectuada pela entidade patronal.
Há pois que concluir, como aliás se refere no douto parecer do Digno Magistrado do Ministério Público junto desta Relação, que o artº 11º do D.L.
413/87, de 31 de Dezembro, não tem aplicação no foro laboral.
Dir-se-à, finalmente, que não pode aceitar-se o decidido no Ac. do S.T.J. acima referido, em que se decidiu dever `suspender-se a instância' até que o futebolista prove em juízo a inscrição na F.P. de Futebol do contrato real, com o fundamento de que tal artº 11º funciona como pressuposto da instância, de natureza fiscal, como sucede com os artºs 37º do C.P.Trabalho e 282º do C.P.Civil.
É que a suspensão da instância só pode ter como fundamento a possibilidade do registo das cláusulas do contrato real com o consequente sanear do vício cominado por tal normativo.
Ora, como aí se determina a inexistência de tais cláusulas, tal vício revela-se insanável e, como tal, deixa de existir o fundamento que determinava a suspensão da instância.
Dir-se-á, por último, que a retribuição do trabalhador só poderá ser diminuida, para além do mais, com o seu consentimento, o que não é o caso dos autos (cfr. alínea c) do nº 1 do artº 21º do R.J.C.I.T aprovado pelo D.L. nº
49.408).'
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3 - Em conformidade com o disposto nos artigos 280º da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72, nºs 1, alínea a) e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, trouxe o Ministério Público, daquele acórdão, recurso obrigatório ao Tribunal Constitucional.
Nas alegações depois oferecidas, o senhor Procurador-Geral Adjunto deixou o seguinte quadro de conclusões:
'1º - O artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, de 31 de Dezembro, não pode, sob pena de inconstitucionalidade formal, ser interpretado como implicando a criação de um inovador requisito de validade ou eficácia dos contratos referentes à prestação de actividade laboral desportiva - o respectivo registo na Federação Portuguesa de Futebol.
2º - Na verdade, se interpretada como esse sentido, tal norma seria configurável como `legislação de trabalho', em cuja elaboração deveriam ter sido necessariamente chamadas a participar as comissões de trabalhadores e as associações sindicais, nos termos dos artigos 54º, nº 5, alínea d) e 56º, nº 2, alínea a) da constituição da República Portuguesa.
3º - Limitada a exigência do registo, constante da norma desaplicada, estritamente ao plano fiscal, nenhuma repercussão poderá ter na efectivação das situações jurídicas emergentes do negócio a omissão de tempestiva realização do registo.
Deverá, pois, confirmar-se a decisão recorrida, no que se refere ao juízo de inconstitucionalidade formal da norma constante do citado artigo 11º, quando interpretada em termos de lhe ser conferida dimensão jurídico-material, susceptível de condicionar a efectividade dos direitos emergentes do contrato não registado'.
O Autor veio aos autos sufragar, no essencial as alegações do Ministério Público, concluindo no sentido da integral confirmação do acórdão recorrido.
O recorrido não ofereceu contralegação.
Passados os vistos de lei, cabe apreciar e decidir.
E decidir, concretamente, se a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº
413/87, de 31 de Dezembro, desaplicada no acórdão recorrido, dispõe ou não de legitimidade constitucional.
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II - A fundamentação
1 - A Lei nº 49/86, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para
1987) concedeu, no artigo 63º, autorização legislativa ao Governo para
'estabelecer um regime fiscal adequado à tributação dos rendimentos auferidos por profissionais do desporto, desde que tal actividade, pela sua natureza, seja exercida profissionalmente durante um tempo relativamente curto, quando comparado com a vida activa de qualquer trabalhador, no sentido de permitir a dedução à matéria colectável sujeita a imposto profissional de todas as importâncias despendidas com a constituição de seguros de vida, de fundos de pensão e com outras formas de previdência, sempre que os rendimentos declarados sejam considerados dentro de limites tidos por razoáveis pelos serviços da administração fiscal'.
Ao abrigo do artigo 201º, nº 1, alínea b), da Constituição e daquela credencial parlamentar, mas invocando-se também a alínea a), do nº 1, do mesmo preceito constitucional, foi editado o Decreto-Lei nº 413/87, com o qual, como se alcança da respectiva exposição preambular, se procurou introduzir a necessária moralização no sector da actividade desportiva 'o que passa não só pela aceitação de um tratamento especial para a situação dos agentes desportivos praticantes, mas também pela criação de mecanismos que incutam verdade e transparência em todo o processo e melhorem a eficácia do combate à evasão fiscal' implementando-se, outrossim, 'no Código do Imposto Profissional um regime tributário adaptado à especificidade da actividade dos agentes desportivos praticantes, especialmente dos de alta competição, tendo em vista o esforço desenvolvido numa carreira de curta duração'.
Em ordem à concretização dos objectivos assim proclamados, o Decreto-Lei nº 413/87, concedeu nova redacção a diversos preceitos do Código do Imposto Profissional - artigos 6º, 11º, 52º, 64º e 83º - e aditou a este mesmo Código dois novos dispositivos - artigos 10º-A e 50º-A.
Por outro lado, numa perspectiva não já eminentemente fiscal, mas de todo o modo ainda com ela indirectamente conexionada, veio impor às entidades utilizadoras dos serviços dos agentes desportivos um conjunto de regras respeitantes à fiscalização financeira da actividade desportiva remunerada.
Assim, tais entidades passaram a ficar obrigadas a possuir contabilidade regularmente organizada (artigo 3º).
Os exames às escritas dessas entidades serão realizados por técnicos economistas ou por peritos de fiscalização tributária dos serviços da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos, conforme a complexidade do exame em causa (artigo 4º).
Instituiu-se um conjunto de mecanismos sancionatórios prevenindo as eventuais violações da disciplina ali estabelecida (artigos 5º, 6º, 7º, 8º, 9º,
10º e 12º).
É neste contexto normativo que se inscreve o artigo 11º, que dispõe da formulação seguinte:
Artigo 11º
Em caso de litígio entre o agente desportivo praticante e a entidade utilizadora dos seus serviços, só poderão ser invocados em juízo os contratos que antes do início da sua vigência tenham sido registados na respectiva federação, considerando-se inexistentes quaisquer cláusulas contratuais que ali não tenham sido registadas.
Este preceito, podendo embora ter na sua génese determinadas preocupações de ordem fiscal - contrariar as práticas simulatórias e a correspondente evasão fiscal que amíude se observam entre os contratantes desportivos - em bom rigor veio estabelecer regras suplementares em matéria de forma e de publicidade dos contratos celebrados entre clubes e agentes desportivos reportando-se por isso às respectivas relações contratuais de trabalho.
Só que, por vício de procedimento, estava-lhe vedado semelhante programa normativo, implicando a sua estatuição inconstitucionalidade formal.
Vejamos porquê.
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2 - Em conformidade com o disposto no artigo 57º, nº 2, alínea a), da Constituição, na versão saída da revisão de 1982, vigente ao tempo da aprovação do Decreto-Lei nº 413/87, [artigo 56º, nº 2, alínea a), na redacção actual] constitui direito das associações sindicais 'participar na elaboração da legislação do trabalho'.
O direito constitucional de participação na elaboração da legislação do trabalho configura-se como um direito institucional e orgânico de que são titulares as comissões de trabalhadores e associações sindicais, não estando assim em causa posições subjectivas individuais (cf. neste sentido, Jorge Miranda, A Constituição de 1976, Lisboa, 1978, pp. 462 e 463, e Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra,
1983, pp. 91 e 92).
A institucionalização do direito de participação na legislação do trabalho tem a ver com processos de asseguramento de representação de interesses, associando uma dimensão atinente a 'opções de organização do poder político' (Vieira de Andrade) a uma dimensão de garantia dos direitos dos trabalhadores, ligando-se ainda aquele direito à dimensão participativa constitucionalmente assinalada (artigo 2º) no princípio democrático. Não é uma participação vinculante para os órgãos de decisão política, assim se compaginando com o princípio representativo, e a funcionalidade que desenvolve ordena-se à conformação das opções legislativas, visando acautelar os direitos dos trabalhadores (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 262/90, Diário da República, 1ª série, de 20 de Dezembro de 1990).
Na ausência de uma explicíta caracterização constitucional do que deva entender-se por legislação do trabalho, tem vindo a doutrina e a jurisprudência a proceder a um preenchimento interpretativo do respectivo conceito, no qual, segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., p. 296, 'se devem ter por compreendidas as matérias que tenham a ver com os direitos constitucionalmente reconhecidos aos trabalhadores, quer a título de `direitos, liberdades e garantias' (arts. 53º a
57º), quer a título de `direitos económicos, sociais e culturais' (arts. 58º e
59º) (cfr. Lei nº 16/79, art. 2º - 1).'
Com efeito, a Lei nº 16/79, de 26 de Maio, que veio dispôr sobre a participação das organizações de trabalhadores na elaboração da legislação de trabalho, concedeu desta última, no seu artigo 2º, nº 1, a seguinte noção:
1 - Entende-se por legislação do trabalho a que vise regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações, designadamente:
a) Contrato individual de trabalho;
b) Relações colectivas de trabalho;
c) Comissões de trabalhadores, respectivas comissões coordenadoras e seus direitos;
d) Associações sindicais e direitos sindicais;
e) Exercício do direito à greve;
f) Salário mínimo e máximo nacional e horário nacional de trabalho;
g) Formação profissional;
h) Acidentes de trabalho e doenças profissionais.
E no nº 2 do mesmo preceito, considera-se igualmente matéria de legislação do trabalho, para os efeitos do respectivo diploma, o processo de aprovação para ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Não sendo esta definição, por si só, inteiramente esclarecedora
(desde logo, porque a enumeração que nela se contém é feita a título exemplificativo), reveste-se, porém, de uma muito particular importância, constituindo os dois vectores essenciais sobre que se suporta, quais sejam, a regulação das relações individuais e colectivas de trabalho e a regulação dos direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações, o núcleo essencial do próprio conceito.
Poderá mesmo afirmar-se, acompanhando os dizeres do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 15/88, Diário da República, I série, de 3 de Fevereiro de 1988, que 'no artigo 2º desse diploma contém-se um enunciado do conjunto de matérias integrantes da noção de legislação do trabalho para um efeito, que, salvo, demonstração em contrário, há-de considerar-se uma adequada densificação legislativa do conceito constitucional'.
Aliás, a jurisprudência constitucional definiu uma linha de entendimento e interpretação daquela noção em termos de quase total similitude com a caracterização que dela foi feita na referida lei.
De harmonia com ela, e seguindo para sua explicitação, por todos, o Acórdão nº 107/88, Diário da República, I série, de 21 de Junho de 1988, 'apesar de o texto constitucional não definir o que seja `legislação do trabalho', pode dizer-se que esta há-de ser `a que visa regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e suas organizações' (cf. parecer nº 17/81, Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16º, p. 14), ou, se assim melhor se entender, há-de abranger a `legislação regulamentar dos direitos fundamentais dos trabalhadores reconhecidos na Constituição' (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 31/84, 451/87 e
15/88, Diário da República, I série, de, respectivamente, 17 de Abril de 1984,
14 de Dezembro de 1987 e 3 de Fevereiro de 1988)'.
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3 - Como já se observou, a norma do artigo 11º veio instituir regras novas em matéria de forma e publicidade dos contratos celebrados entre os clubes desportivos e os jogadores profissionais de futebol.
No caso de conflito judicial entre o agente desportivo praticante e a entidade utilizadora dos seus serviços, só são atendíveis em juízo os contratos que, antes do início da sua vigência, tenham sido devidamente publicitados, mediante registo na respectiva federação, considerando-se todos os demais, em princípio, irrelevantes para os tribunais.
E acresce que, relativamente aos próprios contratos registados nos termos da lei, não se admite prova externa complementar do seu articulado, havendo-se como inexistentes todas as cláusulas não constantes do texto levado ao registo da federação.
No quadro jurídico-normativo vigente à data da publicação do Decreto-Lei nº 413/87, no âmbito do contrato de trabalho, maxime, das relações de trabalho entre clubes desportivos e jogadores profissionais de futebol, não se previa a existência de um ónus jurídico - impositivo do registo do contrato de trabalho na respectiva federação - impendente sobre os clubes e os jogadores, sob pena de não poderem opor em juízo à outra parte o contrato não registado.
Com efeito, no domínio do regime jurídico do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 49408, de 24 de Novembro de 1969, e em conformidade com o disposto no artigo 6º, o contrato de trabalho não está sujeito a qualquer formalidade salvo quando a lei expressamente determinar o contrário.
E, na sequência da definição do regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho a termo, aprovado pelo Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, os contratos de trabalho a termo, certo ou incerto, ficaram sujeitos a forma escrita, devendo ser assinados por ambas as partes e conter as indicações elencadas nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 42º: (a) Nome ou denominação e residência ou sede dos contraentes; (b) Categoria profissional ou funções ajustadas e retribuição do trabalhador; (c) Local e horário de trabalho; (d) Data de início do trabalhador; (e) Prazo estipulado com indicação do motivo justificativo ou, no caso de contratos a termo incerto, da actividade, tarefa ou obra cuja execução justifique a respectiva celebração ou o nome do trabalhador substituído; (f) Data da celebração. Na falta da referência exigida pela alínea d), considera-se que o contrato tem início na data da sua celebração
(nº 2).
Considera-se contrato sem termo aquele em que falte a redução a escrito, a assinatura das partes, o nome ou denominação, bem como as referências exigidas na alínea e) do nº 1 ou, simultâneamente, nas alíneas d) e f) do mesmo número (nº 3).
As relações de trabalho entre as entidades patronais e os jogadores profissionais de futebol achavam-se, na data a que respeita a situação em apreço, sujeitas à Portaria de Regulamentação do Trabalho (PRT), de 9 de Julho de 1975, publicada no Boletim do Ministério do Trabalho, nº 26, de 15 de Julho de 1975. (Esta disciplina veio entretanto a ser alterada pelo Contrato Colectivo de Trabalho estabelecido entre a Liga Portuguesa dos Clubes de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, publicado no Boletim de Trabalho e Emprego, nº 5, de 8 de Fevereiro de 1991 e pelo Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo e do Contrato de Função Desportiva aprovado pelo Decreto-Lei nº 305/95, de 18 de Novembro).
A Base III da PRT, dispondo sobre forma e registo dos contratos de trabalho, rezava assim:
1 - O contrato, que deverá ser reduzido a escrito e elaborado em quadruplicado, será firmado pela entidade patronal e pelo jogador, ficando cada parte com um exemplar em seu poder e remetendo-se os dois restantes, no prazo de cinco dias e por intermédio da entidade patronal, à Federação Portuguesa de Futebol e ao sindicato.
2 - A possibilidade de participação em competições organizadas pela Federação Portuguesa de Futebol fica dependente de registo prévio do contrato na mesma, mediante requerimento assinado pela entidade patronal e pelo jogador.
Deste modo, o contrato celebrado entre o clube e o jogador carecia, além de ser reduzido a escrito, de ser registado na respectiva federação.
Todavia, a ausência do registo não tornava o contrato inválido ou inexistente: desde que reduzido a escrito, produzia efeitos inter partes criando direitos e deveres para jogador e entidade patronal.
Simplesmente, não sendo registado na federação, o contrato não produzia efeitos em relação a esta entidade, achando-se o jogador impedido de participar em competições por ela organizadas, se e enquanto tal registo não se mostrasse efectuado.
Deste modo, o artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, alterou profundamente o valor do registo a que os contratos se achavam sujeitos, passando a depender a sua eficácia, mesmo no domínio das relações inter partes, da sua verificação, só podendo ser invocados em juízo os contratos registados na federação, sendo que se consideravam inexistentes as cláusulas contratuais não constantes naquele registo.
Tal preceito veio atribuir ao registo do contrato natureza constitutiva, ficando a própria eficácia do acto ou negócio jurídico condicionada por aquela forma de publicação, de tal modo que, a sua não verificação passou a acarretar a não produção dos efeitos jurídicos típicos do acto não registado.
Aliás, como bem assinala o senhor Procurador-Geral Adjunto, para além de o registo decorrente da norma desaplicada no acórdão recorrido assumir claramente eficácia constitutiva, duas circunstâncias existem que quase autorizam 'reportar a natureza do acto de registo ao plano da própria perfeição da declaração negocial, da forma originária do contrato celebrado entre o agente desportivo e o clube'.
São elas concretamente: (a) 'a necessidade de o registo preceder o início da vigência do contrato'. Ao contrário do que ocorre com as normais situações de registo constitutivo - em que a omissão pode ser suprida a todo o tempo, embora sem eficácia retroactiva - neste caso o registo só será tempestivo quando preceder o início da vigência do contrato; (b) por força da Base III da PRT de Regulamentação do Trabalho dos Futebolistas Profissionais', o registo deve ser requerido por ambas as partes, o que supõe haver consenso na sua realização', e não pedido apenas por qualquer interessado, como normalmente ocorre (cfr. por ex., o artigo 36º do Código do Registo Predial).
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4 - Aqui chegados e tendo presente tudo quanto vem de se expor, deve afirmar-se que o regime inovatório que em matéria de relação contratual de trabalho se contém na norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, por respeitar à regulamentação dos direitos fundamentais dos trabalhadores consubstanciada na definição de condições de eficácia intrínseca do próprio contrato individual de trabalho, há-de ser conceitualmente entendido como
'legislação do trabalho', como legislação da actividade laboral desportiva.
E assim sendo, achava-se o Governo constitucionalmente obrigado, como órgão autor daquela norma, a desencadear e assegurar uma efectiva participação das associações sindicais representativas dos trabalhadores por ela abrangidos, cabendo por isso indagar se no respectivo processo de produção legislativa (lato sensu) foi assegurado o direito de participação das competentes associações sindicais.
Ora, considerando que no texto preambular do Decreto-Lei nº 413/87, não se contém qualquer referência a uma eventual audição das organizações representativas dos trabalhadores (jogadores profissionais de futebol), na linha de continuidade da jurisprudência que a este respeito tem vindo a ser definida pelo Tribunal Constitucional (cfr. acórdãos nºs 451/87 e 15/88, já cit.) há-de presumir-se que tal audição não se efectivou, enfermando, consequentemente, aquele diploma, na parte respeitante à norma do artigo 11º, de inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no artigo 57º, nº 2, alínea a), da Constituição, na versão de 1982.
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5 - O acórdão recorrido recusou a aplicação da norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, com fundamento em inconstitucionalidade formal, orgânica (ofensa da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República) e material (ofensa ao princípio da igualdade e ao direito de acesso aos tribunais).
Havendo-se concluido no sentido da inconstitucionalidade formal daquela norma, tem-se por desnecessário proceder à averiguação de outras suas eventuais causas de inconstitucionalidade, desde logo, porque o efeito útil do recurso se acha já atingido através de uma decisão de provimento.
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III - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, de
31 de Dezembro, por violação do disposto no artigo 57º, nº 2, alínea a) da Constituição, na versão saída da revisão constitucional de 1982;
b) Negar provimento ao recurso e confirmar, no que toca à questão de inconstitucionalidade referida na alínea antecedente, o acórdão recorrido.
Lisboa, 5 de Março de 1996
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves (com declaração de voto)
Não segui a tese do acórdão por admitir a possibilidade, aqui, de uma redução teleológia da norma que a circunscreve a matéria fiscal e lhe não reconhece poder modificativo do regime-regra do contrato de trabalho. Deste modo se alcança a conclusão da decisão recorrida, mas sem o julgamento de inconstitucionalidade.
(Maria da Assunção Esteves)
Vitor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração de voto que junto)
1. - Discordei da decisão a que chegou a maioria do Tribunal, afastando-me consequentemente dos seus fundamentos, levando-me a votar vencido, essencialmente, pelas razões que passo a referir.
Desde logo, afigura-se-me que não cabe à norma do artigo
11º do Decreto-Lei nº 413/87, de 31 de Dezembro, a qualificação de legislação do trabalho.
É inegável que a disciplina que dela dimana, se reflecte, de forma directa, na tramitação judiciária subsequente à instauração, em tribunal, de acção relativa à relação contratual laboral subjacente.
O teor da norma é bem claro: sobrevindo entre o praticante desportivo e a entidade patronal um litígio, em juízo apenas podem ser invocados os contratos que tenham sido registados na respectiva federação, antes do início da sua vigência.
O acórdão de que divirjo, parte da concepção de que, a obrigatoriedade do registo de um contrato cuja omissão não permita a sua invocação em juízo, atribui a tal registo uma natureza constitutiva.
Ora, uma tal conclusão não se extrai da lei, nem decorre dos seus princípios, parecendo-me que acaba por provar demais: com efeito, se o registo tiver uma natureza constitutiva, a sua falta impede que o contrato possa sequer ser invocado entre as partes celebrantes, como se refere no acórdão
'passando a depender a sua eficácia, mesmo no domínio das relações inter partes, da sua verificação (..)'.
A norma questionada parece-me, todavia, não permitir tal conclusão, pois, apenas torna tais contratos ininvocáveis em juízo, se não tiverem sido registados previamente à sua participação em competições. O que até se harmoniza com o que resulta do nº2 da Base III da PRT para os Futebolistas Profissionais (in BTE, nº 26, de 15 de Julho de 1975), quando refere que 'a possibilidade de participação em competições organizadas pela Federação Portuguesa de Futebol fica dependente de registo prévio do contrato na mesma'.
Ou seja, a falta de registo prévio é apenas, para além de uma condição de participação em competições, um pressuposto de accionabilidade, que tal como qualquer outro do mesmo tipo, uma vez cumprido, permite a continuação da acção.O que o legislador quis, manifestamente, foi evitar que as partes mantivessem os contratos simulados em segredo para, depois, oportunamente e quando mais lhes conviesse, os viessem a exibir e exigir o respectivo cumprimento numa acção.
Entendo, assim, que o Estado ao legislar como o fez, porventura sem grande rigor jurídico, não quis afectar a autonomia contratual privada, mas visou tão somente contrariar bem conhecidas práticas simulatórias e a correspondente evasão fiscal no âmbito da prática desportiva futebolística.
O jogador profissional de futebol é beneficiário de um determinado regime fiscal (altamente favorável, diga-se) quanto às remunerações que recebe e o facto de ficar ciente de que só poderá invocar em juízo o contrato registado constitui um incentivo para que haja correspondência entre contrato realmente celebrado, sobre o qual se pretende que recaia a respectiva tributação, e contrato registado.
Com efeito, o diploma em questão veio estabelecer regras fiscais específicas para os profissionais desportivos e entidades utilizadoras dos respectivos serviços, procurando combater a dupla contratação, bem como a proliferação de cláusulas negociais exteriores ao próprio contrato, quase sempre estabelecidas com a finalidade de lesar ou defraudar o fisco. Uma das formas que o legislador descobriu para obviar à fraude fiscal foi a de impor consequências jurisdicionais à falta de registo do contrato laboral na respectiva Federação, sendo certo que este registo já era imposto, mas com outra finalidade e outro
âmbito.
De acordo com o exposto, parece-me claro que a norma em causa, que entronca em preocupações de natureza predominantemente fiscal, tendo o legislador, para responder a tais preocupações, procurado modificar as sequelas da falta de registo do contrato de trabalho dos futebolistas na respectiva Federação: o contrato não registado, ainda que inteiramente válido entre as partes, não poderá ser invocado em juízo, em caso de litígio judicial - forma esta considerada radical para desincentivar quaisquer práticas simulatórias já referidas e impedindo que o simulador possa vir a tribunal invocar a própria simulação lesiva do próprio Estado (dando assim acolhimento ao velho brocardo «nemo auditur propriam turpitudinem allegans»).
Este entendimento leva pressuposto que o registo pode ser efectuado a todo o tempo e apenas por mera solicitação do trabalhador que assim pode ultrapassar a exigência legal para prosseguimento da acção em juízo, considerando-se o contrato, memso não registado, como inteiramente válido entre as parte e, depois de registado, com eficácia para terceiros desde o momento da sua celebração.
Considerar como «legislação de trabalho» a norma legal que faz decorrer do não cumprimento da exigência de registo do contrato dos profissionais de futebol, a consequência da mera ininvocabilidade de tal contrato ou de cláusulas posteriores, em juízo, concebida esta exigência como mero pressuposto de accionabilidade, é, no meu entender, alargar ilegitimamente o âmbito deste conceito de forma a abranger matérias que só reflexa ou marginalmente se poderiam integrar nesse conceito, e que, na verdade,
nada têm a ver nem com a regulação da relações individuais e colectivas de trabalho nem com a regulação dos direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e que integram o núcleo do que seja «legislação do trabalho, pelo que concluíria no sentido de não considerar a norma do artigo 11º do Decreto-Lei nº 413/87, de
31 de Dezembro, como incluída em tal conceito constitucional.
2. - Discordando do acórdão quanto a esta conclusão e não votando, assim, a decisão de verificação de violação formal da Constituição, poderia entender-se que, em sequência, cumpria apreciar as consideração feitas quanto aos restantes fundamentos de inconstitucionalidade invocados no acórdão recorrido.
Porém, tendo o acórdão a que respeita o presente voto, apreciado apenas aquela questão da inconstitucionalidade formal, entendo que, respeitando este âmbito, a declaração de voto se deve limitar também a tal matéria.
Vitor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa (vencido pelo essencial das razões constantes da declaração de voto do Ex.mº Conselheiro Vitor Nunes de Almeida)