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Processo nº 627/95
2ª S./Plenário Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. A, com os sinais identificadores dos autos, veio, 'nos termos e ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 76º da L.T.C.', reclamar do despacho de 27 de Junho de 1995, do Mmº Juiz-Conselheiro Relator do processo de recurso pendente no Supremo Tribunal de Justiça sob o nº ..., confirmado por acórdão de 3 de Outubro de 1995, que não lhe admitiu um recurso interposto para este Tribunal Constitucional do acórdão daquele Supremo Tribunal, de 30 de Maio de 1995, que decidiu 'negar a revista', entendendo, por um lado, que 'não são devidas as diferenças retributivas pedidas pelo autor' (ora recorrente), e, por outro lado, 'tendo o autor aceite a quantia que lhe foi proposta e que recebeu, paga pela ré com dinheiro do Estado, se consumou o contrato de remissão, uma das causas de extinção de obrigações para além do cumprimento' ('A entender-se, porém, que os factos ocorridos não configuram contrato de remissão, nada obsta a que se qualifiquem de transacção extrajudicial, prevista no art. 1248 do Cód. Civil, contrato que impede, igualmente, que o autor tenha direito à indemnização a que se arroga' - acrescenta-se ainda na parte final do aresto).
No requerimento da reclamação, invoca o recorrente que aquele acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 'recusou a aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da alínea c) do nº 1 do artº 4º Decreto-Lei nº 137/85', constante do acórdão deste Tribunal Constitucional nº 162/95, publicado na I Série, nº 106, de 8 de Maio de 1995, assistindo-lhe 'o direito de ver apreciada a matéria dos autos face à novissima jurisprudência desse Tribunal por uma razão (entre outras) muito simples, a qual consiste na inovação trazida pelo Acórdão nº 162/95 a propósito da debatida
'remissão abdicativa'.
E acrescenta o reclamante:
'Há que extrair, como consequência necessária, que a subsistirem as relações laborais, ou melhor dizendo, a vigência dos contratos de trabalho, questão maioritariamente consagrada no T.C., a remissão dos créditos 'operada' pelo reclamante não tem o suporte legal que o Acórdão recorrido lhe confere. De facto, se não houve quebra de vínculo, o trabalhador não remeteu validamente o seu direito pois há subordinação, e não, liberdade para o fazer'.
2. No seu visto, largamente fundamentado, formulou o Ministério Público o parecer de que:
'a) A decisão recorrida, apesar do seu enunciado verbal, procedeu a uma aplicação implícita da norma constante do artigo 4º, nº 1, alínea c) do Decreto-Lei nº 137/85, já que a relevância decisiva que atribui ao negócio jurídico designado como 'remissão abdicativa' pressupõe necessariamente, de um ponto de vista lógico jurídico, a cessação dos contratos de trabalho no momento e em consequência da extinção da CTM - sendo certo que o Acórdão nº 162/95 deste Tribunal Constitucional já declarou, com força obrigatória geral e eficácia 'ex tunc', a inconstitucionalidade de tal norma.
b) Verificam-se, pois, os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade intentado com fundamento na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, pelo que deverá ser julgada procedente esta reclamação'.
E é esta essencialmente a linha argumentativa do parecer:
'Pensamos que a situação processual subjacente ao presente recurso de constitucionalidade se configura, de forma que consideramos paradigmática, como de aplicação implícita pelo tribunal 'a quo' de norma já anteriormente julgada inconstitucional - neste caso, mediante declaração com força obrigatória geral e dotada de eficácia 'ex tunc'.
A jurisprudência constitucional há muito vem entendendo, a propósito do recurso previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/ /82, que a recusa de aplicação de normas por motivo de inconstitucionalidade não necessita de ser expressa, bastando que ela esteja implícita na fundamentação da decisão recorrida (cfr. designadamente, os Acórdãos nºs 13/83, 27/84 e 429/89).
O que releva 'numa visão substancial das coisas' (cfr. o Acórdão nº 481/94) não
é apenas o estrito enunciado verbal da decisão recorrida, o facto de nela se
'dizer' que considera estar a aplicar-se (ou desaplicar-se) certa norma à dirimição do litígio - mas a circunstância de na fundamentação lógico-jurídica que conduz à decisão ter de passar-se necessariamente pela mediação e consideração do regime jurídico constante da norma em causa.
Tal visão substancial das coisas tem de valer - quase diríamos por maioria de razão - no âmbito dos recursos a que alude a alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, sob pena de os juízos de inconstitucionalidade normativa emitidos nos termos da Lei Fundamental por este Tribunal Constitucional se transformarem em puras proclamações teóricas, insusceptíveis de implicar efectiva e real repercussão nas concretas situações da vida objecto de apreciação judicial'.
3. Ordenada pelo Presidente deste Tribunal Constitucional a 'intervenção do plenário' (artigo 79º-A, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro) e colhidos os vistos, cumpre decidir.
O requerimento do recurso de constitucionalidade interposto pelo reclamante identifica o citado acórdão nº 162/ /95 e vem fundado no 'disposto na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da lei nº 28/82, de 15 de Novembro na sua redacção actual', invocando-se que o acórdão recorrido recusou
'a aplicação de decisão com força obrigatória geral - alínea c) do nº 1 do artº.
4º do Dec. Lei nº 137/85 - pelo que o presente recurso visa a observância e definição dos efeitos previstos no nº 1 do artº 282º da C.R.P.'.
No despacho reclamado afirma-se que 'no acórdão não se fez a aplicação do disposto no artº 4 nº 1 c) do Dec. 137/85'.
E acrescenta-se:
'Estava em causa, no recurso, saber se o autor tinha direito às diferenças retributivas que reclamava e decidiu-se que não, por não ser admissível a aplicação à ré das alterações introduzidas em 1983 e em 1984 nas convenções colectivas de trabalho; e se a indemnização que pedia se havia extinguido, o que foi decidido afirmativamente, ocorresse a extinção por remissão abdicativa ou por transacção extrajudicial. Em parte alguma se defendeu que o contrato de trabalho do autor estava extinto por caducidade, ou que a cessação desse contrato, nos termos em que se verificou, não lhe concedia direito a indemnização. O que se decidiu - repete-se - foi que tal indemnização se tinha extinguido nos termos acima indicados'.
Na esteira da jurisprudência deste Tribunal Constitucional, a questão do não acatamento em decisões dos tribunais de declarações de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, com o preciso sentido e âmbito que nessas declarações foi fixado, é de reconduzir ao tipo de recurso de constitucionalidade abrigado no nº 5 do artigo 280º da Constituição e na alínea g) do nº 1 do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 25 de Novembro
(registe-se que não é esta a situação versada noutros casos do mesmo tipo do destes autos, mas fundado o recurso de constitucionalidade na alínea a) do mesmo artigo 70º, como é exemplo o acórdão nº 261/95, publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1995).
Como se lê no acórdão deste Tribunal Constitucional nº
318/93, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Outubro de 1993, não
é sustentável um alargamento 'da competência do Tribunal Constitucional visando especificamente o controlo do modo como o tribunal recorrido 'executou' a anterior decisão do Tribunal Constitucional'.
E acrescenta-se aí:
'Essa 'execução', na medida em que implica valoração de provas e de factos e interpretação e aplicação do direito ordinário, é, de per si, insindicável pelo Tribunal Constitucional. Este só poderá intervir, não como instância de supervisão da execução das suas decisões, mas como instância de recurso, se a segunda decisão do outro tribunal couber autonomamente na previsão das várias alíneas do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.'
Assim, para concluir se, in casu, se está perante o aludido tipo de recurso da constitucionalidade, e como se regista no acórdão nº
214/90, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Setembro de 1990,
'há que verificar se a decisão recorrida aplicou norma já antes julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional'.
'A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
É que, não obstante a expressão julgada, constante do texto constitucional, poder deixar pensar que aí se exige que a norma aplicada pela decisão recorrida tenha sido objecto de uma pronúncia de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta (ou seja: em decisão proferida num recurso de constitucionalidade), não obstante isso, não existe qualquer razão para assim interpretar a exigência constitucional.
Do que se trata é de não deixar subsistir decisões de outros tribunais que julguem questões de constitucionalidade divergentemente dos julgamentos feitos sobre a matéria pelo Tribunal Constitucional, pois este é o órgão de soberania a quem 'compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional' (cf. artigo 223º da Constituição), julgando-as em derradeira instância.
Ora, esta razão vale redobradamente quando um tribunal aplica uma norma que o Tribunal Constitucional já declarou inconstitucional, com força obrigatória geral' (lê-se no mesmo acórdão nº 214/90, aí se identificando outros arestos).
E também este Tribunal Constitucional vem entendendo que lhe compete fazer a interpretação do sentido e alcance de uma sua declaração de inconstitucionalidade, assim se obtendo o entendimento com que deve valer tal declaração (cfr. os acórdãos nºs 186/91 e 318/93, ambos publicados no Diário da República, II Série, nº 208, de 10 de Setembro de 1993, e 232, de 2 de Outubro de 1993, respectivamente, referindo-se este último a uma 'interpretação autêntica (...) do sentido e alcance de uma restrição de efeitos de declaração de inconstitucionalidade').
4. E o primeiro passo a dar consiste em fixar o sentido e o alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma em causa, feita pelo citado acórdão deste Tribunal Constitucional nº
162/95, 'com base em violação dos artigos 18º, nº 3, 53º e 168º, nº 1, alínea b), da lei fundamental'.
Nesse acórdão, e a propósito da resposta no respectivo processo do Primeiro-Ministro, em que 'defendeu que, na hipótese de este Tribunal vir a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas em causa, razões de interesse público e equidade imporiam que os efeitos da inconstitucionalidade fossem fixados de sorte a não implicar o pagamento dos salários que seriam devidos aos trabalhadores abrangidos por aquelas normas no que tange ao período de tempo decorrido entre a entrada em vigor dos Decretos-Leis números 137//85 e 138/85 e a data da declaração de inconstitucionalidade', este Tribunal Constitucional posicionou-se nestes termos:
'Vejamos se poderá proceder uma tal perspectiva.
2. O raciocínio que conduz à consideração da invalidade constitucional das normas sub specie, acima sumulado, funda-se não só na circunstância de as mesmas não prescreverem o «direito» dos trabalhadores das CTM e CNN a perceberem uma indemnização em consequência da cessação dos seus postos de trabalho advinda da extinção daquelas empresas, mas também no facto de esses normativos terem vindo a consagrar uma nova forma de cessação da relação laboral não prevista no ordenamento jurídico em vigor à data da edição dos diplomas onde se inseriam as referidas normas.
É que se considerou que se extrai do artigo 53º da Constituição o «direito à segurança no emprego» - emprego que, além do mais, é um instrumento de realização pessoal do trabalhador que tem, ele próprio, «direito ao trabalho».
Ora, seja qual for a solução que porventura seja dada aos efeitos da declarada inconstitucionalidade com força obrigatória geral quanto à manutenção ou não manutenção dos contratos de trabalho em que as empresas extintas pelos Decretos-Leis números 137/85 e 138/85 foram outorgantes - questão que cumprirá aos tribunais judiciais decidir - o que é certo é que este Tribunal não vislumbra a existência de fortes razões de interesse público, equidade ou segurança que aconselhem a limitação de efeitos no sentido propugnado pelo Primeiro Ministro.'
E disse mais, noutra passagem, imediatamente anterior à acabada de transcrever:
'(...) continua a entender-se que as normas em causa, consignando uma nova causa de extinção do contrato individual de trabalho e, do mesmo passo, ao não preverem o «direito» dos trabalhadores das CTM e CNN que perderam o seu posto de trabalho em consequência da extinção daquelas empresas, a perceberem qualquer indemnização, violam o direito à segurança no emprego estabelecido no artigo 53º da Constituição, além de, dispondo elas unicamente para aqueles trabalhadores e estatuindo sobre matéria de «direitos, liberdades e garantias» sem que o Governo dispusesse de autorização legislativa, igualmente violarem os artigos 18º, nº 3, e 168º, nº 1, alínea b) do mesmo Diploma Fundamental.
Dir-se-ia - face ao que por último vem de transcrever-se - que a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante daquele acórdão nº 162/95, deixou intocada, por inteiro, a questão da manutenção ou não dos contratos de trabalho.
Mas isso não é assim. Na verdade, tal declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, impede, pelo menos, que a extinção ou cessação dos contratos de trabalho se faça sem que aos trabalhadores se pague uma indemnização - recte, a indemnização correspondente à que lhes seria devida se tivesse havido despedimento colectivo.
Portanto, o alcance mínimo da declaração de inconstitucionalidade constante desse acórdão é o de que existe a obrigação de aos trabalhadores das extintas empresas públicas CTM e CNN ser paga uma indemnização em consequência da cessação dos seus postos de trabalho, de montante idêntico ao que lhes seria devida caso houvesse lugar a um despedimento colectivo. E foi justamente esse direito a uma indemnização que in casu o ora reclamante peticionou, sendo mesmo a parte substancial do seu pedido.
Que isto é assim, resulta claro da leitura da declaração de voto do Relator, Cons. Bravo Serra, junto ao mesmo acórdão nº 162/95, em que se escreveu:
'Tenho para mim que da declaração de inconstitucionalidade - ora operada pelo Acórdão de que a presente declaração faz parte integrante - unicamente poderá resultar a obrigação de aos trabalhadores da extintas empresas públicas CTM e CNN (que em virtude de tal extinção viram cessados os contratos de trabalho que a elas os vinculavam) ser pago um quantitativo indemnizatório de montante idêntico àquele que perceberiam caso tivesse sido adoptado o procedimento do despedimento colectivo.
A isso conduzem, de facto, razões de justiça.
Na realidade, em virtude da cessação dos respectivos contratos, deixaram os aludidos trabalhadores de prestar o seu labor às empresas públicas extintas pelos diplomas onde se inserem as normas em apreço, razão pela qual se depara como justo e se anteolha como razoável que, no cálculo da indemnização, se não computem quaisquer compensações fundadas directamente numa contrapartida de um trabalho que, de modo efectivo, não foi prestado.
De outro lado, no meu modo de ver, residindo a razão porventura mais saliente que conduziu ao juízo de inconstitucionalidade na circunstância de as normas em crise, ao prescreverem a caducidade dos contratos de trabalho, não terem estatuído que aos respectivos trabalhadores fosse conferida uma indemnização semelhante àquela que lhes seria devida caso houvesse lugar a um despedimento colectivo (que era o instrumento legal que na época haveria de lançar mão), torna-se para mim claro que, se tais normas tivessem disposto nesse sentido, não seriam elas passíveis da censura jurídico-constitucional que sofreram. E, nessa hipótese, nítido seria que a indemnização haveria de ter um conteúdo em tudo semelhante à que seria devida por aqueles casos e cujo cômputo se afigura justo.'
Ora, por via do acórdão recorrido foi entendido não haver lugar ao pagamento de tal indemnização, ou seja, não ter o autor e ora recorrente 'direito à indemnização a que se arroga' ('O que se decidiu - repete-se - foi que tal indemnização se tinha extinguido nos termos acima indicados' - lê-se no despacho reclamado).
O que equivale a dizer que o acórdão recorrido não teve em conta o sentido e o alcance, atrás fixados, da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral
Tanto basta para dar como preenchido o pressuposto processual do recurso de constitucionalidade (artigo 70º, nº 1, g), da Lei nº
28/82, e artigo 280º, nº 5, da Constituição).
5. Termos em que, DECIDINDO, se defere-se reclamação, revogando-se o despacho reclamado, para ser substituído por outro que admita o recurso de constitucionalidade. Lisboa, 28 de Março de 1996 Guilherme da Fonseca Bravo Serra Fernando Alves Correia Messias Bento José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Maria da Assunção Esteves Maria Fernanda Palma Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Dinis José Manuel Cardoso da Costa