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Proc. nº 59/95 ACÓRDÃO Nº 516/96
1ª Secção Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A, coarguido preso no processo de querela nº 44 990, requereu ao Supremo Tribunal de Justiça o decretamento da sua restituição à liberdade. Considerando o recurso que da mesma decisão que o condenou havia sido interposto para o Tribunal Constitucional por um outro arguido, afirmou, então:
'1) O requerente foi detido em 21-06.91 e tem continuado detido, ininterruptamente, desde aquela data.
2) Este processo é de Querela e todos os seus trâmites se regeram pelo C. de P.Penal de 1929.
3) O acórdão condenatório não transitou em julgado, visto pender ainda no Tribunal Constitucional, a reclamação pela não admissão do recurso interposto pelo arguido B.
4) Como se decidiu, entre outros, no douto acórdão de 25.03.93, proferido no recurso penal nº 42.306 da 3ª Secção do S.T.Justiça, o prazo máximo de prisão preventiva é de 3 anos, nos termos do § 1º do artigo 273º do C. P. Penal de 1929.
5) Ora o arguido completou e cumpriu já integralmente 3 anos de prisão preventiva, no dia 21 do corrente mês de Junho de 1994.
Pelo que, o arguido A, requer a Vª Exª que se digne ordenar a sua imediata restituição à liberdade'.
Este requerimento foi indeferido pelo relator no Supremo Tribunal de Justiça, em despacho de 23 de Junho de 1994. Aqui, acolhia-se a jurisprudência maioritária do mesmo Supremo Tribunal segundo que, após decisão condenatória ali proferida, o arguido não se encontra já em situação de prisão preventiva, mas em situação de cumprimento de pena, mesmo quando há recurso para o Tribunal Constitucional.
Deste despacho o arguido pretendeu interpor recurso de constitucionalidade. Assim:
'O arguido, A, vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, da decisão proferida a f. 1243 v. que indeferiu o seu pedido de imediata restituição à liberdade, por extinção da prisão preventiva,
nos termos e pelos fundamentos seguintes.
1) Dá-se por reproduzido o seu requerimento apresentado em 22.6.94, em que requeria a sua imediata restituição à liberdade por extinção da prisão preventiva, nos termos do § 1º do artigo 273º do C. P. Penal de 1929.
2) Tal requerimento foi indeferido por se considerar que o requerente já não se encontra em prisão preventiva, mas em cumprimento de pena.
3) Ora pendendo ainda recurso para o Tribunal Constitucional, recurso interposto pelo co-arguido, B, não admitido mas pendendo no Tribunal Constitucional a respectiva reclamação,
a decisão condenatória ainda não transitou em julgado.
Como aliás se decidiu no Processo nº 42767 do S.T.J., em que pode ler-se:
'a pretendida certidão (que se destinava a instruir um requerimento para saída precária ou liberdade condicional) pode ser passada com a menção de que o requerente não foi recorrente e que o acórdão proferido pelo Supremo não alterou quanto a ele, a decisão proferida na 1ª instância; porém, não pode certificar que a decisão recorrida transitou em julgado, porque isso não sucedeu ainda'.
O requerente continua pois em prisão preventiva, como se entendeu no voto de vencido cuja fotocópia se junta (...), para mais fácil conferência.
4) Aquela interpretação do S.T.J. de que, apesar do recurso para o Tribunal Constitucional e apesar de, por isso mesmo, a decisão condenatória não ter transitado em julgado,
mas apesar disso, o arguido deixar de estar preso em prisão preventiva para estar já em cumprimento de pena (mesmo sem trânsito em julgado da decisão), além de violar o sentido do caso julgado e os princípios consequentes, esvaziaria por completo o sentido do caso julgado e respectivas consequências e bem assim o nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
5) É pois adequado e admissível este recurso para o Tribunal Constitucional, com base nos artigos 70º nº 1, alínea b); 71º e 72º nº 2 da Lei
28/82, de 15/11'.
O recurso não foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça: primeiro, por despacho do relator de 27-09-94 e, depois, por acórdão da conferência de 23 de Novembro de 1994, que confirmou aquele despacho. O Supremo Tribunal de Justiça considerava então que não se verificava o pressuposto da suscitação da questão de constitucionalidade de norma (ou normas) durante o processo, em ordem ao artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
É desta decisão de não admitir o recurso que vem deduzida reclamação. Nos seguintes termos:
'(...) Sendo o S.T.J., um Tribunal do Direito e que, em regra, só conhece de Direito, compete-lhe sobretudo aplicar e revelar o Direito.
Todavia, a douta decisão recorrida não revela nem cita em parte nenhuma qualquer disposição legal em que se escora para entender, como vem entendendo, que, havendo recurso para o Tribunal Constitucional, ainda assim, o arguido condenado se encontra já em cumprimento de pena e não em prisão preventiva.
2) Assim sendo, como pode exigir-se que o recorrente alegue e cite qual a lei ou normativo legal cuja declaração de inconstitucionalidade se requer, quando a própria decisão recorrida não refere, não cita, não revela nem se atém a qualquer disposição legal?
O que então se verifica é como que um total vazio e ausência da Lei e logo da Constituição, é a afirmação mais inteira da inconstitucionalidade, é a própria ausência da Constituição, isto é, do estado de Direito, é o nada de nada, é o abaixo de zero do Direito.
E haverá alguma situação mais frontal e por inteiro inconstitucional do que esta total ausência do direito nem sequer citado na decisão, para mais subscrita pelo Supremo Tribunal de Justiça?
Bem cremos que não.
Nem parece curial nem justificado exigir-se que o cidadão, alvo dessa ausência de Direito, possa alegar qual a norma cuja inconstitucionalidade se requer.
Simplesmente e pela mais singela razão de que não há norma alegada, nem referida, nem revelada, é a sua ausência que se requer seja declarada inconstitucional, sendo certo que nada há de mais inconstitucional que a ausência da Lei'.
II - Manifestamente, não se verificam os pressupostos do recurso previsto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com invocação de que se pretende aceder ao Tribunal Constitucional.
Este recurso, 'das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo', pressupõe a exaustão prévia dos recursos ordinários e ainda que a parte haja suscitado a questão de constitucionalidade antes da decisão recorrida e que nesta se aplique a norma (ou normas) sobre que incide a mesma questão.
Esta ideia é, afinal, corolário da natureza e do sentido da fiscalização concreta de constitucionalidade das normas e, em especial, do recurso de parte que dela participa. Aí a questão de constitucionalidade é uma questão incidental, em estreita relação com o 'feito submetido a julgamento'
(CRP, artº 207º). O interesse pessoal na invalidação da norma só faz sentido e se concretiza na medida em que a parte confronte, em tempo, o tribunal que decide a causa com a controversa validade constitucional das normas que aí são convocáveis.
E, como é evidente, o Tribunal Constitucional tem a própria competência confinada ao controlo de normas, que não de decisões. No enunciado do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, está expressa a delimitação dos seus poderes de controlo: são as normas e não as decisões que estão aptas à fiscalização de constitucionalidade. O Tribunal Constitucional assim o tem afirmado em jurisprudência reiterada e pacífica: 'objecto do controlo da constitucionalidade são apenas normas jurídicas e não quaisquer outros actos do poder público, designadamente as decisões judiciais elas mesmas' (acórdão nº
442/91, D.R., II Série, de 2-4-1992); ao suscitar a questão de constitucionalidade há-de deixar-se claro 'qual o preceito legal cuja legitimidade constitucional se questiona ou, no caso de se questionar certa interpretação de uma dada norma, qual o sentido ou a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da lei fundamental' (acórdão nº 199/88, D.R., II Série, de 28-3-1989).
2 - Ora, considerando o caso, haverá de reconhecer-se que, em momento algum do processo, o reclamante referiu a controvérsia constitucional a uma qualquer norma ou dimensão de norma.
Essa controvérsia não adquire nunca contornos definidos, nem mesmo no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Ela dirige-se à própria decisão do Supremo Tribunal de Justiça que se pretende impugnar e nela o recorrente se demite de identificar o direito infra-constitucional que ali foi aplicado.
Mas o controlo de constitucionalidade é no nosso sistema um controlo de validade de normas. O artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com os pressupostos que afirma, denota-o precisamente. No sentido da criação das condições de acesso ulterior ao Tribunal Constitucional, o recorrente não estava dispensado de confrontar o problema e o sistema e de determinar nesse confronto as hipóteses legais que eram convocadas para o caso. Não o fez, e tinha o ónus de o fazer. Daí que improcede a reclamação agora deduzida.
III - Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 unidades de conta.
Lisboa, 28 de Março de 1996
Ass) Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma (Embora tenha votado a favor da tese que fez vencimento no presente Acórdão, não posso deixar de assinalar que, sem mencionar expressamente qualquer artigo legal, o reclamante colocou uma questão de constitucionalidade que, forçosamente, se há-de referir no artigo 215º do Código de Processo Penal. Assim, a questão de constitucionalidade que o reclamante acabou por não formular é a da interpretação desta norma (prazos máximos de duração da prisão preventiva e seu modo de contagem) feita pelo Supremo Tribunal de Justiça. Por outro lado, admitindo-se que não é exigível ao reclamante a identificação da norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça quando este o não fez na sua própria decisão, há-se concluir-se que tal questão só seria resolúvel através de recurso de amparo, que a ordem juridico-constitucional portuguesa não consagra)
José Manuel Cardoso da Costa