Imprimir acórdão
Proc. nº 508/93
1ª Secção
Rel.: Cons. Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. Em processo de acidente de trabalho, que correu os
seus termos no Tribunal do Trabalho de Vila Franca de Xira, a 'Companhia de
Seguros A ....' foi condenada, por sentença de 27 de Outubro de 1992, a pagar ao
sinistrado F..., além do mais, uma pensão anual e vitalícia, no montante de
106.294$00.
Nessa decisão foi ainda atribuída à respectiva acção o
valor de 2.585.963$00.
2. Dessa sentença interpôs a referida seguradora recurso
para o Tribunal da Relação de Lisboa, restrito à questão do valor da causa, por
não aceitar a forma de cálculo desse valor.
A este propósito, afirmou a seguradora, nas respectivas
alegações, que o juiz recorrido, ao fixar o valor da causa, nos termos do artigo
123º do Código do Processo do Trabalho, fez uso indevido do coeficiente
constante das tabelas anexas à Portaria nº 632/71, de 19 de Novembro, deixando
assim de aplicar as tabelas anexas à Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, contra
o disposto na alínea a) do nº 3 desta última Portaria, por ter considerado
aplicável ao caso o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91, de 13 de Março
de 1991 (Diário da República, I-A, de 1 de Abril de 1991), que declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea b) do nº
3 da Portaria nº 760/85. Pretendia a seguradora que o valor da causa fosse
fixado, nos termos da alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, no montante de
1.767.881$80.
O Juiz a quo, no respectivo despacho de sustentação,
manteve a decisão recorrida, não alterando o valor atribuído à acção, e aduziu,
designadamente, os seguintes argumentos:
'(...) pelas mesmas razões pelas quais o Tribunal Constitucional decidiu a favor
da inconstitucio-nalidade da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85, é de
considerar inconstitucional quer a norma da alínea a) do art. 3º, quer a do art.
1º. É que qualquer delas constituem direito do trabalho enquanto que servem de
base ao cálculo das provisões matemáticas para caucionamento das pensões (cf.
art. 70º nº 1 e 71º nº 3 do Dec. 360/71, de 2/8) e para a fixação do valor da
acção (cf. art. 123º do Cód. Proc. do Trabalho).
E como se afirma no douto acórdão, presume-se que as organizações
representativas dos trabalhadores não foram ouvidas, tal como o impõe
disposições constitucionais.
Acresce que, também como se refere no mesmo acórdão, pela Portaria
nº 760/85, de 4/10, o governo veio exercer um poder regulamentar sem fundamento
numa lei anterior, sendo que 'são constitucionalmente ilegítimos os regulamentos
quando contêm disciplina inicial, que só pode constar do diploma legislativo'.
(...)
A admitir-se que a declaração do Tribunal Constitucional tem apenas
efeitos no tocante ao cálculo do capital da remição das pensões, teríamos,
então, de aceitar soluções noutros campos que não foram queridas pelo
legislador.
No que concerne ao caucionamento das pensões aplicar-se-ia, então, a
Portaria nº 760/85. Dado que os coeficientes desta são, de modo geral, mais
baixos que os da Portaria nº 632/71, efectuar-se-iam caucionamentos que, na
prática, não seriam suficientes para o pagamento das pensões, nomeadamente na
hipótese da remição. (...)
A aplicação das duas tabelas, para além de conduzir à falta de
coerência do sistema, (...) conduz também a determinados efeitos práticos
inaceitáveis. São muito as situações - já analisadas em concreto - em que o
valor do capital da remição - determinado em função das tabelas da Portaria de
1971 -, por exemplo, excede os 500.001$00, enquanto que o valor da acção -
achado de acordo com as tabelas da Portaria de 1985 fica aquém desse valor.
Ora em tais situações os interessados, tendo embora um interesse
económico superior ao da alçada do tribunal de 1ª instância, deste não poderiam
recorrer para o tribunal superior na hipótese de ofensa do seu direito.'
O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao
recurso e confirmou a decisão recorrida, sustentando o seguinte:
'(...) o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91, de 1 de Abril,
declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da alínea b) do
nº 3 da P. 760/85, (...) por violação do princípio de precedência da lei,
plasmado nos nºs 6 e 7 do art. 115º, em conjugação com os arts. 201º, nº 1, al.
a), e 202º, al. c), todos da Constituição da República; [e] (...) por violação
do princípio da audição dos representantes dos trabalhadores, constante do art.
56º, 2, a), da Constituição (anterior art. 55º, d) e 57º, 2, a)) - (...)
(...) a violação de tais princípios no caso da referida al. b) do nº
3 da P. 760/85 verifica-se de igual modo quanto à globalidade dessa Portaria, e
daí que toda ela esteja ferida de inconstitucionalidade, o que conduz
necessariamente à aplicação da Portaria 632/71, de 19/11.
Acresce que, (...) a constituição das reservas matemáticas tem como
objectivo garantir o pagamento das pensões devidas aos sinistrados e, assim
sendo, tais reservas têm forçosamente de estar de harmonia com as pensões que
visam acautelar.
Deste modo, declarada a inconstitucionalidade da al. b) do nº 3 da
P. nº 760/85, haveria uma discrepância entre o cálculo da remissão da pensão e o
valor da reserva matemática destinada a caucioná‑la, pois aquele é obtido com
base na reserva matemática estabelecida na tabela anexa à P. nº 632/71.
Assim, e uma vez que o valor da causa é, de acordo com o disposto no
nº 1 do art. 123º do Cód. de Proc. do Trabalho, igual ao valor das reservas
matemáticas, e estando ferida de inconstitu-cionalidade a globalidade da P.
760/85, essas reservas matemáticas terão de ser calculadas com base nos
coeficientes constantes da tabela anexa à Portaria 632/71.'
3. Desta decisão vem interposto pelo Ministério Público
o presente recurso (obrigatório) para o Tribunal Constitucional, nos termos dos
artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs 1, alínea a), e 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, em virtude de o tribunal a quo ter recusado a aplicação da
alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, com fundamento em
inconstitucionalidade.
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público
apresentou alegações, de onde se destacam os seguintes argumentos:
'(...) o preâmbulo da Portaria nº 760/85 invoca expressamente, como lei
habilitante, o parágrafo único do artigo 1º do Decreto-Lei nº 26.095, de 23 de
Novembro de 1935. (...)
Assim, a norma desaplicada, enquanto se limita a alterar as tabelas
relativas ao cálculo das provisões matemáticas das pensões de acidentes de
trabalho, não viola os nºs 6 e 7 do artigo 115º da Constituição.
Diversa, porém, é a solução quanto à violação dos preceitos
constitucionais relativos à participação das organizações representativas dos
trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho.
(...) as reservas matemáticas não relevam apenas para a determinação do valor da
causa, aspecto em que, em rigor, não podiam ser consideradas como legislação do
trabalho.
Elas, além de constituirem garantias das pensões a cargo das
seguradoras, têm também repercussão directa no caucionamento de pensões, a que
estão sujeitas as entidades patronais quando não haja ou seja insuficiente o
seguro (artigo 70º, nº 1, do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto). (...)
Incidindo sobre um elemento substancial da matéria de protecção dos
trabalhadores no âmbito dos acidentes de trabalho, há que concluir que a norma
em causa se integra no conceito de legislação do trabalho, e que, tendo sido
emitida sem participação das organizações representativas dos trabalhadores,
viola os artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, da Constituição (versão de 1982).'
E conclui:
'1º. É inconstitucional, por violação dos artigos 55º, alínea d), e
57º, nº 2, da Constituição (versão de 1982), a norma constante da alínea a), do
nº 3, conjugada com o nº 1, da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, por,
incidindo, quer directamente quer através da determinação do montante do
caucionamento exigível às entidades patronais, sobre a garantia das pensões por
acidentes de trabalho, que integra o conceito de 'legislação do trabalho', ter
sido emitida sem se ter proporcionado a participação, na sua elaboração, às
organizações representativas dos trabalhadores;
2º. Termos em que deve ser confirmada a decisão recorrida, na parte
impugnada.'
Não foram apresentadas contra-alegações.
4. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
5. O presente recurso tem por objecto a questão da
constitucionalidade da norma constante da alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85, de 4 de Outubro. Essa norma foi desaplicada pelos tribunais
intervenientes nos autos, com fundamento em inconstitucionalidade, por terem
entendido que se verificavam, no caso, as razões que determinaram a declaração
de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 3º,
b), daquela Portaria, proferida no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 61/91,
de 13 de Março de 1991.
A questão que se coloca é, deste modo, a de apurar se
valem para a alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 as mesmas razões que
conduziram à aludida declaração de inconstitucionalidade da norma da alínea b)
do nº 3 dessa mesma portaria; ou, no caso de essas razões não procederem,
averiguar se outras razões existem para fundamentar um juízo de
inconstitucionalidade.
6. O problema é suscitado a propósito do cálculo do
valor das acções emergentes de acidentes de trabalho.
Dispõe o artigo 123º, nº 1, do Código de Processo do
Trabalho o seguinte:
'Nos processos de acidentes de trabalho ou de doenças profissionais,
o valor da causa é igual ao das reservas matemáticas.'
Por sua vez, o cálculo das reservas matemáticas é feito
com base em taxas constantes de tabelas, que, à data da entrada em vigor do
mencionado Código de Processo do Trabalho (aprovado pelo Decreto-Lei nº
272-A/81, de 30 de Setembro), se encontravam integradas na Portaria nº 632/71,
de 19 de Novembro, e que posteriormente foram substituídas pelas tabelas anexas
à Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro. Com efeito, a Portaria nº 760/85
substituiu a Portaria nº 632/71 por o legislador entender, como se menciona no
preâmbulo do diploma, que 'as tábuas de mortalidade e as taxas de juro técnicas
constantes das tabelas anexas à referida portaria [nº 632/71] se encontram
manifestamente desadequadas', pelo que se adoptaram novas tabelas.
No nº 1 da Portaria nº 760/85 lê-se que:
'São aprovadas, pela presente portaria, as tabelas anexas relativas
ao cálculo das provisões matemáticas das pensões de acidentes de trabalho.'
E refere-se no nº 3 que 'as referidas tabelas são
aplicáveis':
'a) Ao cálculo das provisões matemáticas corres-pondentes às pensões
fixadas, quer a partir da data da entrada em vigor da presente portaria, quer
anteriormente;
b) Ao cálculo, nos termos legais em vigor, do valor do capital de
remições autorizadas a partir do primeiro dia do mês seguinte ao da data da
publicação da presente portaria.'
Por via da remissão constante do citado artigo 123º, nº
1, do Código de Processo do Trabalho, o cálculo do valor da causa em processo de
acidente de trabalho deverá hoje fazer-se, portanto, segundo as tabelas anexas à
Portaria nº 760/85, em conformidade com o disposto no nº 3, alínea a), conjugado
com o nº 1, dessa portaria.
Porém, e como é sabido, no Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 61/91, de 13 de Março de 1991 (Diário da República, I-A, de 1
de Abril de 1991), foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral:
'a) da norma constante da alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85,
de 4 de Outubro, por violação do princípio da precedência da lei - decorrente,
designadamente, dos nºs 6 e 7 do artigo 115º e do artigo 202º, alínea c), da
Constituição - e também por violação do artigo 201º, nº 1, alínea a);
b) da norma constante do artigo 65º do Decreto nº 360/71, de 21 de
Agosto, na redacção do Decreto‑Lei nº 466/85, de 5 de Novembro, enquanto
conjugado com o nº 1 da referida portaria, por violação do preceituado nos
artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2, alínea a), da Constituição da República
Portuguesa (versão de 1982).'
Para averiguar se, em relação à alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, se pode igualmente sustentar a violação do princípio da
precedência da lei, tal como foi entendido para a alínea b) do nº 3 desse
diploma, é conveniente considerar a fundamentação, nessa parte, do mencionado
acórdão:
'Com efeito, como vimos, desde 1979 que não existia qualquer norma
legal ou regulamentar a estabelecer, com carácter genérico, a correspondência
entre as provisões matemáticas das companhias seguradoras no ramo acidentes de
trabalho e o valor do capital das remições, pelo que a norma impugnada da
Portaria nº 760/85 - tal como, anteriormente, a norma correspondente da Portaria
nº 362/71 - assumia, verdadeiramente, um conteúdo normativo para todos os
efeitos equiparável ao de uma norma legal.
Mas, assim sendo, logo se lobrigaria outro fundamento de
inconstitucionalidade para a norma em questão - o da violação do disposto nos
nºs 6 e 7 do artigo 115º, conjugados com a alínea a) do nº 1 do artigo 201º e
com a alínea c) do artigo 202º da lei fundamental.
Na verdade, como se afirmou no Acórdão nº 184/89 (publicado no
Diário da República, 1ª série, de 9 de Março de 1989), 'por força do princípio
da precedência da lei (primariedade da lei ou reserva vertical da lei) -
consagrado nos nºs 6 e 7 do artigo 115º da nossa Constituição -, não existe
exercício de poder regulamentar sem fundamento numa lei anterior', já que ao
Governo, no exercício de funções administrativas, apenas compete fazer os
regulamentos necessários à boa execução das leis [artigo 202º, alínea c)],
cabendo-lhe, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis em
matérias não reservadas à Assembleia da República. Isto é, e consoante se
escreveu no mencionado aresto, são constitucionalmente ilegítimos os
regulamentos quando 'contêm disciplina inicial, que só pode constar de diploma
legislativo'.
Ora, no caso em apreço, e como se assinalou, a alínea b) do nº 3 da
Portaria nº 760/85 veio estabelecer disciplina inicial, uma vez que já não
existia, à data da sua edição, norma legal que suportasse o seu conteúdo.'
Na verdade, a norma constante da alínea b) do nº 3 da
Portaria nº 760/85 é editada num momento em que regia ainda a versão do artigo
65º do Decreto nº 360/71, de 21 de Agosto, introduzida pelo Decreto-Lei nº
459/79, de 23 de Novembro, e anterior à redacção dada pelo Decreto-Lei nº
466/85, de 5 de Novembro - e dessa versão não constava a referência (existente
na versão originária) a que o valor da pensão, para efeitos de remição, era
calculado 'de harmonia com as bases oficialmente adoptadas para a determinação
das reservas matemáticas das sociedades de seguros'. E é essa circunstância,
como se viu, que permite sustentar a ocorrência de violação do princípio da
precedência da lei, quanto à alínea b) do nº 3 da Portaria nº 760/85.
Ora, no caso da alínea a) do nº 3 dessa portaria, é
evidente não se veio estabelecer disciplina inicial quanto ao cálculo do valor
da causa: a alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 não regula directamente essa
matéria, mas apenas por remissão do artigo 123º, nº 1, do Código de Processo do
Trabalho, sendo esta norma legal anterior [aprovada por decreto-lei e vigente à
data da entrada em vigor da referida alínea a)] que consagra a correspondência
entre as reservas matemáticas e o valor da causa.
Note-se, aliás, que a alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85 não se aplica apenas à determinação do valor da causa. As reservas ou
provisões matemáticas a que se refere esta disposição, para além de constituirem
garantias das próprias pensões por acidentes de trabalho, relevam ainda no plano
do caucionamento de pensões a que estão obrigadas as entidades patronais quando
não haja ou seja insuficiente o seguro (cf. artigos 70º, nº 1, e 71º, nº 3, do
Decreto nº 360/71). E também nesta perspectiva a norma constante da alínea a) do
nº 3 da Portaria nº 760/85 não contém disciplina inicial, na medida em que são
aquelas disposições anteriores do Decreto nº 360/71 que estabelecem a correlação
entre as reservas matemáticas e o caucionamento.
Acresce que no preâmbulo da Portaria nº 760/85 se
cumpriu o dever de citação da lei habilitante (imposto pelo artigo 115º, nº 7,
da Constituição), ao invocar-se expressamente o parágrafo único do artigo 1º do
Decreto-Lei nº 26.095, de 23 de Novembro de 1935, que prevê a revisão periódica
das tabelas relativas ao cálculo das reservas automáticas das pensões de
acidentes de trabalho.
O exposto permite concluir que a alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85, diferentemente do que sucedia com a alínea b) no momento da
sua edição, não contém disciplina inovatória, antes comporta efectiva
regulamentação de lei anterior - pelo que não há violação do princípio da
precedência da lei.
Não valem, pois, para a alínea a) do nº 3 da Portaria nº
760/85 as razões determinantes da declaração de inconstitucionalidade da norma
da alínea b) desse nº 3.
7. Sendo assim, cabe então averiguar se a matéria em
causa naquela alínea a) constitui - como pretende o recorrente - legislação do
trabalho, para efeitos do disposto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº 2,
alínea a), da Constituição (na redacção da 1ª revisão constitucional, de 1982,
vigente à data da publicação da Portaria nº 760/85) [e a que correspondem
actualmente, e desde a 2ª revisão constitucional, de 1989, os artigos 54º, nº 5,
alínea d), e 56º, nº 2, alínea a)], nos quais se consagra o direito de
participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração
dessa legislação.
A importância de tal averiguação deriva do facto de o
diploma em apreço (a Portaria nº 760/85) não fazer menção a uma eventual
intervenção daquelas organizações no respectivo processo de produção normativa,
pelo que se deve presumir que tal intervenção não ocorreu (cf., neste sentido,
os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 31/84, 451/87 e 15/88, in Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vols. 2º, p. 123, 10º, p. 161, e 11º, p. 153,
respectivamente).
8. Conforme dispõem os preceitos constitucionais acima
mencionados, constitui direito das comissões de trabalhadores e das associações
sindicais a participação na elaboração da legislação do trabalho.
Os diplomas legais respeitantes a acidentes de trabalho
e doenças profissionais, pela sua dimensão de protecção dos trabalhadores numa
situação de inferioridade pessoal e social, integram o conceito de legislação do
trabalho. Na verdade, eles referem-se a direitos fundamentais dos trabalhadores
reconhecidos na Constituição (integrando‑se no conceito de legislação do
trabalho, perfilhado pelo Tribunal Constitucional nos Acórdãos nºs 31/84,
451/87, 15/88 e 107/88, Diário da República, I, de 17 de Abril de 1984, 14 de
Dezembro de 1987, 3 de Fevereiro de 1988 e 21 de Junho de 1988, respectivamente)
e, igualmente referidos pela doutrina (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 296).
Aliás, esse direito de participação das organizações
representativas dos trabalhadores e o correlativo dever de audição por parte do
legislador vieram a ser regulados por lei ordinária (a Lei nº 16/79, de 26 de
Maio), que contém a enumeração exemplificativa das matérias que constituem
legislação do trabalho. Entre essas matérias, foi incluída a de acidentes de
trabalho e doenças profissionais [cf. artigo 2º, nº 1, alínea h) da Lei nº
16/79].
Em conclusão, a norma desaplicada [alínea a) do nº 3 da
Portaria nº 760/85] constitui legislação do trabalho: integra-se em diploma
relativo à matéria de acidentes de trabalho e incide sobre aspectos substanciais
da protecção dos trabalhadores no âmbito do regime dos acidentes de trabalho. As
tabelas de reservas matemáticas para que remete repercutem-se na consistência
da garantia das pensões por acidentes de trabalho e no caucionamento das pensões
na falta ou insuficiência do seguro.
9. Perguntar-se-á, então, se tal preceito, ao
repercutir-se na determinação do valor da causa nos processos de acidentes de
trabalho e doenças profissionais, implicará uma norma concreta eminentemente
processual, em que já não estará em causa a legislação do trabalho. A resposta a
esta pergunta é negativa. Ainda que indirectamente, também aqui está em causa a
protecção dos trabalhadores visto que a definição do valor da causa interfere na
possibilidade de recorrer e, reflexamente, no conteúdo - em concreto - do
direito à pensão.
10. Também a circunstância de a norma desaplicada se
integrar em mero acto regulamentar (portaria) não obsta à conclusão de que se
está perante legislação do trabalho. Este conceito não se restringe aos actos
legislativos, envolvendo, no seu sentido amplo, toda a produção normativa,
designadamente os diplomas regulamentares, desde que não sejam 'puramente
executivos, isto é, que ainda contenham uma decisão substantiva sobre algum
aspecto que interesse ao estatuto jurídico dos trabalhadores' (Gomes Canotilho e
Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, ob. cit., p. 296,
e Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/90 e 233/90, de 3 de Julho de
1990, Diário da República, II, de 22 de Janeiro de 1991).
A alínea a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, não obstante
o seu carácter regulamentar (e não directamente inovatório), não constitui norma
'puramente executiva', uma vez que são as próprias tabelas de reservas
matemáticas, constantes dessa Portaria e a que essa norma se reporta, que
permitem 'quantificar' os direitos dos trabalhadores, conferindo-lhes conteúdo e
expressão. Tal norma tem, assim, repercussão substantiva sobre a situação dos
trabalhadores.
Aliás, a demonstração feita na doutrina de uma alegada
'iniquidade' da Portaria nº 760/85 - cujas tabelas contêm, efectivamente,
coeficientes inferiores, em regra, aos constantes das tabelas anexas à Portaria
nº 632/71 (cf. Vitor Ribeiro, 'Acidentes de Trabalho - Disposições Legais Mais
Recentes', in Cadernos da Revista do Ministério Público, nº 1, pp. 86 ss.) -, só
vem evidenciar a relevância substancial dessas tabelas.
Justifica-se, deste modo, o entendimento de que o
direito de participação dos trabalhadores na produção normativa deveria ter sido
exercido no decurso do processo de formação da Portaria nº 760/85,
designadamente em relação à alínea a) do seu nº 3.
Idêntica posição foi perfilhada, para a alínea b) do nº
3 dessa Portaria, nos citados Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 232/90 e
233/90, podendo ler-se, no primeiro desses arestos, o seguinte:
'(...) a norma que manda atender, para o cálculo do capital de remição, às
tabelas relativas às provisões matemáticas das empresas de seguros, em si mesma
considerada, nada adianta quanto à quantificação desse direito dos trabalhadores
que só veio a adquirir conteúdo e expressão através do coeficiente indicado nas
tabelas aprovadas pelo regulamento.
Deste modo, ondo o exercício daquele direito de participação mais se
justifica é no decurso do processo conducente à aprovação do acto regulamentar,
concretamente da Portaria nº 760/85, pois que aí se situou a opção fundamental
do legislador a propósito da definição dos montantes do capital de remição.'
11. Conclui-se, assim, que a norma constante da alínea
a) do nº 3 da Portaria nº 760/85 reveste a natureza de legislação do trabalho e,
uma vez que foi editada sem a participação, na sua elaboração, das organizações
representativas dos trabalhadores, sofre de inconsti-tucionalidade formal.
III
Decisão
12. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante da alínea
a) do nº 3 da Portaria nº 760/85, de 4 de Outubro, enquanto conjugada com o nº 1
dessa Portaria, por violação do disposto nos artigos 55º, alínea d), e 57º, nº
2, alínea a), da Constituição (na redacção da primeira revisão constitucional);
b) Negar, em consequência, provimento ao recurso,
confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 20 de Abril de 1995
Ass) Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves (vencida, nos termos da declaração de voto aposta ao
acórdão nº 232/90, DR. II Série, de 22.01.91)
Armindo Ribeiro mendes (vencido nos termos da
declaração de voto junta)
Luis Nunes de Almeida (vencido, por entender
que se não está perante 'legislação do trabalho', uma vez que a norma em causa
não regula directamente matéria atinente a direitos dos trabalhadores)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido pelas razões que passo a referir.
A norma aplicada por remissão do artº 123º, nº 1, do
Código de Processo de Trabalho - constante da alínea a) do nº 3º da Portaria nº
760/85, conjugada com o nº º1 da mesma Portaria - tem a ver com matéria
processual, pelo que não se considera que ela possa pôr directamente em causa os
direitos dos trabalhadores, tanto mais que o valor da causa é invariável quer a
entidade patronal haja transferido a sua responsabilidade pelo pagamento da
pensão a uma seguradora, quer não o tenha feito e haja caucionado o pagamento
dessa pensão (cfr.art. 70º do Decreto nº 360/71).
Contra esta posição não pode argumentar-se quer com a
redacção do artº 8º, nº 1, alínea x), do Código das Custas Judiciais (nessa
disposição faz-se uma ligação entre as reservas matemáticas e a finalidade da
sua constituição 'para garantia das respectivas pensões', ligação que provinha
da redacção do artº 118º do Código de Processo de Trabalho de 1963, mas que se
não afigura de relevância para o presente recurso), quer com a necessidade de
manter uma solução unitária em matéria do valor do processo e em matéria de
constituição de caução. Tão-pouco se pode argumentar, no que toca à incidência
em concreto do cálculo do valor da acção, com a sua relação com as alçadas dos
tribunais de trabalho. Tenho por seguro que o valor das alçadas nunca pode
afectar directamente os direitos dos trabalhadores, não tendo,por isso, as suas
organizações de ser ouvidas sobre legislação atinente a esta matéria de natureza
processual e organizatória.
Alguma incongruência existe, no plano do direito
ordinário, mas não acarreta, em minha opinião, qualquer juízo de desvalor
constitucional no que toca ao modo de fixação do valor das causas em matéria de
acidentes de trabalho, por não se ver qual a norma ou princípio constitucional
violados por tal norma de natureza processual.
As) Armindo Ribeiro Mendes