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Proc. nº 309/94
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal do Trabalho de Lisboa, A. propôs acção emergente de
contrato individual de trabalho, como processo sumário, contra B., pedindo a sua
condenação ao reconhecimento de diversas quantias no montante global de
1.263.784$00, devidas no âmbito da relação de trabalho entre ambos constituída e
depois expirada na decorrência da caducidade prevista no artigo 4º, nº 1, alínea
c), do Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio, diploma que extinguiu aquela empresa
e determinou a sua liquidação.
Por despacho-sentença de 18 de Março de 1993, julgou-se verificada a
excepção da incompetência absoluta do Tribunal do Trabalho para conhecer da
acção, considerando-se para tanto competentes os tribunais comuns, e
absolveu-se, em consequência, a Ré da instância.
O Autor levou deste despacho agravo ao Tribunal da Relação de
Lisboa, que, por acórdão de 2 de Dezembro de 1993, lhe negou provimento,
confirmando a decisão recorrida.
Não se conformando com este aresto interpôs então novo recurso para
o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão, de 1 de Junho de 1994, lhe
recusou provimento, confirmando a decisão impugnada.
Para tanto, suportou-se na fundamentação seguinte:
'A questão que nos é posta não é nova neste Tribunal. Percorrendo o
processo, vê-se que repetidamente tem sido suscitada, e que lhe tem sido dada
solução largamente dominante, não se dizendo uniforme, não se dê o caso de
existir outra de sentido diferente, o que se desconhece.
A solução que tem sido dada é no sentido de conferir-se aos tribunais cíveis
a competência neste tipo de acção, entendendo-se que os tribunais de trabalho
carecem de competência para o seu julgamento.
Tudo depende do sentido a atribuir à expressão `...ao tribunal comum ...',
integrante do artº 8º, 1 do DL 137/85 de 3 de Maio, diploma que extinguiu a B..
Com a mesma data, o DL 138/85 extinguiu a C., diploma que contém disposição
igual em número e redacção àquela do DL 137/85, o que originou também processo
neste Supremo, que foi ao Tribunal Constitucional, onde se decidiu que o nº 1
daquele artº 8º era inconstitucional, por violação do artº 168º, 1, q) da CRP,
na versão de 1982, por versar matéria da exclusiva competência da Assembleia da
República, não estando o Governo previamente habilitado para sobre ela
legislar.
Não obstante aquela decisão do TC, no mesmo processo, quando voltou ao
Supremo, a decisão por este proferido respeitou a corrente dominante, julgando
os tribunais cíveis os competentes para a acção.
Toda a argumentação dos acórdãos proferidos neste Tribunal tem-se centrado
na identidade terminológica entre os referidos arts. 8º, 1 e a do artº 43º, 4
do DL 260/76 de 8 de Abril, que veio a estabelecer as bases gerais das empresas
públicas.
Ao tempo da publicação do DL 260/76 vigorava na organização judiciária o DL
44 278, de 14 de Abril de 1962, altura em que os tribunais comuns se
contrapunham os especiais, nestes se incluindo os tribunais de trabalho.
Assim, enquanto vigorou o Estatuto Judiciário de 1962, por força do artº 43º
do DL 260/76, não se podia duvidar que os credores das empresas públicas, cujos
créditos não tivessem sido reconhecidos pelos liquidatários ou não tivessem
sido graduados em conformidade com a lei, podiam fazer valer os seus direitos
perante os tribunais cíveis, não perante os tribunais laborais, então especiais.
A questão levanta-se porque o DL 137/85 surge numa época em que a
organização judiciária era regulada pela Lei nº 82/77 de 6 de Dezembro, que se
afastou da classificação bipartida de tribunais comuns e tribunais especiais,
para a de tribunais de competência genérica, especializada e de competência
específica.
Uma primeira observação. A circunstância do Tribunal Constitucional ter
julgado inconstitucional o nº 1 do artº 8º do DL 138/85, não pode ter influência
directa na decisão a tomar neste processo, já porque só forma caso julgado
naquele processo (artº 80º, 1 da L 28/82), já porque o diploma, ou melhor, não é
o mesmo; ali é o DL 138/85, aqui o 137/85.
Indirectamente, dado que existe uma similitude de situação jurídica,
poder-se-ia discutir sobre a constitucionalidade do nº 1 do artº 8º do DL
137/85. Ainda que se concluisse pela sua inconstitucionalidade, não o seria o nº
4 do artº 43º do DL 260/76, que tem idêntica redacção, e seria o aplicável,
porque norma especial relativamente aos posteriores diplomas legislativos que
vieram alterar a organização judiciária, em termos genéricos, diplomas estes
que não contém dispositivos que revelem a `intenção inequívoca do legislador'
de revogar aquela lei especial. (Vide o artº 7º, 3 do CC) Sendo certo que o DL
260/76 não tem natureza temporária.
Não se vê razão para alterar o entendimento dominante neste Supremo Tribunal
de Justiça sustentado de forma bem explícita e convincente no acórdão em
fotocópia de fls. 245 a 261, e é posição a seguir e que se adopta, agora e aqui,
em homenagem ao valor da uniformidade da jurisprudência, fonte da segurança
jurídica, celeridade processual e do prestígio dos tribunais'.
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2 - Deste acórdão veio o Autor interpor recurso de
constitucionalidade ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea a), da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Levou ao respectivo requerimento de interposição as seguintes
razões justificativas:
'Com efeito, após ter começado por acentuar que, para a formulação da decisão
`tudo depende do sentido a atribuir à expressão ``... ao tribunal comum ...'',
integrante do artº 8º 1 do D.L. 137/85 de 3 de Maio, diploma que extinguiu a
B..' (cfr. fls. 2, linha 14), o douto acórdão recorrido acabaria por desaplicar
tal norma, com fundamento em inconstitucionalidade.
Na verdade, se é certo que o douto acórdão recorrido se expressou usando de
uma formulação como que meramente hipotética, ainda assim o seu sentido não é
menos óbvio; tanto mais que o douto acórdão recorrido usou da mesma formulação
ao referir-se à norma que aplicou (cfr., com sublinhado do recorrente, o passo
em que se lê. `... não o seria [inconstitucional] o nº 4 do artº 43º do D.L.
260/76 [...]'); acrescendo ainda, que, conforme supra referido, após revelar
como pressuposto único da douta decisão (de novo: `Tudo depende [...]') o
sentido dessa norma do nº 1 do art. 8º do dec.lei 137/85, acaba por
desaplicá-la, após analisar a jurisprudência do Tribunal Constitucional, sobre
disposição idêntica do dec.lei 138/85.
Ora, bem diversamente, a ter em consideração a douta jurisprudência do
Tribunal Constitucional, deveria o douto acórdão recorrido, salvo o muito e
devido respeito, proceder à aplicação da norma do nº 1 do artº 8º do dec. lei
137/85 porquanto a disposição correspondente do dec.lei 138/85 foi
sucessivamente declarada inconstitucional (e, recentemente, com força
obrigatória geral, mediante o douto acórdão nº 151/94, publicado no D.R. I
Séria, de 30/3/94), não em si mesma mas, apenas, em interpretação que arrede a
competência dos Tribunais do Trabalho quando estejam em causa, como é o caso,
créditos laborais'.
Nas alegações que depois veio a produzir, formulou o seguinte quadro
de conclusões:
'a) Face à al. q) do nº 1 do artº 168º da C.R.P. a competência dos tribunais
é matéria integrante da reserva relativa de competência da Assembleia da
República, sendo que o dec. lei 137/85 de 3 de Maio, foi emitido sem precedência
de autorização legislativa;
b) Logo, a expressão `tribunal comum' inserta no nº 1 do seu artº 8º tem que
coincidir com quanto dispõe a lei ordinária, sob pena de ter que concluir-se
pela sua inconstitucionalidade orgânica;
c) A C.R.P. (artº 301º 1.) logo na sua versão originária, impôs a revisão da
orgânica judiciaria, cuja sede única passou a ser a LOTJ/77;
d) Os anteriores tribunais comuns passaram a ser designados como judiciais
e, por força dessa revisão do sistema, entre eles se integraram os tribunais de
trabalho, com competência para as questões laborais de natureza cível;
e) O artº 8º 1. do dec. lei 137/85 pode e dever ser interpretado de molde a
incluir os tribunais do trabalho, quando estejam em causa créditos laborais,
assim ficando preservada a sua conformidade constitucional.
Em conclusão:
O douto acórdão recorrido desaplicou, pois, a norma do nº 1 do artº 8º do
dec. lei 137/85, não devendo fazê-lo porquanto a mesmo só enferma de
inconstitucionalidade, por violação do artº 168º, nº 1 q) da C.R.P. na redacção
da Lei Constitucional nº 1/82, de 30/9, quando interpretada no sentido de que
os tribunais comuns, nela referidos, são os tribunais cíveis e estejam em causa
créditos emergentes de relações laborais'.
Por seu turno, a Ré, na contralegação trazida aos autos sustentou o
improvimento do recurso, sintetizando assim a sua linha argumentativa:
'1 - O artigo 43º, nº 4 do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril, por ser
anterior à Constituição, não pode ter violado a regra de competência do seu
artigo 168º, nº 1, al. q).
2 - Da aplicação desse preceito do Decreto-Lei nº 260/76 também não decorre
qualquer contradição com a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, uma vez que desta não
resulta intenção revogatória daquele preceito especial.
3 - A subsistência desta norma especial do Decreto-Lei nº 260/76 (a par das
do CPC que asseguram o princípio da plenitude da instância falimentar) em nada
afecta a unificação da organização judiciária, prosseguida pela Lei nº 82/77,
antes se mostre em maior conformidade com essa unificação.
4 - A subsistência deste mesmo preceito, interpretada nos termos do douto
Acórdão do STJ, não fere directa ou indirectamente qualquer norma ou princípio
da Constituição nem se importa qualquer juízo quanto à conformidade ou
desconformidade constitucional do artigo 8º, nº 1 do Decreto-Lei nº 137/85, de
3 de Maio, no sentido que o Recorrente pretende atribuir-lhe.
5 - Na verdade, com esse sentido - atribuição de competência aos tribunais
de trabalho - o artigo 8º, nº 1 do Decreto-Lei 137/85 cede face ao artigo 43º,
nº 4 do Decreto-Lei 260/76, por ser esta norma especial, não revogada pela Lei
de revisão do sistema judiciário.
Passados os vistos de lei cabe agora apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
1 - O presente recurso foi interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e tendo em
conta o quadro circunstancial e normativo subjacente ao acórdão recorrido,
considera-se que aquela norma fundamento foi legal e adequadamente invocada.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 151/94, Diário da
República, I série-A, de 30 de Março de 1994, declarou a inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, da norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº
138/85, de 3 de Maio, 'quando interpretada no sentido de que os tribunais comuns
a que se faz referência nessa norma são os tribunais cíveis e estejam em causa
créditos oriundos das relações laborais, por violação do disposto na alínea q)
do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, na versão
introduzida pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro'.
Esta declaração de inconstitucionalidade, assim como diversos
julgamentos de inconstitucionalidade em processos de fiscalização concreta
pronunciados por este Tribunal relativamente à norma do artigo 8º, nº 1, do
Decreto-Lei nº 137/85, de 3 de Maio - norma aqui controvertida e em tudo
idêntica aquela que no acórdão nº 151/94 se considerou - não atingiram a
globalidade do seu programa normativo mas apenas uma certa interpretação do seu
conteúdo estatuidor.
Ora, parece seguro que a decisão recorrida recusou implicitamente e
na sua dimensão global a aplicação daquela norma, com fundamento em
inconstitucionalidade, abrangendo-se assim também o segmento que este Tribunal
considerou conforme à Constituição, isto é, 'na interpretação de que `os
tribunais comuns' referidos no preceito, após a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro,
são os tribunais do trabalho, sempre que estejam em causa créditos oriundos de
relações laborais'.
Deste modo, foi aberta a via do recurso de constitucionalidade
oposto às chamadas decisões de provimento, isto é, as decisões que recusam a
aplicação de normas jurídicas com fundamento em inconstitucionalidade.
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2 - Passando a apreciar o mérito da questão de constitucionalidade,
há-de referir-se liminarmente que o Tribunal Constitucional, com intervenção do
plenário, determinada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 79º-A,
nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de
Setembro, tirou em 29 de Março de 1994, o acórdão nº 163/95, ainda inédito, mas
de que o relator mandou juntar fotocópia ao presente processo, no qual se
decidiu que a norma do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 138/85, de 3 de Maio,
não sofria de inconstitucionalidade 'com o sentido de que a expressão `tribunais
comuns' constante de tal preceito deve, após a Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro e
quando estejam em causa créditos oriundos de relações laborais, entende-se como
correspondendo aos tribunais de trabalho'.
Embora a decisão recorrida haja desaplicado implicitamente a norma
do artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 137/85, há-de reconhecer-se que a questão
de constitucionalidade em apreço deverá receber um tratamento igual ao daquela
outra norma, dada a perfeita identidade que os dois preceitos apresentam.
Deste modo, impõe-se fazer aqui uma aplicação da decisão constante
do acórdão nº 163/95, remetendo-se integralmente para a fundamentação ali
desenvolvida.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo
proceder-se à reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente
julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 20 de Abril de 1995
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Luís Nunes de Almeida