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Processo nº. 590/96 Conselheiro Messias Bento
Acordam na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. J... foi acusado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO de cumplicidade na prática de um crime de fraude na obtenção de subsídios, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 36º., nºs.1, alíneas a), b) e c), 2 e 5, do Decreto-Lei nº. 28/84, de 20 de Janeiro, e 27º. e 30º., estes do Código Penal.
Notificado da acusação, veio ele requerer a instrução, solicitando a inquirição de testemunhas que indicou, a reinquirição de outras que tinham sido já ouvidas durante o inquérito e, bem assim, o seu interrogatório pelo juiz e a sua acareação com outros arguidos .
O juiz indeferiu a reinquirição das testemunhas cujo depoimento havia sido prestado no inquérito; ordenou se deprecasse a inquirição de três das testemunhas indicadas como residentes fora da comarca; conferiu à Polícia Judiciária o encargo de proceder à inquirição de uma outra testemunha; e relegou para momento ulterior a decisão sobre o demais requerido (interrogatório do arguido, sua acareação e inquirição de outras testemunhas).
2. Notificado este despacho ao arguido, veio ele dizer que o mesmo enfermava de nulidades: nulidade de omissão de pronúncia, pois isso
é, em seu entender, o 'adiar a decisão das diligências requeridas'; nulidade insanável, resultante do facto de o juiz ter delegado na Polícia Judiciária a inquirição de uma testemunha.
A propósito do diferimento para momento ulterior da decisão sobre a realização ou não de algumas das diligências requeridas, ponderou o ora reclamante: Todas as diligências (acareações e inquirições) requeridas e não deferidas ou deixadas para ulterior juízo, deviam ter sido imediatamente deferidas, sob pena de se estar a extrair dos artigos 290º. e 291º. do CPP normas ofensivas dos artigos 20º. e 32º. (1º. e 5º.) da CRP e também do nº.2 do artigo 287º. do CPP.
Com referência ao facto de o juiz ter encarregado a Polícia Judiciária da inquirição de uma testemunha, disse o então requerente: O legislador ordinário, ao conferir ao juiz de instrução os poderes no nº.2 do artigo 290º. (delegação de diligências de investigação em órgãos de polícia criminal) e no artigo 291º. do CPP, não deve ter pensado que essas normas passariam a servir de pretexto para esvaziar conteúdo normativo dos artigos
287º. (nº.2) do CPP e, o que é mais grave, para desrespeitar as normas dos artigos 20º. e 32º. (nºs.1 e 5) da CRP.
E, insistindo na ideia, escreveu: A delegação de poderes ordenada no despacho em causa fez interpretação da norma do artigo 290º. demasiado ampla e ofensiva do artigo 32º. da CRP, retirando dignidade à defesa do arguido nesta fase decisiva da formação da culpa.
O juiz julgou improcedente a arguição de nulidades
3. Notificado o despacho que teve por inverificadas as nulidades apontadas, veio o arguido interpor recurso do mesmo para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do nº.1 do artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional, em virtude de nele se terem aplicado 'normas legais
(arts.287º.-290º.-291º. do CPP) com interpretação violadora de normas constitucionais (arts.20º. e 32º., nºs.1, 4 e 5)'.
O juiz, por despacho de 29 de Maio de 1996 (notificado ao recorrente, por carta registada de 31 desse mesmo mês e ano), não admitiu o recurso interposto, fundado em que dele cabia ainda recurso ordinário para a Relação.
4. É contra este despacho (de 29 de Maio de 1996) - que não admitiu o recurso que o arguido quis interpor para este Tribunal - que foi apresentada (em 7 de Junho de 1996) a presente reclamação.
O Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal é de parecer que a reclamação deve ser indeferida, uma vez que - disse - 'o ora reclamante não curou de esgotar os recursos ordinários possíveis, impugnando a decisão proferida em 1ª. instância, pelo juiz de instrução, perante o Tribunal da Relação - já que nenhuma daquelas decisões é subsumível ao preceituado no nº.1 do art. 400º. do CPP, admitindo, consequentemente, recurso ordinário'.
5. Corridos os vistos, cumpre decidir:
II. Fundamentos:
6. A presente reclamação só será de deferir, se o recurso que o ora reclamante quis interpor para este Tribunal for de admitir.
Vejamos, então:
Está em causa um recurso da alínea b) do nº.1 do artigo
70º. da Lei do Tribunal Constitucional - ou seja, um recurso fundado em que o recorrente (aqui reclamante) suscitara, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinadas normas jurídicas e que, não obstante essa acusação de ilegitimidade constitucional, o despacho de que ele pretendeu recorrer aplicara tais normas no julgamento do caso.
O que, então, importa, desde logo, saber é se o ora reclamante suscitou, durante o processo, a inconstitucionalidade dos mencionados artigos 287º., 290º. e 291º. do Código de Processo Penal, e se o fez de um modo processualmente adequado.
A questão de constitucionalidade suscita-se durante o processo, quando tal se faz em termos de o juiz ficar a saber que tem essa questão para decidir - o que exige que a mesma seja colocada de forma clara e perceptível - e a tempo de a poder decidir - o que reclama que seja suscitada antes de ele julgar a matéria a que ela respeita.
Quando o que está em causa é a constitucionalidade de certa interpretação de determinada norma jurídica (como o recorrente parece inculcar, ao dizer ter sido adoptada 'interpretação violadora de normas constitucionais'), a questão de constitucionalidade só se suscita em termos processualmente adequados (é dizer, de forma clara e perceptível), se aquela interpretação for indicada de modo tal que este Tribunal, caso venha a concluir pela ilegitimidade constitucional da mesma, a possa enunciar na decisão em termos de se ficar a saber qual a dimensão ou o sentido com que a norma não pode ser aplicada, designadamente pelo tribunal recorrido ao reformar a decisão impugnada (cf., entre outros, os acórdãos nºs. 269/94, 367/94, 155/95, e 178/75, publicados no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1994, 7 de Setembro de 1994, 20 e 21 de Junho de 1995, respectivamente).
7. Pois bem: aceita-se, sem discutir, que, embora o recorrente só tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidades, ela foi, não obstante, atenta a especificidade do caso, suscitada em tempo. Já é, porém, duvidoso que tal questão tenha sido colocada em termos processualmente adequados, ou seja, de forma clara e perceptível.
De facto, o reclamante, depois de dizer que as acareações e inquirições 'requeridas e não deferidas ou deixadas para ulterior juízo, deviam ter sido imediatamente deferidas', acrescenta: 'sob pena de se estar a extrair dos artigos 290º. e 291º. do CPP normas ofensivas dos artigos
20º. e 32º. (1º e 5º.) da CRP e também do nº.2 do artigo 287º. do CPP'.
Não esclarece ele, porém, que normas ou sentidos (que interpretação) extraiu o juiz desses normativos, que afrontem os mencionados preceitos constitucionais.
Noutro passo, reportando-se ao facto de o juiz ter delegado a inquirição de uma testemunha na Polícia Judiciária, afirmou o reclamante que ele fez 'interpretação da norma do artigo 290º. demasiadamente ampla e ofensiva do artigo 32º., retirando dignidade à defesa do arguido nesta fase decisiva da formação da culpa'.
Continuou, no entanto, a não enunciar o sentido desse artigo 290º. que, em seu entender, o juiz extraiu do preceito e que ofende o direito de defesa.
Quanto ao artigo 287º. do Código de Processo Penal - que, como se viu, o reclamante também indicou como incluído no objecto do recurso - a referência que ele lhe faz é que a interpretação do juiz tem como consequência 'esvaziar conteúdo normativo dos artigos 287º. (nº.2)' e que tal preceito era violado com a interpretação que foi feita dos artigos 290º. e 291º.
Não é, pois, claro que o reclamante tenha suscitado a questão de inconstitucionalidade de forma processualmente adequada. E isso era essencial, já que, só tendo-o feito, o recurso podia ser admitido.
8. Mesmo que deva concluir-se que o reclamante, apesar de tudo, suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa em termos de este Tribunal a dever decidir, o recurso continuará a não poder ser admitido.
É que, tal como o juiz a quo sustentou no despacho reclamado e o Ministério Público sublinha no seu visto, ainda se não achavam esgotados os recursos ordinários que no caso cabiam.
O poder conferido ao juiz de indeferir 'os actos requeridos que não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo' (cf. artigo 291º., nº1, do citado Código) não é, de facto, um poder dependente unicamente da 'livre resolução do tribunal' (cf., neste sentido, o acórdão da Relação do Porto, de 3 de Junho de 1992, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano XVII, tomo III, página 317). E bem se compreende que assim seja, uma vez que a instrução, quando é requerida pelo arguido, visa a 'comprovação judicial da decisão de deduzir acusação' (cf. artigo 286º., nº.2, do Código de Processo Penal).
O despacho do juiz que indefira o pedido de realização de diligências de instrução é, por isso, recorrível para a Relação, pois que se não trata de decisão do tipo das previstas na alínea b) do nº.1 do artigo 400º. do Código de Processo Penal (decisão que ordene 'actos dependentes da livre resolução do tribunal'). (Cf., no entanto, em sentido contrário, o acórdão da Relação de Lisboa, de 5 de Julho de 1995, publicado na Colectânea citada, ano XX, tomo V, página 160).
Recorrível é também o despacho do juiz que, ao abrigo do disposto no artigo 290º., nº.2, do mesmo Código, confira à Polícia Judiciária 'o encargo de proceder a (...) diligências e investigações relativas à instrução'.
De facto, não podendo conferir-se esse encargo aos
órgãos de polícia criminal quando se trate de 'actos que por lei sejam cometidos em exclusivo à competência do juiz' (cf. o mesmo artigo 290º, nº.2), uma tal decisão não está, obviamente, dependente da livre resolução deste.
Ora, não estando abrangida pelo citado artigo 400º., designadamente pela alínea b) do seu nº.1, é essa decisão recorrível, nos termos do artigo 399º. do mesmo Código.
Pois bem: o recurso da alínea b) do nº.1 do artigo 70º. da Lei do Tribunal Constitucional só cabe das decisões que já não admitam recurso ordinário, 'por a lei o não prever ou por já terem sido esgotados todos os que no caso cabiam' (cf. artigo 70º., nº.2 da mesma lei).
No caso, porém, essa exaustão dos recursos ordinários não se verificou.
9. Conclusão:
Não sendo de admitir o recurso de constitucionalidade que o reclamante intentou interpor, é de indeferir a reclamação apresentada contra o respectivo despacho de inadmissão.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, indefere-se a reclamação e condena-se o reclamante nas custas, com taxa de justiça que se fixa em cinco unidades de conta.
Lisboa, 23 de Outubro de 1996 Messias Bento Fernando Alves Correia Guilherme da Fonseca José de Sousa e Brito Bravo Serra Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa