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Proc. nº 497/92
1ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. A, arguido em processo penal militar em instrução, requereu, invocando os artigos 15º e seguintes do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro, que lhe fosse concedido apoio judiciário, mediante nomeação de advogado, com o pagamento de serviços, por não ter possibilidades económicas para pagar honorários a um advogado constituído.
O Juiz de Instrução indeferiu o requerimento com fundamento no artigo 347º, nº 2, do Código de Justiça Militar, segundo o qual, na falta de defensor escolhido, o juiz nomeará um defensor militar, de entre uma escala existente para o efeito.
2. O arguido recorreu deste despacho, concluindo assim as suas alegações:
'1. O pedido não podia ser liminarmente indeferido.
2. O Decreto-Lei nº 387-B/87 aplica-se a todos os tribunais.
3. O despacho recorrido envereda por uma interpretação inconstitucional do art. 347º do CJM.
4. Constitui garantia constitucional do arguido a escolha do defensor.
5. Foram violados os artigos 16º, nº 1; 18º, nº 1 al. c); 26º, nº
2; 48º e 50º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro; o art. 347º do CJM; os artigos 8º, 16º, 20º nº 2 e 32º nº 3 da CRP e os arts. 6º, nº 2, al. c) da Convenção Europeia dos Direito do Homem (Lei nº 65/78, de 13.10).'
3. O arguido fora apresentado em 25 de Outubro ao Juiz de Instrução, na sequência da sua detenção pela Guarda Fiscal, por ter pedido de captura por crime de deserção. O Juiz de Instrução julgou válida a detenção, em face do estatuído nos artigos 27º, nº 3, alínea a), da Constituição, 363º, 364º e 366º do Código de Justiça Militar e 254º a 257º do Código de Processo Penal, tendo renovado tal juízo no despacho que proferiu quando o arguido foi novamente interrogado.
Deste despacho do Juiz de Instrução interpôs o arguido recurso, apresentando as seguintes conclusões nas respectivas alegações:
'1. O art. 428º conjugado com os arts. 431º nº 1 e 434º do CJM estabelece um prazo excessivamente curto para a defesa do arguido pelo que é inconstitucional, por violar os arts. 20º e 342º nº 1 da CRP, o que - como tal - deve ser declarado;
2. Não houve flagrante delito e nem sequer o Juiz fundamentou o despacho (como devia) com os elementos integradores de que entendeu ser flagrante delito;
3. A prisão foi ilegal quer porque não havia flagrante delito, quer porque a ordem de captura não foi emitida por entidade competente para a emitir, quer porque não contém sequer identificação da pessoa que a ordenou, quer porque não foram cumpridas as formalidades legais inerentes à captura, designa-damente exibição ao arguido da ordem de captura, comunicação ao arguido dos motivos da sua prisão e a informação dos direitos que nomomento lhe assistiam;
4. Deve o Tribunal oficiosamente tomar conhecimento das ilegalidades cometidas, ordenando contra os responsáveis o procedimento criminal respectivo;
5. Deve julgar-se ilegal a prisão do arguido, invalidando-se o interrogatório e os actos processuais subsequentes;
6. Deve o Tribunal - se assim entender - conceder ao arguido prazo para juntar os documentos necessários à sua defesa nesta via de recurso ou tomar a iniciativa de os requisitar oficialmente;
7. Foram violados os arts. 20º, 27º nºs 1, 2, 3-a e 4, 32º nº 1 e
208º nº 1 da CRP; arts. 97º nº 4, 255º, 256º, 257º, 258º, 261º todos do CPP e art. 363º do CJM.'
4. Findo o interrogatório do arguido, o Juiz de Instrução mandou abrir vistas, nos termos do nº 3 do artigo 354º do Código de Justiça Militar.
Deste despacho recorreu, igualmente, o arguido, apresentando alegações que concluiu do seguinte modo:
'1. O art. 354º, nº 1 do C.J.M. determina que o Juiz de Instrução aprecie se se verificam ou não 'indícios suficientes de facto punível, de quem foi o seu autor e a sua responsabilidade';
2. Assim, o juiz deverá no despacho indicar quais os indícios que julga suficientes, sem o qual o despacho não está fundamentado;
3. Tal fundamentação é indispensável para a defesa do arguido, pois sem ela, i.e., sem saber quais são os indícios que o juiz entendeu suficientes, está inibido de requerer diligências complementares de prova para sua defesa nos termos do art. 355º do C.J.M.;
4. Está em causa um direito fundamental de defesa do arguido, pelo que a fundamentação do despacho não pode ser dispensada;
5. Foram violados os arts. 354º do C,J,M,, 97º do C.P. Penal e 32º, nº 1 e 208º, nº 1 da C.R.P.'
5. O Supremo Tribunal Militar admitiu estes recursos, subindo em separado e com efeito meramente devolutivo.
6. O primeiro dos recursos, relativo à matéria do apoio judiciário foi indeferido pelo Supremo Tribunal Militar com os seguintes fundamentos:
1º. '... no processo criminal militar existem três tipos de defensor: o advogado, constituído pelo arguido ou réu, o oficial das Forças Armadas, escolhido pelo arguido ou réu e o oficioso, este igualmente um oficial das Forças Armadas permanente nos tribunais militares e integrando uma escala de defensores no Serviço de Polícia Judiciária Militar.
Deste modo, a lei só permite ao juiz de instrução nomear defensor ao arguido um oficial das Forças Armadas integrante da aludida escala, cuja defesa
é feita gratuitamente, pelo que o sistema de patrocínio judiciário previsto no referido Dec.-Lei nº 387-B/87 não tem, na prática, aplicação no foro castrense onde também não há custas ou preparos.'
2º. '... não é possível interpretar o aludido art. 347º como permitindo ao juiz a nomeação de um defensor advogado ou advogado estagiário, pois expressis verbis se afirma nesse preceito que o juiz instrutor nomeará um defensor militar.'
3º. Não são violados pelo artigo 347º do Código de Justiça Militar os artigos 20º e 32º, nºs 1 e 3 da Constituição, na medida em que este artigo não obsta à livre escolha pelo arguido do seu defensor 'dando-lhe inclusive a possibilidade de optar por advogado ou por oficial das Forças Armadas, por si designado'.
4º. Nem existirá sequer diminuição da garantia de defesa do arguido que é a de ter um defensor competente, na medida em que 'Ao determinar que, no caso de o arguido não escolher defensor, por desinteresse, incapacidade económica ou outra razão, teria ele como defensor oficioso um oficial das Forças Armadas escolhido para o efeito, a lei presume que a defesa está, por esta forma, suficientemente assegurada.
Na verdade, cabendo ao foro castrense a apreciação dos crimes essencialmente militares, que mais não são do que infracções disciplinares militares caracterizadas como crimes pela sua gravidade e lesão social, estão os militares em condições para as estudarem, interpretarem as leis que os regem e apresentarem ao juiz ou ao tribunal os factos que possam excluir, derimir ou atenuar a responsabilidade do arguido.
Habituados a lidar, como elemento constitutivo das suas próprias funções, com tudo o que respeita às infracções disciplinares, quer no que toca à interpretação e aplicação da lei, quer no que respeita à personalidade e à motivação dos arguidos, os oficiais das Forças Armadas têm, mesmo que desprovidos de formação jurídica, a experiência prática que lhes permite julgar ou defender um acusado no foro militar.
Por outro lado, sendo a maioria dos juizes dos tribunais militares igualmente oficiais das Forças Armadas, os defensores militares têm a necessária aptidão para apresentarem perante eles a defesa dos acusados.
A prática dos tribunais militares confirma o que acaba de ser exposto e se conhece por experiência pessoal.'
7. O Supremo Tribunal Militar indeferiu o recurso do despacho do Juiz de Instrução, no que respeita à inconstitucionalidade do artigo
428º do Código de Justiça Militar, conjugado com o disposto nos artigos 431º, nº
1 e 434º do mesmo diploma, fundamentando assim a sua decisão:
'... ao longo dos anos de vigência desse artigo nunca alguém, antes do recorrente, se queixou da exiguidade desse prazo, como sobretudo porque o recorrente tem, já neste Supremo Tribunal, vista no processo, podendo alegar e requerer o que tiver por conveniente, incluindo a junção de documentos'.
8. Finalmente, o Supremo Tribunal Militar não tomou conhecimento do recurso do despacho que ordenou as vistas no processo, nos termos do artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar, na medida em que se entendeu que:
'Na verdade, ao proferir o mencionado despacho o juiz não termina a instrução, nem se pronuncia em definitivo sobre ela. Limita-se a chamar o arguido a participar, dando-lhe, por via do seu defensor, conhecimento do processo e a possibilidade de requerer diligências que, igualmente, poderão ser determinadas oficiosamente pelo juiz.
Com ou sem diligências complementares, o magistrado terá, no final da instrução, de se pronunciar sobre toda ela, mantendo ou alterando o seu anterior juízo e agora concretizando-o, imputando ao arguido, se for caso disso, os factos concretos cuja prática por ele entende iniciada.
Não há, assim, com o despacho a que se refere o art, 354º, nº 3 do C.J.M., lesão do interesse do arguido, imposição a este de quaisquer ónus, nem juízo definitivo sobre a sua culpa.
Trata-se, apenas, de um juízo sucinto e provisório, que visa somente autorizar o prosseguimento do processo e não formar uma acusação.
Daí que se considere que tal juízo cabe no poder discricionário do magistrado instrutor, dele não cabendo recurso.
Aliás, tal recurso, a existir, seria contraditório com os termos fixados pela lei à evolução do processo.
De facto, das duas uma: ou o S.T.M. mantinha o despacho e vinculava o juiz de instrução e a autoridade militar quanto ao desfecho da instrução, ou revogava-o e impossibilitava a intervenção da autoridade militar, que deve pronunciar-se, nos termos dos nºs 2 e 4 do citado art. 354º, mas que não poderia discordar do decidido, até porque a eventual discordância só poderia ser resolvida por este Supremo Tribunal.
Assim, conclui-se ser irrecorrível o despacho lavrado ao abrigo do dito art. 354º, pelo que não poderá conhecer-se do recurso dele interposto.'
9. O arguido interpôs recurso deste acórdão do Supremo Tribunal Militar para o Tribunal Constitucional, levantando uma questão prévia e três questões de inconstitucionalidade.
A questão prévia levantada foi a de o recurso dever subir nos autos e não em separado, como foi determinado por despacho do Relator do Supremo Tribunal Militar de 30 de Junho de 1992, mediante a invocação do artigo 78º, nº 3, da Lei nº 28/82 e o Assento de 6 de Janeiro de 1988, '... válido perante o artigo 39º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29/12'.
A primeira questão de inconstitucionalidade reporta-se à alegada violação dos artigos 13º, 20º, nº 2, e 32º, nº 3, da Constituição pelos artigos 6º, 7º e 15º do Decreto-Lei nº 387-B/87 e 347º, nº 2, do Código de Justiça Militar, na interpretação feita pelo Supremo Tribunal Militar. O princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição) será violado por não se reconhecer ao arguido no processo penal militar o patrocínio gratuito concedido a todos por aquele decreto-lei. Invoca-se também a violação do 'princípio constitucional da livre escolha do defensor pelo arguido' (artigo 32º, nº 3, da Constituição) por ser imposto um defensor militar que, estando integrado na hierarquia, não oferece à partida a indispensável garantia de independência. E apela-se ainda à violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição devido à insuficiência da qualificação do defensor militar:
'... a qualificação de oficial das Forças Armadas não pressupõe uma preparação jurídica ... para efectiva actuação do direito de defesa'.
A segunda questão de inconstitucionalidade respeita à pretensa violação do princípio da igualdade, do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa do arguido (artigos 13º, 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição) pelo artigo 428º do Código de Justiça Militar, conjugado com os artigos 431º, nº 1, e 434º do mesmo Código. Diz o recorrente em abono desta conclusão:
'... o Código de Processo Penal atribui ao arguido o prazo de dez dias para recorrer e motivar o recurso (arts. 411º e 412º), sendo que as razões que justificam a aceleração processual são idênticas, o prazo de cinco dias fixado no CJM é discriminatório e viola o art. 13º da CRP.'
A terceira e última questão de inconstitucionalidade refere-se à alegada violação dos artigos 20º, nº 1, 32º, nº 1, e 208º, nº 1, da Constituição pelo artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar, na interpretação dada pelo Supremo Tribunal Militar. A inconstitucionalidade resulta, no entender do recorrente, de o artigo 354º do Código de Justiça Militar, ao determinar que o juiz dê vista ao defensor se entender que existem indícios suficientes, não impor qualquer dever de fundamentação ou de indicação de quais são os indícios suficientes. Ora, segundo o recorrente:
'Há um nexo imediato entre a obrigação de fundamentar as decisões e o direito de defesa, in casu, se o Juiz não fundamentar quais os indícios que considera suficientes, fica precludido ao arguido oferecer em sua defesa diligências complementares de prova. A tese do STM orienta-se por uma visão do processo penal de 'low profile' e pouco ético, na medida em que permite ao juiz que oculte ao arguido o que em seu entender são indícios suficientes, para o impedir de se defender. E, por outro lado, permitir-se ao Juiz, nesta fase processual - crucial para o arguido - o livre arbítrio é subtraí-lo àquele momento de verificação e controlo crítico da sua decisão, o que é a razão de ser da exigência de fundamentação. Ora, quando no momento do art. 354º do CJM o Juiz vai decidir se o processo fica arquivado ou se deve prosseguir, não pode fazê-lo em livre arbítrio e sem fundamentar a opção que tomou. O art. 208º, nº 1 da CRP não concede ao legislador a liberdade de isentar a fundamentação das decisões dos tribunais em qualquer caso, devendo-se entender, conjugando aquele artigo com o art. 20º, nº 1 e 32º, nº 1 da mesma Constituição, que nunca pode ser dispensada de motivação a decisão que contenda com o direito de defesa do arguido e respectivas garantias.'
10. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II Fundamentação
A A questão prévia do regime de subida do recurso
11. Não se reconhece nenhuma utilidade processual em considerar a questão prévia do regime de subida do recurso, no momento em que o Tribunal se considera apto a proferir a decisão final. O artigo 751º, nº 2, do Código de Processo Civil, prevê, apenas, a possibilidade de os tribunais superiores se pronunciarem relativamente a vários aspectos do regime e efeitos dos recursos, faculdade que deverá ser exercida no primeiro despacho proferido pelo relator. Ora, no caso sub judicio, esta fase processual foi ultrapassada e não existe, agora, qualquer necessidade de alterar o regime de subida do recurso. B A questão da inconstitucionalidade dos artigos 6º,
7º e 15º do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro,
e 347º, nº 2, do Código de Justiça Militar,
na interpretação dada pelo Supremo Tribunal Militar
12. A primeira questão de inconstitucionalidade é suscitada por duas vias: pela invocação de uma directa contradição do artigo
347º, no 2, do Código de Justiça Militar com os artigos 13º, 20º, nº 2, e 32º, nº 3, da Constituição e pela identificação de uma interpretação, contrária aos mesmos preceitos constitucionais dos artigos 6º, 7º e 15º do Decreto-Lei nº
387-B/87, de modo a excluir parcialmente do seu âmbito da regulamentação o arguido em processo penal militar.
Através destas duas vias exprimem-se, globalmente, os mesmos argumentos: a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Militar às normas que regulam o caso concreto reduz as garantias de defesa já consagradas na lei ordinária (Decreto-Lei nº 387-B/87); a igualdade é, consequentemente, violada pois retira-se ao arguido em processo penal militar a protecção jurídica mais intensa concedida no processo penal comum.
Porém, objecto de um eventual juízo de inconstitucionalidade é exclusivamente constituído pela norma constante do artigo 347º, nº 2, do Código de Justiça Militar (e não também pelos artigos 6º,
7º e 15º do Decreto-Lei nº 387-B/87) porque só esta norma foi efectivamente aplicada pelo tribunal a quo ao nomear um defensor militar ao arguido. Consequência de tal aplicação foi uma não aplicação do regime geral de patrocínio judiciário, relativamente ao qual a norma aplicada se encontraria numa relação de especialidade.
13. A interpretação das normas em referência pelo Supremo Tribunal Militar é, todavia, diversa da que lhe é imputada no recurso sub judicio.
Segundo o Supremo Tribunal Militar, nenhum direito
(garantia de defesa em processo penal) será violado, na medida em que persistirão o direito de livre escolha do defensor e o direito a um defensor competente no caso de ser designado oficiosamente (atendendo-se então à competência específica dos oficiais das Forças Armadas para a apreciação dos crimes essencialmente militares).
Na interpretação do Supremo Tribunal Militar, consequentemente, não se verifica qualquer discriminação injustificada, visto que a própria natureza da matéria reivindica uma diferente bitola de competência. É isto que, na realidade, resulta da interpretação do pensamento jurídico subjacente à decisão do caso, isto é, da norma concreta em que o Supremo Tribunal Militar fundamentou a decisão de indeferir o recurso interposto pelo arguido.
14. Porém, o plano para que o Supremo Tribunal Militar remete a questão invocada - um juízo de experiência sobre a competência do defensor militar e a sua melhor adequação ao processo penal militar - não revela uma razão decisiva à luz da Constituição. Na verdade, a competência exigida para a cabal realização do direito de defesa situa-se no plano dos conhecimentos jurídicos. O direito infra-constitucional reconhece-o claramente ao determinar que o juiz, em processo penal, nomeará como defensor do arguido que não constitua advogado, de preferência, um advogado ou advogado estagiário (artigo
62º, nº 2, do Código de Processo Penal).
Não pode presumir-se que a experiência dos oficiais das Forças Armadas, só ocasionalmente juristas, é sempre suficiente para garantir o direito de defesa, nem se poderá presumir a menor competência de juristas não militares. A competência afere-se pelos conhecimentos jurídicos e não por outro saber técnico, para o qual se faz normalmente apelo através da prova pericial
(artigo 151º e ss. do Código de Processo Penal).
15. Por outro lado, a matéria dos crimes essencialmente militares não é, indiscutivelmente, a de '... infracções disciplinares militares caracterizadas como crimes pela sua gravidade e lesão social'. Um tal entendimento, podendo confundir ilegitimamente infracção disciplinar e crime não considera que, num Estado de direito democrático, crime é aquele comportamento que viola directamente uma ordem externa da sociedade e nunca, apenas, a ordem interna de uma instituição (assim, muito claramente, Stratenwerth Strafrecht, Allgemeiner Teil, 3ª ed., 1981, p. 31: '... o direito disciplinar não tem a ver com a ordem exterior, mas sim com a integridade e a fiabilidade da pessoa').
Há, deste modo, uma continuidade de natureza entre os crimes essencialmente militares e os crimes comuns, imposta pelo princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18º, nº 2, da Constituição), que constitui emanação do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição). A questão penal num Estado de direito democrático é só uma, apesar das suas diversas especializações.
O patrocínio judiciário, como instituto ao serviço das garantias de defesa, não é confundível com a prova pericial nem pode ser comprimido pela prossecução simultânea de fins disciplinares. Na nomeação de defensor deve privilegiar-se - também no processo penal militar - a posse de conhecimentos jurídicos. E, decisivamente, é condição necessária do exercício das garantias de defesa a independência do defensor do arguido.
16. Do que foi dito resulta que a interpretação do artigo 347º, nº 2, do Código de Justiça Militar feita pelo Supremo Tribunal Militar viola, efectivamente, os artigos 13º, 20º, nº 2, e 32º, nº 1, da Constituição, porque restringe o direito ao patrocínio judiciário e diminui as garantias de defesa do arguido em processo penal militar, discriminando-o injustificadamente em relação ao arguido em processo penal comum.
No que respeita ao artigo 32º da Constituição, é o nº 1 e não decisivamente o nº 3 (como pretende o recorrente) que está em causa. Na verdade, em processo penal militar, o arguido tem o direito de escolher defensor e tal direito não foi questionado na decisão recorrida. Porém, na falta de escolha, constitui garantia de defesa do arguido (artigo 32º, nº 1, da Constituição) ser patrocinado por um defensor que possua, sempre que possível, conhecimentos jurídicos e dê garantias de isenção. Assim, apesar da menção feita pelo recorrido, será o nº 1 do artigo 32º a norma constitucional violada e o Tribunal Constitucional pode julgar inconstitucional a norma aplicada na decisão recorrida com este fundamento, ao abrigo do disposto no artigo 79º-C da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro (aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
C A questão da inconstitucionalidade do artigo 420º, em conjugação com os artigos 431º, nº 1, e 434º, do Código de Justiça Militar
17. O recorrente invoca a violação dos artigos 13º, 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição pelo artigo 428º (em conjugação com os artigos 431º, nº 1, e 434º) do Código de Justiça Militar, na medida em que a previsão, em processo penal militar, de prazos de recurso mais curtos do que os prescritos em processo penal comum se não justifica.
A questão suscitada analisa-se na perspectiva da violação do direito de acesso aos tribunais, da violação das garantias de defesa em processo penal e da violação do princípio da igualdade.
18. O primeiro momento da análise implica que se averigue se, em si, um prazo de cinco dias para interpor e motivar o recurso é limitativo do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal. Ora, a resposta positiva só se imporia se o prazo fosse ostensivamente exíguo e inadequado para a organização da defesa.
Fora deste âmbito, não há, obviamente, um direito a um certo prazo. Se o prazo de cinco dias fosse manifestamente incapaz de permitir a defesa seria inconstitucional. No caso de não ser possível fazer, nem em geral nem na situação normativa concreta, tal afirmação, nenhum juízo de inconstitucionalidade se imporá, na perspectiva estrita do direito de acesso aos tribunais e das garantias de defesa em processo penal.
19. Por outro lado, como é sabido, o prazo de cinco dias era o prazo previsto no artigo 651º do Código de Processo Penal de 1929, mas apenas para a interposição do recurso. O prazo para a apresentação de alegações era então de oito dias, nos termos do artigo 743º do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 649º do Código de Processo Penal de 1929.
O Código de Processo Penal de 1987 modificou este regime, prescrevendo um prazo de dez dias para a interposição e a motivação do recurso (artigos 411º e 412º). Em rigor, não se pode considerar que houve diminuição ou alargamento de prazos. Haverá, tão-só, um regime diferente de articulação entre os prazos de interposição e de fundamentação do recurso. Em qualquer caso, tem existido sempre um sistema que assegura um prazo superior a cinco dias para fundamentar o recurso.
20. Será admissível a consagração de um prazo para interpor e motivar o recurso, em processo penal militar, especial e significativamente mais curto - correspondente a metade - do que o previsto no processo penal comum?
A resposta afirmativa a tal questão implicaria uma cedência do direito de acesso aos tribunais (para impugnar decisões judiciais) e uma restrição das garantias de defesa do arguido (extensivas, por força do nº 1 do artigo 32º da Constituição, a todo o processo penal), em nome dos interesses gerais da instituição militar.
Ora, não se vendo que seja indispensável, em face da especificidade do processo penal militar, que contempla a aplicação de sanções especialmente severas, estabelecer prazos mais curtos do que os previstos no processo penal comum para a interposição e fundamentação de recurso e junção da respectiva prova documental (situação diferente da que foi considerada pelos Acórdãos deste Tribunal nºs 186/92, de 18 de Setembro de 1992 e 266/93, de 10 de Agosto de 1993, publicados, respectivamente, no D.R., II Série, de 18 de Setembro de 1992 e 10 de Agosto de 1993), conclui-se que é inconstitucional o artigo 420º, em conjugação com os artigos 431º, nº 1, e 434º do Código de Justiça Militar, por violar as normas constantes dos artigos 13º, 20º, nº 1, e
32º, nº 1, da Constituição.
D A questão da inconstitucionalidade do artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar
21. O recorrente invoca a violação dos artigos 20º, nº
1, 32º, nº 1, e 208º, nº 1, da Constituição. Esta norma deve ser conjugada com o nº 1 do mesmo artigo.
O nº 1 do artigo 354º do Código de Justiça Militar determina que:
'Dez dias antes de esgotados os prazos fixados nos artigos 353º, nº
1, e 368º, o processo será concluso ao juiz instrutor, que proferirá despacho, no qual apreciará se se verificam ou não indícios suficientes de facto punível, de quem foram os seus agentes e sua responsabilidade ou se existe a necessidade de prorrogação daqueles prazos.'
Por seu turno, o nº 3 do artigo estabelece que:
'Se [o juiz de instrução] concluir que se verificam indícios suficientes de facto punível e de quem foram os seus agentes, ordenará vista ao defensor.'
O requerente sustenta que o despacho que ordena a vista ao defensor terá de indicar os 'indícios suficientes do facto punível' e de ser fundamentado, nunca podendo ser discricionário, em face dos preceitos constitucionais referidos.
22. Contudo, no âmbito do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal Militar o recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade do artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar. O que ele alegou, diferentemente, foi uma violação de normas constitucionais (artigos
32º, nº 1, e 208º, nº 1) e do próprio artigo 354º do Código de Justiça Militar pela decisão que recusou a admissão do recurso (cf. supra, nº 4 do presente Acórdão).
Ora, tendo o recurso sub judicio sido interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a sua admissibilidade depende de o recorrente ter suscitado a questão de constitucionalidade durante o processo. E o objecto da fiscalização concreta da constitucionalidade só pode ser uma norma jurídica, ainda que numa certa interpretação, dimensão ou parte, e não uma decisão judicial em si mesma considerada.
23. No caso em análise, o recorrente não suscitou, pois, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar, razão pela qual o Tribunal Constitucional não pode conhecer tal questão. É certo que o recorrente suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa no recurso para o Tribunal Constitucional, mas fê-lo já intempestivamente ante o disposto nos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82.
Só seria tempestiva a colocação do problema directamente perante o Tribunal Constitucional se o recorrente não houvesse tido oportunidade processual de o fazer em momento prévio (durante o processo), por estar em causa a aplicação imprevisível de uma norma (ou de uma sua interpretação, dimensão ou parte) pelo tribunal a quo. Isto é, apenas se admitiria que o recorrente suscitasse pela primeira vez a questão de inconstitucionalidade perante o Tribunal Constitucional se tal questão respeitasse a uma aplicação normativa com que não podia razoavelmente contar, numa perspectiva ex ante (cf., entre outros, os Acórdãos nºs 136/85, 94/88, 391/89 e 51/90, publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 6º vol., p. 615, B.M.J. nº 372, p. 285 e D.R., II Série, de 4 de Setembro de 1989 e de 12 de Julho de 1990).
O recorrente poderia prever facilmente, no caso em análise, que o Supremo Tribunal Militar interpretaria o artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar por forma a concluir que o despacho que ordena vista ao defensor não carece de fundamentação. Com efeito, tal interpretação já havia sido perfilhada pela decisão do juiz de instrução que o recorrente, justamente, impugnou, não se podendo reputar como surpreendente.
III Decisão
28. Ante o exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do artigo
347º, nº 2, do Código de Justiça Militar, quando interpretada de modo a concluir-se que é obrigatória a nomeação de um advogado -, quando o arguido não escolher defensor;
b) Julgar inconstitucional o artigo 420º, em conjugação com os artigos 431º, nº 1, e 434º, do Código de Justiça Militar, na medida em que concede ao arguido apenas um prazo de cinco dias para interpor e motivar o recurso e juntar a respectiva prova documental;
c) Não conhecer a questão de inconstitucionalidade do artigo 354º, nº 3, do Código de Justiça Militar por ela não ter sido suscitada durante o processo;
d) Conceder provimento parcial ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o que se decidiu em relação às questões de inconstitucionalidade suscitadas.
Lisboa, 17 de Janeiro de 1996 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Diniz José Manuel Cardoso da Costa