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Processo nº 24/95 ACÓRDÃO Nº 368/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A interpôs recurso contencioso de anulação para o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa do despacho, de 22-2-1993, do Presidente da Comissão Instaladora da Administração Regional de Saúde da Guarda que lhe exigiu a reposição da quantia de 484.050$00, que recebera como beneficiária de uma bolsa de estudo, por não ter cumprido a condição de concessão dessa bolsa de prestar serviço àquela Administração Regional por período de tempo correspondente ao da bolsa.
Para o efeito, fundamentou-se, além do mais, na inconstitucionalidade formal, por violação do disposto no artigo 115º, nº 7, da Constituição da República (CR), do Regulamento de Concessão de Bolsas de Estudo para a Frequência do Curso de Enfermagem Geral, aprovado por despacho do Ministro da Saúde de 17 de Julho de 1985, publicado no Diário da República, II Série, nº 228, de 3 de Outubro seguinte, ao abrigo do qual tinha sido concedida a bolsa e se exigia a entrega da referida quantia.
O Tribunal, por sentença de 24 de Outubro de 1994, deu por verificado vício de violação de lei e concedeu provimento ao recurso anulando o acto recorrido.
Recusou o julgador aplicar as normas do citado Regulamento observáveis no caso concreto, ou seja, os artigos 2º, nº 2, e 10º, nº 4 e § único, com fundamento em violação do disposto no nº 7 do artigo 115º da CR, dado se tratar de normas dotadas de eficácia externa que, não obstante, não indicam expressamente a lei que visam regulamentar, indicação a que se encontram sujeitos todos os regulamentos, quer os independentes, quer os subordinados.
2.- O respectivo magistrado do Ministério Público recorreu do assim decidido para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Recebido o recurso, tão-só alegou o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal.
Após delimitar o objecto do recurso à questão da inconstitucionalidade formal das já referidas normas do Regulamento em causa, concluíu do seguinte modo:
'1º- As normas do artigo 2º, nº 2, e 10º, nº 4, e § único do Regulamento de Concessão de Bolsas de Estudo para a Frequência de Curso de Enfermagem Geral, aprovado por despacho de 17 de Julho de 1985 do Ministro da Saúde e publicado no Diário da República, II Série, nº 228, de 3 de Outubro de
1985, são formalmente inconstitucionais, por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição, já que, sendo normas regulamentares externas, o Regulamento não indica a lei ao abrigo do qual foi emitido.
2º-Deve, assim, confirmar-se a decisão recorrida, no que toca ao juízo de inconstitucionalidade de tais normas'.
Correram-se os vistos legais, cumprindo, agora, decidir. II
1.- A delimitação do objecto do recurso
1.1.- Ao recorrer, obrigatoriamente, para o Tribunal Constitucional a Delegada do Procurador da República em serviço no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa aludiu, genericamente, à recusa de aplicação do Regulamento que vem sendo citado, com fundamento na inconstitucionalidade do mesmo considerando o disposto no nº 7 do artigo 115º da CR.
Nas suas alegações, e como já registamos, o magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal circunscreveu o objecto do recurso às normas dos artigos 2º, nº 2, e 10º, nº 4 e § único, do dito Regulamento por serem essas as aplicáveis ao caso vertente.
Esta é, na verdade, a correcta dimensionação do problema: no domínio da fiscalização concreta da constitucionalidade, nomeadamente quando se trate de fundamento constante da alínea a) ou da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, a apreciação da questão está condicionada, consoante os casos, a uma potencialidade de aplicação ou a uma efectiva aplicação da norma (ou normas) em causa.
Escreveu-se, a este propósito, no acórdão nº
319/94, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Agosto de 1994:
'[...] só quando a norma desaplicada, com fundamento em inconstitucionalidade (ou aplicada, não obstante a suspeita de inconstitucionalidade que sobre ela foi lançada), for relevante para a decisão da causa, isto é, for aplicável ao julgamento do caso decidido pelo tribunal recorrido, é que se justifica a intervenção do Tribunal Constitucional, em via de recurso.
Só nesse caso a decisão que este Tribunal vier a proferir sobre a questão de constitucionalidade é susceptível de se projectar utilmente sobre a decisão da questão de fundo, sendo certo que a jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente que o recurso de constitucionalidade desempenha uma função instrumental, no sentido de só dever conhecer-se das questões de constitucionalidade quando a decisão a proferir possa influir utilmente no julgamento da questão de mérito (cf., sobre este tema, por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 169/92 e 257/92, Diário da República, 2ª série, de
18 de Setembro de 1992 e 18 de Junho de 1993).'
Ora, como melhor veremos de seguida, só as normas dos artigos 2º, nº 2, e 10º, nº 4 e § único, do Regulamento foram efectivamente desaplicadas com fundamento em inconstitucionalidade, abrindo, como tal, a via do recurso de constitucionalidade.
1.2.- O Regulamento em referência tem, como objectivo principal, nos termos do seu artigo 1º, 'contribuir para a fixação de enfermeiros na periferia, minorando, tanto quanto possível, as carências ali verificadas', não contendo menção alguma nos termos exigidos pelo artigo 115º, nº 7,da CR.
No seu artigo 2º, após, no nº 1 se definir o universo de destinatários das bolsas de estudo previstas, dispõe-se no nº 2, ora em sindicância:
'Só podem candidatar-se a bolseiros os indivíduos que se comprometam, findo o curso de enfermagem geral, a fixar-se, por um período igual
àquele em que beneficiaram da bolsa de estudo, nas zonas mais carenciadas, a indicar pelas administrações regionais de saúde'.
Os artigos imediatos respeitam, respectivamente, ao limite máximo de bolsas a atribuir (artigo 3º), à competência das administrações regionais de saúde e às escolas de enfermagem nesta matéria (artigo 4º), ao procedimento a que se devem sujeitar os candidatos a bolseiros (artigo 5º), aos critérios e condições a observar para a concessão das bolsas (artigos 6º e 9º), ao quantitativo mensal destas (artigo 7º) e à proibição de cumulação de outras bolsas ou regalias (artigo 8º).
O artigo 10º, por sua vez, enuncia os casos de cessação da atribuição das bolsas, em termos que não interessam ao caso sub judice, com excepção do seu nº 4 e do § único.
Diz-nos o nº 4 deste artigo 10º:
'Findo o curso, e durante o tempo de exercício vinculado ao compromisso assumido, não pode o bolseiro ser exonerado a seu pedido sem que haja exercido as funções de enfermeiro durante o tempo correspondente ao da atribuição da bolsa de estudo'.
E o § único:
'Em casos excepcionais, devidamente comprovados, o Ministério da Saúde, sob proposta da respectiva administração regional de saúde, poderá autorizar o bolseiro a indemnizar pecuniariamente o Ministério da Saúde, através da administração regional de saúde, no valor da bolsa auferida, numa só prestação, em substituição do tempo de exercício a que se comprometeu'.
As normas transcritas, já identificadas na delimitação do objecto do recurso, são, na verdade, as que, na perspectiva da instrumentalidade do recurso, se projectariam utilmente na decisão da questão de fundo, se tivessem sido aplicadas.
Daí, o ter-se dimensionado por elas o objecto do recurso.
1.3.- Com efeito, em face da matéria de facto dada como provada outra não poderá ser a conclusão a formular.
Deu-se como provado, na verdade, que a ora recorrida concorreu à concessão de uma bolsa de estudo ao abrigo do regulamento em causa, tendo declarado dele ter conhecimento, sendo-lhe concedida uma dessas bolsas, por deliberação de 30 de Dezembro de 1991.
Encontrando-se sob regime de aquisição de serviços, previsto naquele regulamento, no Centro de Saúde do Sabugal, a interessada comunicou ao Presidente da Comissão Instaladora da Administração Regional de Saúde da Guarda deixar de exercer funções no centro de saúde citado a partir de
15 de Julho de 1992.
Foi, então, despachado pelo destinatário da comunicação da interessada que deveria esta repor a quantia equivalente ao período de tempo não cumprido, o que veio a ser calculado no montante já indicado, cuja reposição se pretende.
Contestou a recorrida que tivesse tal dever, apelando para o disposto, em leitura conjugada, nos artigos 2º, nº 1, e 43º, nº
1, do Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, que, em seu entender, obrigam a que a 'colocação' prevista no artigo 4º, nº 1, alínea d), do Regulamento tenha de ser feita sob contrato administrativo de provimento, o que não ocorreu.
Por isso se entendeu, na decisão recorrida, serem aplicáveis, no caso concreto, não fora a inconstitucionalidade de que padece o diploma em que se integram, as citadas normas dos artigos 2º, nº 2, e 10º, nº 4 e § único.
2.- A fundamentação.
2.1.- Circunscrito o objecto do recurso de constitucionalidade importa abordar a questão da classificação jurídica do Regulamento de Concessão de Bolsas de Estudo citado.
A este respeito, a sentença recorrida classificou inequivocamente o Regulamento em análise - considerando, nomeadamente, as normas sob sindicância, na medida em que se repercutem, na sua eficácia, nas pessoas a quem se dirigem, no caso, os enfermeiros que tenham obtido a bolsa nelas prevista - como um regulamento com eficácia externa, sujeito, por conseguinte, à norma do artigo 115º, nº 7, da CR, cuja observância levaria à necessidade de indicar expressamente a lei que visa regulamentar ou que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Como o dito Regulamento não contém nenhuma destas menções, recusou-se a sua aplicação, por violar o disposto naquele preceito constitucional.
E, para o efeito, cita-se o acórdão do Tribunal Constitucional nº 319/94, já citado, dele se transcrevendo a seguinte passagem, em abono da tese de sujeição do Regulamento à norma constitucional:
'Abrangidos pela regra bidireccional do nº 7 do artigo 115º da Constituição estão todos os regulamentos, nomeadamente que provenham do Governo
[artigo 202º, alínea c) da CR], dos órgãos de Governo próprios das Regiões Autónomas [artigo 229º, nº 1, alínea d)] e dos órgãos próprios das Autarquias Locais (artigo 242º). Todos estes regulamentos estão ligados a uma lei, que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do texto constitucional, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento.'
2.2.- Está, assim, em causa, a qualificação do Regulamento quanto à sua eficácia, de modo a elencá-lo como regulamento interno ou externo, no pressuposto de que só a estes últimos se há-de observar a exigência constitucional.
Trata-se de matéria sujeita a desenvolvido tratamento doutrinário e jurisprudencial.
No seu estudo 'Teoria dos Regulamentos', publicado na Revista de Direito e de Estudos Sociais, Afonso Rodrigues Queiró, distingue os regulamentos internos dos externos conforme o círculo daqueles a quem se dirigem e que por eles são obrigados, esgotando-se a eficácia jurídica daqueles no âmbito da própria Administração, 'dirigindo-se exclusivamente para o interior da organização administrativa, sem repercussão directa das relações entre esta e os particulares, enquanto os segundos albergam preceitos' que se dirigem não só ao órgão da Administração que os edita ou faz, ou a outros órgãos da Administração, mas também a terceiras pessoas, a particulares ou administrados' que se encontrem em face dela numa relação geral de poder', particulares definidos por características genéricas, colocados numa relação de subordinação geral perante a entidade de que dimanam os regulamentos (cfr. Rev. cit., ano XXVII, pág. 5).
Segundo Diogo Freitas do Amaral, enquanto regulamentos internos são os que produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interesse da esfera jurídica da pessoa colectiva pública cujos órgãos os elaboram, são regulamentos externos aqueles que produzem efeitos jurídicos em relação a outros sujeitos de direito diferentes, isto é, em relação a outras pessoas colectivas públicas ou em relação a particulares (cfr. Direito Administrativo, III, pág. 25).
Para Jorge Manuel Coutinho de Abreu, por sua vez, ao debruçar-se sobre os regulamentos de organização externas, estes, ao estruturarem as unidades organizatórias administrativas e ao disciplinarem o seu funcionamento, prescrevem sobre a competência externa dessas unidades e dispõem sobre direitos e deveres de terceiros, enquanto os regulamentos internos de organização estruturam órgãos internos e serviços administrativos, regulam a sua actividade (sem eficácia exterior, pelo menos directa) ou funcionamento, e determinam as funções dos agentes' (cfr. Sobre os Regulamentos Administrativos e o Princípio da Legalidade, Coimbra, 1987, pág. 99).
Ora, não parece haver dúvidas, à luz dos critérios expostos, estar-se em face de um regulamento externo, de resto, como oportunamente se consignou, publicado no jornal oficial. A finalidade que a Administração se propõe alcançar por meio dele, a definição, genérica e abstracta, do universo dos seus destinatários e a projecção dos actos administrativos praticados pelo órgão competente de pessoa colectiva pública, com directa repercussão na esfera jurídica de terceiros - a concessão de bolsas, a exigência de assunção de uma certo compromisso - caracterizam o Regulamento como externo.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional coadjuva, aliás, este entendimento, como se colhe da leitura, inter alia, dos acórdãos nºs. 160/93, 247/93 e 196/94, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1993, 5 de Junho de 1993 e 19 de Maio de 1994, respectivamente, além do já citado acórdão nº 319/94.
3.- Nos termos do nº 7 do artigo 115º da CR (redacção vinda da 1ª Revisão Constitucional):
'Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'.
Acolhe-se o princípio da primariedade ou da precedência da lei, utilizado pela Constituição para restringir um amplo grau de liberdade de conformação normativa da Administração que, no dizer de Gomes Canotilho, se representa pouco compatível com o Estado de direito democrático
(Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 924).
Afirma-se, assim, e do mesmo passo, o dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos e a precedência da lei sobre toda a actividade regulamentar, a ponto de a inobservância dessa dupla exigência tornar ilegítimos não só os regulamentos carecidos de habilitação legal mas também os que, embora com provável fundamento legal, não individualizam expressamente esse fundamento (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra, 1993, pág. 514).
Este tem sido, igualmente, o entendimento do Tribunal Constitucional que tem fulminado de inconstitucionalidade (formal) os regulamentos que não indiquem, expressamente, a lei que visam regulamentar ou que não definam a competência subjectiva e objectiva para a sua edição (cfr., v.g., o citado acórdão nº 196/94).
No concreto caso, não indica o Regulamento, implicitamente sequer, a lei ao abrigo da qual foi emitido.
Logo, as normas que a decisão recorrida se recusou a aplicar padecem, na verdade, de inconstitucionalidade, por violação do disposto no nº 7 do artigo 115º da CR.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o decidido quanto à matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 6 de Março de 1996
Ass) Alberto Tavares da Costa Vitor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa