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Processo n.º 755/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que são recorrentes A. e marido B., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objeto do recurso com os seguintes fundamentos:
3. O recurso de constitucionalidade foi interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
Nos termos do disposto na alínea b) desse preceito, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
Não se encontrando o Tribunal Constitucional vinculado pela decisão que admitiu o recurso, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 76.º da LTC, entende-se não se poder conhecer do objeto do mesmo, sendo caso de proferir decisão sumária, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A do mesmo diploma.
Compulsados os autos, verifica-se que em lugar algum os recorrentes suscitaram qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de, como dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, este estar obrigado a dela conhecer.
Com efeito, nenhuma das referências feitas pelos expropriados, nas conclusões das alegações do recurso interposto para o tribunal a quo, a inconstitucionalidades ou a violações da Constituição satisfaz o pressuposto processual de suscitação prévia, de modo processualmente adequado, de uma questão de constitucionalidade normativa.
Senão vejamos.
Na Conclusão 3.ª dessa peça processual, o vício de inconstitucionalidade é imputado aos próprios despachos/decisões, não sendo aí suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa.
O mesmo se diga do teor da Conclusão 4.ª, em que, ao afirmar-se que o Tribunal fez mau uso e má interpretação da normação legal e constitucional, não é questionada a conformidade de uma norma com a Constituição.
Já na Conclusão 8.ª os recorrentes questionam, não a decisão judicial propriamente dita, mas a interpretação dada pela decisão recorrida ao artigo 12.º, n.º 1 da Portaria n.º 419-A/2009, de 17 de abril. Simplesmente, ao fazê-lo, não enunciam qual teria sido a interpretação dada a esse preceito cuja conformidade com a Constituição questionam.
Ora, segundo jurisprudência firme do Tribunal Constitucional, “[s]uscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de constitucionalidade determinada para decidir. Isto reclama, obviamente, que – como já se disse – tal se faça de modo claro e percetível, identificando a norma (ou um segmento dela ou uma dada interpretação da mesma) que (no entender de quem suscita essa questão) viola a Constituição; e reclama, bem assim, que se aponte o porquê dessa incompatibilidade com a lei fundamental, indicando, ao menos, a norma ou princípio constitucional infringido” (Ac. n.º 269/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Como se afirma no Ac. n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”.
Tanto basta para que se não possa conhecer do presente recurso de constitucionalidade.
2. Notificados dessa decisão, A. e marido B. vieram reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), com os seguintes fundamentos:
I. Introdução
1. Em 21.9.11, a fls. , foi interposto recurso do Acórdão do TRPorto de 15.9.11, de fls. 405/418, que julgou apenas a apelação improcedente, apesar de o recurso ser simultaneamente de agravo e de apelação, confirmou os despachos recorridos e condenou os recorrentes em custas.
2. Em 2.12.11, a fls. , por decisão singular, o recurso interposto não foi conhecido (art. 78º-A, nº 1 da LTC: “entendeu?se que não pode o Tribunal Constitucional conhecer do objeto do recurso (…)”.
II. A decisão reclamada
3. No Ponto II – Fundamentação, 3, da decisão singular afirma?se que em lugar algum os recorrentes suscitaram qualquer questão de constitucionalidade normativa perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
E vai percorrendo perfunctoriamente as referências feitas pelos expropriados, nas conclusões 3ª, 4ª, 8ª das alegações do recurso interposto do TRPorto, a inconstitucionalidades/violações da Constituição, concluindo, não obstante, que tal suscitação não preenche o respetivo pressuposto processual de modo processualmente adequado (art. 72º/2 da LTC).
III. Pressupostos/pretextos de inutilização do sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade (art. 280º da CRP; e art. 72º, nº 2 da LTC)
4. Trata?se de uma praxis do Venerando Tribunal Constitucional que é desrazoavelmente restritiva e profundamente “inconstitucional”.
É um regime de recursos perversamente limitativo e de verdadeiro e nefasto arbítrio, por se basear numa fantasiosa indeterminação, como se verifica nos citados Acórdãos:
a. Ac. nº 269/94; e
b. Ac. nº 367/94;
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt
5. O art. 72º, nº 2 ds LTC é uma norma de caráter processual manifestamente inconstitucional, limitativa, indeterminada, de puro arbítrio, que colide com os arts. 20º e 204º da Constituição, porque praticamente inutiliza o sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade.
6. Efetivamente, por meio de decisões sumárias (art. 78º?A, nº 1 da LTC) e sob a invocação de pretextos e pressupostos desrazoáveis e incolores, de mera ordem formal, o Venerando Tribunal Constitucional não conhece sequer a questão de fundo e, nesse sentido, bloqueia o regime dos direitos, liberdades e garantias (art. 18º/1 e 2 da CRP).
Veja?se, neste sentido, a Conclusão 83. da 4ª Secção do VII Congresso dos Advogados Portugueses que se realizou recentemente de 10 a 13.11.11 (doc. nº 1).
7. Veja?se que os expropriados/recorrentes nestes autos reclamativos também têm em vista obstar à oposição de julgados e, por isso, vêm informar VV.Exas. que sobre a mesma matéria do presente processo foi prolatado Acórdão pelo TRPorto, no âmbito do Proc. nº 233/10.1TBMGD.P1 – Apelação 1ª, que dá plena razão aos ora reclamantes (doc. nº 2).
E o referido Acórdão também foi proferido recentemente, em 17.10.11, havendo repetição de causa, porque há identidade de partes e de objeto, com o mesmo pedido fundado na mesma causa de pedir, sendo que o Juiz do TJMogadouro é o mesmo!!!
Assim, há decisões contraditórias (doc. nº 2).
Foi apressado e excessivo concluir nas 1ª e 2ª Instâncias que as quantias pagas pelos expropriados, porque inferiores ao considerado correto – 2 UCs em vez de 1 UC – integravam um não pagamento das quantias devidas.
Na verdade, os expropriados pagaram a multa que o próprio Tribunal lhes indicou e a taxa de justiça de igual valor, desse modo obedecendo ao que lhes foi ordenado no despacho e agindo na convicção de o estar a fazer corretamente.
Se algo mais haveria que pagar e tal só se torna efetivamente claro com as subsequentes considerações prejudiciais, deveria então o MMo. Juiz do TJMogadouro esclarecer os expropriados nesse sentido e dar?lhe oportunidade de pagar o restante e não, como veio a fazer, considerar pura e simplesmente não efetuado tal pagamento e ordenar o desentranhamento do recurso da decisão arbitral, pois desse modo, e com evidente surpresa para os expropriados, que a observação do princípio do contraditório (art. 3º, nº 3 do CPC) visa obviar, coartou?lhes o seu direito a ver apreciado aquele recurso, o que é profunda e fortemente restritivo, limitativo e preclusivo e, como tal, desrazoável, proibitivo e inconstitucional.
Há, pois, que considerar que ocorre nos autos um princípio de pagamento das quantias em causa por parte dos expropriados/recorrentes e que, porque se considerou entretanto que tais quantias não estavam corretamente calculadas, há que dar a oportunidade a estes de pagar o restante, seguindo depois o processo os seus ulteriores termos.
Daí que o Venerando TRPorto deveria ter revogado o despacho em crise da 1ª Instância, doutra forma verificou?se uma interpretação inconstitucional do disposto no art. 12º da Portaria nº 419-A/2009, de 17.4, que remete para a Tabela I?A do Regulamento das Custas Judiciais.
E, face a essa interpretação apressada, excessiva, inoportuna, desrazoável e fortemente inconstitucional, o Venerando Tribunal Constitucional, deverá julgar admitir o recurso e conhecê?lo, acordando em julgar procedente o mesmo e revogando o Acórdão recorrido e o anterior despacho do TJMogadouro, que ordenou o desentranhamento do recurso da decisão arbitral, ordenar?se que o mesmo seja substituído por outro que determine aos expropriados para procederem ao pagamento da parte restante das quantias a título de taxa de justiça e de multa que se consideram corretas, seguindo?se depois os ulteriores termos do processo, sem custas pelos expropriados, nos termos das normas do art. 448º, nº 3 do CPC e do art. 22º da CRP, porque verificou?se violação do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do CPC.
Termos em que deve ser revogada a decisão singular em crise e substituída por outra que decida admitir o recurso e conhecer do objeto do mesmo.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. A argumentação apresentada pelos reclamantes desenvolve-se em dois passos essenciais. Através do primeiro (pontos 3,4,5 e 6 da reclamação) pretende-se controverter o fundamento oferecido na decisão sumária reclamada para o não conhecimento do recurso de constitucionalidade. Através do segundo (ponto 7 da reclamação) retoma-se a narrativa dos termos em que se processou, nas instâncias, a discussão relativa à questão infraconstitucional (quanto às decisões, já tomadas em 1ª e 2ª instância, relativas a quantias pagas pelos reclamantes a título de multa e de taxa de justiça.)
Relativamente ao segundo passo da argumentação, deve desde já dizer-se que nele se retomam questões que se situam fora do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional. Com efeito, e nos termos do que dispõe o nº 6 do artigo 280.º da Constituição, “os recursos para o Tribunal Constitucional são restritos à questão da constitucionalidade e da legalidade, conforme os casos”, sendo que o termo “legalidade” deve, de acordo com a leitura conjunta dos artigos 112.º, nº3 e 280.º, nº2 da CRP, ser entendido aqui como respeitante apenas a situações de legalidade qualificada, em que normas lesem o disposto em outras normas, constantes de atos legislativos com valor hierárquico reforçado. Assim, a narrativa que se retoma no ponto 7 da reclamação, incidente como é sobre a estrita questão de direito infraconstitucional, não colocando também nenhum problema de ilegalidade qualificada, contém matérias que se situam aquém do âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional.
Relativamente ao segundo passo da argumentação, deve por seu turno dizer-se que não colhem as razões aduzidas pelos reclamantes.
4. Com efeito, ao controverter o fundamento oferecido pela decisão sumária reclamada para não conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade, vêm os reclamantes afirmar que, sob a invocação de pretextos e pressupostos desrazoáveis, de ordem formal, o Tribunal Constitucional não conhece da questão de fundo de muitos processos que lhe chegam e que, nesse sentido, bloqueia o cumprimento do regime dos direitos, liberdade e garantias.
Partindo dessas observações críticas ao sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade e à jurisprudência do Tribunal Constitucional, os reclamantes prosseguem a sua reclamação procurando demonstrar por que razão, no caso concreto, perante aquilo que consideram ter sido uma “interpretação apressada, excessiva, inoportuna, desrazoável e fortemente inconstitucional”, não deve o Tribunal Constitucional deixar de admitir o recurso de constitucionalidade interposto.
Sucede, porém, que ao Tribunal compete aplicar o modelo de justiça constitucional que a Constituição definiu. Ora, neste modelo, o controlo de constitucionalidade que o Tribunal efetua é, estritamente, um controlo de normas, não lhe cabendo sindicar as decisões judiciais, em si mesmas tomadas. É o que decorre, por um lado, do artigo 277.º da Constituição (“são inconstitucionais as normas…”),e, por outro, do seu artigo 280.º, onde se diz que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões de tribunais que recusem a aplicação de quaisquer normas com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que apliquem normas cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Todo este modelo, restrito portanto ao controlo de normas, não exclui evidentemente que se questione perante o Tribunal Constitucional a conformidade com a Lei Fundamental da interpretação da norma que foi adotada no caso concreto pelo tribunal a quo. No entanto, se tal suceder, sempre será necessário que se não confunda questionamento da dimensão interpretativa [adotada in casu pela decisão que se recorre] com questionamento da decisão ela própria; como sempre será necessário que se suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade dessa dimensão interpretativa, enunciando-a de forma clara. São estes pressupostos de admissão dos recursos de constitucionalidade, decorrentes eles mesmos do texto constitucional, que a Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de novembro) concretiza, nomeadamente no nº 2 do seu artigo 72.º.
5. In casu, e conforme se disse na decisão sumária reclamada, não foi suscitada durante o processo uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, nos termos em que tal é exigido pelo modelo definido pela Constituição e concretizado pela lei ordinária.
Com efeito, e como então ficou claro, os recorrentes, agora reclamantes, limitaram-se, durante o processo, a, por um lado, alegar a inconstitucionalidade da decisão judicial em si mesma considerada; e a, por outro, alegar inconstitucionalidade de uma certa interpretação normativa que não chega nunca a ser enunciada. Tanto basta para que se considere que, no caso, não foi suscitada a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Nada mais acrescentando, quanto a este ponto, a reclamação apresentada, só resta portanto indeferi-la.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.