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Processo n.º 651/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, da norma do artigo 186.º, n.º 2, alínea i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
2. Notificadas as partes para alegar, apenas o recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1. Os efeitos de qualificação de insolvência como culposa, são os constantes do artigo 189.º, n.º 2, do CIRE.
2. As medidas ali previstas têm natureza punitiva, visando o sancionamento de quem contribuiu para a insolvência.
3. No n.º 1 do artigo 186.º, do CIRE (“insolvência culposa”) mencionam-se os comportamentos que levaram à situação de incumprimento, geradora do pedido de declaração de insolvência.
4. Naturalmente que, como é estabelecido naquele preceito, o período temporal a considerar, tem como limite o início do processo de insolvência.
5. Segundo a alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, considera-se culposa a insolvência quando os administradores tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e colaboração até à data de elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º.
6. A conduta referida tem sempre lugar após o início do processo de insolvência.
7. Este comportamento do representante da devedora (sempre pessoa coletiva), acarreta dificuldades ou impossibilita – como será o caso dos autos, do não envio ao administrador da insolvência dos documentos referidos no n.º 1 do artigo 24.º do CIRE – o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência.
8. Desta forma, a norma do artigo 186.º, n.º 2, alínea i), do CIRE, não viola qualquer princípio ou preceito constitucional, designadamente os artigos 2.º e 13.º da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
9. Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
3. Para melhor situarmos a questão, há que previamente estabelecer o seu enquadramento normativo.
Com a declaração de insolvência, abre-se oficiosamente um incidente tendente à obrigatória qualificação do tipo de insolvência, como culposa ou fortuita (artigos 185.º e 189.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e alterado, por último, pelo Decreto-Lei n.º 185/2009, de 12 de agosto).
Os fatores determinantes da qualificação da insolvência como culposa vêm expressos no artigo 186.º, que reza assim:
«Artigo 186.º
Insolvência culposa
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º
3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.ºs 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.»
Como se vê, o legislador utilizou duas técnicas de previsão distintas, fazendo acompanhar uma estatuição genérica, com a natureza de cláusula geral (n.º 1), de regras específicas, atinentes a determinadas formas de comportamento ilícito dos administradores (alíneas a) a i) do n.º 2). Daqui resulta que a insolvência é culposa quando estão cumulativamente preenchidos os elementos da cláusula geral do n.º 1, ou quando, não sendo o devedor uma pessoa singular, os seus administradores tenham praticado algum ou alguns dos atos previstos nas várias alíneas do n.º 2. A violação de deveres que as previsões dessas regras incorporam acarreta sempre a qualificação como culposa (v. o corpo do n.º 2), sem que se admita a possibilidade de justificação ou de prova de factos desculpabilizantes. Para além disso, o n.º 3 do mesmo artigo estabelece uma presunção relativa de culpa grave, exigível, em alternativa ao dolo, nos termos do n.º 1.
A qualificação da insolvência como culposa desencadeia relevantes consequências jurídicas, desvantajosas para as pessoas afetadas pela qualificação (obrigatoriamente identificadas na sentença – alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º). Pondo de lado a inabilitação, dado que a norma que a prevê – a alínea b) deste preceito ? já foi declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo acórdão n.º 173/2009, são elas a inibição para o exercício do comércio, referida na alínea c), e a perda de créditos (ou a obrigação de restituição de bens ou direitos recebidos em pagamento desses créditos) sobre a insolvência ou a massa insolvente (alínea d)), bem como a inaplicabilidade do regime de exoneração do passivo restante (alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º), de que poderia beneficiar o devedor pessoa singular ( a quem pode ser extensível o regime dos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º, nos termos do n.º 4 da mesma disposição).
4. No presente recurso, está em causa a norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º, segundo a qual se considera sempre culposa a insolvência do devedor (que não seja uma pessoa singular), quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º, ou seja, o parecer que o administrador da insolvência apresenta com a proposta de qualificação da insolvência.
Ficou provado, nos presentes autos, que o sócio-gerente da insolvente, aqui recorrido, «não prestou qualquer informação ao administrador para a elaboração do parecer, designadamente, não entregando os documentos contabilísticos a que se refere o artigo 24.º, n.º 1, do CIRE, nem, à data, informou os autos de qualquer dado relevante quanto às causas da insolvência nem para eventual liquidação da massa insolvente».
O acórdão recorrido considerou, com um voto de vencido, que a referida alínea i) configura uma norma inconstitucional, cuja aplicação deve, por isso, ser recusada, com a seguinte argumentação, em síntese:
«I – A alínea i) do n.° 2 do art.°186.° do CIRE, ao estabelecer que o termo temporal ad quem a ter em conta — para efeitos de, juris e de jure, sublinhe-se, se considerar a insolvência como culposa — é, já não, o início do processo de insolvência, como se prevê no n.° 1 do mesmo preceito, mas a data da elaboração do parecer referido no n.° 2 do art.° 188.º, introduz um inaceitável desequilíbrio no sistema, promotor de igualdade de tratamento de situações substancialmente diversas — tanto é culposa a insolvência da pessoa coletiva cujos administradores, nos 3 anos anteriores ao início do processo respetivo, fizeram desaparecer o património desta (alínea a) do n.° 2 do art.° 186.°), como o é a da pessoa coletiva cujos administradores, já no decurso do processo de insolvência e decretada esta, incumpriram, de forma reiterada, o seu dever de colaboração com o administrador [dita alínea i)], algo que, por necessidade lógica, nenhuma influência pode ter tido naquele decretamento.
Uma das vertentes em que se analisa o princípio da igualdade constante do art.° 13.º, n.° 1, da lei fundamental é, segundo Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 4ª edição, fls.416 e segs., maxime, fls. 418, a do dever de tratar de modo diferenciado aquilo que é diferente, opinião esta seguida, sine discrepante, pela nossa jurisprudência, designadamente a constitucional.
II – Por outra via, com tal estatuição, de tão gravosas consequências, como se sabe, para a pessoa ou pessoas afetadas, está a atentar-se contra o princípio do Estado de Direito Democrático, do art.° 2.° da Constituição da República, porquanto se estipula uma consequência demasiado gravosa, a classificação da insolvência como culposa, para faltas cometidas após o início do processo respetivo, e mesmo depois de a insolvência estar decretada (momentos em que, por definição — é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, segundo o art.°3.°, n.°1, do CIRE - o comportamento dos administradores da devedora já nada tem a ver com os factos que levaram à dita impossibilidade de cumprimento), afastando-se assim da proporcionalidade que aquele princípio demanda, e caindo mesmo, porventura, na arbitrariedade que ele também proíbe, segundo o autor citado, ibidem, fls. 265 e segs., maxime, fls 270.»
Em sentido contrário, salienta-se no voto de vencido aposto no acórdão recorrido que não há «qualquer desequilíbrio inaceitável, pois que a sua colaboração [do sócio gerente] é, em regra, essencial à efetiva apreensão dos elementos da contabilidade e dos bens integrantes da massa insolvente, bem como, numa fase inicial, a um eficaz exercício das funções do administrador da insolvência. Na verdade, é de presumir que seja ele quem detém os elementos da contabilidade da empresa e quem melhor conhece o património que a esta ainda resta. Ora, a sua falta de colaboração pode implicar mesmo perda de bens que deveriam ser apreendidos, agravando, assim, a situação de insolvência.»
Na mesma linha se pronuncia, nas respetivas alegações, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional, salientando, além do mais, que as medidas a aplicar quando a insolvência é culposa têm natureza sancionatória e que nesse quadro não há razão para exigir que os comportamentos relevantes para a qualificação da insolvência como culposa sejam necessariamente anteriores ao início do processo de insolvência.
5. Como resulta da transcrição da decisão recorrida acima efetuada, a recusa de aplicação da norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE fundou-se, basicamente, na ideia de que a qualificação da insolvência como culposa só pode ter como referência previsional a violação de deveres de conduta dos administradores a que seja imputável a criação ou agravamento dessa situação, logo, determinadas formas de comportamento anteriores ao início do processo de insolvência. Sujeitar a essa mesma consequência a omissão de deveres que só nascem após a declaração de insolvência – como tal, sem influência causal no seu surgimento ? representaria uma violação do princípio da igualdade e acarretaria a imposição de sanções não condizentes com o princípio da proporcionalidade.
Diga-se, antes de mais, que a afirmada falta de causalidade, em relação à insolvência, do incumprimento dos deveres de apresentação e de colaboração só parcialmente é de verificação certa. Na verdade, se é indiscutível que essa situação nunca pode ser criada por tal conduta, já há que admitir, como oportunamente assinala o voto de vencido, que ela possa ser agravada em resultado desse comportamento. Designadamente, a falta de cumprimento aqui concretamente em juízo, a saber, a não entrega, ao administrador, dos documentos contabilísticos a que se refere o artigo 24.º do CIRE, é de molde a obstaculizar uma identificação correta da situação patrimonial do devedor, em prejuízo da massa insolvente.
Independentemente desta consideração, cumpre advertir que a questão é de valoração jurídica, pelo que não deve ser apreciada num puro plano logicista de apreensão de uma ordem natural das coisas e dos nexos causais que entre elas se estabelecem. Ora, a nosso ver, o acórdão recorrido não está imune a esta precompreensão falseadora, como se revela, com particular evidência, no seguinte trecho:
«Com efeito, aquilo que faz sentido no contexto em apreço é que a culpa seja aferida relativamente a um momento anterior àquele em que se inicia o processo em que ela vai ser apreciada.
Não é coerente que a insolvência, já declarada, possa ser considerada culposa em virtude da atuação do devedor, no processo de insolvência e após tal declaração».
Daqui retira a decisão recorrida a conclusão de que a norma «introduz um inaceitável desequilíbrio no sistema», e isto porque determina que a insolvência seja tida como culposa por força de «algo que, por necessidade lógica [itálico nosso], nenhuma influência pode ter tido naquele decretamento».
Facilmente se reconhece que as previsões das várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º não formam um bloco absolutamente homogéneo, quanto ao sentido tutelador: enquanto que as das alíneas a) a g) se reportam diretamente a atos de gestão que é de presumir terem concorrido materialmente para a situação de insolvência (ou para o seu agravamento), as das alíneas h) e i) têm outro cariz. Incidem sobre formas de incumprimento que produzem ou podem produzir “efeitos de ocultação” sobre a real situação patrimonial e financeira do devedor, com todos os riscos que tal coenvolve, dificultando ainda uma atuação célere e eficaz do administrador da massa insolvente.
Reitera-se, todavia, que “insolvência culposa” é uma categoria normativa, a que corresponde um regime próprio, que genericamente se pode caracterizar como punitivo e dissuasor de práticas violadoras de deveres funcionais dos administradores. Nesta ótica, o que há a ajuizar é se as formas de incumprimento previstas na alínea i) merecem ou não ser sancionadas com as medidas que têm essa qualificação por pressuposto, ou, dito de outro modo, se elas, para esse efeito, podem ser tratadas como insolvência culposa, sem desconformidade com os princípios da igualdade e da proporcionalidade.
É nesta perspetiva que analisaremos a questão.
6. Ressalta da previsão da alínea i), como imediata nota distintiva das restantes previsões de factos igualmente abrangidos pelo regime da insolvência culposa, o diferente período temporal que baliza os incumprimentos a considerar. Todos os outros factos têm como termo ad quem o início do processo de insolvência, ao passo que os da alínea i) são necessariamente posteriores a essa data, podendo verificar-se “até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º”. Os deveres de apresentação e de colaboração recaem, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 83.º do CIRE, sobre o devedor insolvente, pelo que nascem e devem ser cumpridos no decurso do processo de insolvência.
Mas isso não implica uma diversidade de natureza tal que leve a rejeitar, por imperativo do princípio da igualdade, a uniformidade de tratamento. Do ponto de vista valorativamente relevante, e no plano funcional dos interesses a tutelar, não há diferença substancial entre prevenir atos geradores da situação de insolvência, caracterizadamente censuráveis e ilícitos (e puni-los, uma vez praticados) e, após essa situação estar criada, prevenir e punir omissões que, para além de dificultarem ou obstaculizarem o regular andamento do processo, podem conduzir a um agravamento da insolvência.
Ademais – há que frisá-lo – a falta aos deveres de apresentação e de colaboração pode não resultar de um simples alheamento do processo, de desinteresse ou negligência, mas antes da intenção deliberada de não concorrer para o conhecimento de factos anteriores ao início do processo de insolvência que levariam à qualificação da insolvência como culposa, à luz de qualquer das restantes previsões. Como salienta o Ministério Público, um comportamento não colaborante do obrigado dificulta ou impossibilita “o conhecimento de factos relevantes e essenciais para a qualificação da insolvência”, pelo que, a não ser sancionado por uma norma como a da alínea i), poderia impedir a justificada aplicação do regime que cabe à insolvência culposa. Nessa medida, essa norma apresenta uma relevante conexão de sentido com as restantes do n.º 2 do artigo 186.º, posicionando-se, se assim se pode dizer, como “norma de salvaguarda” da efetividade aplicativa daquele regime – o que justificará a sua integração sistemática no preceito.
Não se descortina, pois, qualquer violação do princípio da igualdade.
7. O mesmo se diga quanto ao princípio da proporcionalidade.
Outras formas de prevenção e punição se poderiam, decerto, conceber. Mas, dentro da opção de base do legislador, não arbitrária ou irrazoável, de obrigar a uma qualificação da insolvência como fortuita ou culposa, para fazer decorrer desta última efeitos sancionatórios, não se visiona, pelo menos com a evidência exigível, que a solução legislativa impugnada não apresente suficientes credenciais de observância das exigências de adequação, indispensabilidade e respeito pela justa medida, contidas no princípio da proporcionalidade.
As consequências associadas à insolvência culposa, e muito em particular a inibição para o exercício do comércio durante um certo período, mostram-se perfeitamente ajustados à gravidade e natureza das faltas cometidas. Tendo-se gerado uma situação de insolvência, já de si lesiva dos interesses creditórios e do comércio jurídico, em geral, é elementar dever dos administradores adotarem uma conduta leal e cooperante, por padrões de exigência qualificada, por forma a darem a sua contribuição (quase sempre indispensável, na fase inicial) para o normal desenrolar dos processos de resolução normativamente previstos e para minorar ou não agravar a afetação daqueles interesses. O incumprimento desse dever expõe-se a um juízo de intenso desvalor, tanto mais que a norma só é aplicável em caso de reiteração dessa conduta, sendo que a recusa de prestação de informações ou de colaboração que não revista forma reiterada “é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa”, nos termos do artigo 83.º, n.º 3, do CIRE.
Ao adotar uma conduta reticente e obstativa do acesso a dados relevantes, o administrador, além do mais, descredibiliza-se para o exercício da função, pois pratica actos que desmerecem da confiança que o exercício do comércio postula. Uma sanção de natureza pessoal, como a inibição cominada no artigo 189.º, n.º 2, alínea c), incidente no próprio âmbito profissional em que se deu a falta de cumprimento, de caráter, para mais, temporário e de duração a fixar concretamente pelo juiz, dentro de uma moldura suficientemente ampla, não se revela desproporcionada, como reação normativa ao incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e de colaboração, atentos o seu relevo e significado no contexto do processo de insolvência.
A sanção prevista na alínea d) do mencionado preceito reveste direta natureza patrimonial. Mas é de aplicação eventual, pois pressupõe a ocorrência das circunstâncias que lhe dão objeto. Verificadas essas circunstâncias, é de lhe atribuir, porém, grande eficácia preventiva, representando uma forte e adequada instigação ao cumprimento, sendo certo que, como sanção pecuniária civil, corresponde apropriadamente à natureza dos interesses potencialmente afetados (pelo menos em termos de perigo abstrato).
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
Não julgar inconstitucional a norma da alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
Consequentemente, ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.