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Processo nº 190/94
2ª Secção
Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. A. e B., na qualidade de condóminos do prédio sito na
Rua -----------, nºs. ----------, em -------------, intentaram na Comarca de
-----------, acção declarativa com processo ordinário, contra C., mulher e filha
e D. e mulher, alegando, no essencial:
- que os três primeiros réus, quando proprietários do prédio referido,
constituiram-no em propriedade horizontal, tendo-o, de seguida, vendido em
fracções autónomas;
- que, em conformidade com o projecto camarário respectivo, o prédio se
destinava a habitação, excepto o R/C, constituído por três lojas e um fogo para
a porteira;
- e que, na escritura de constituição da propriedade horizontal, os três
primeiros réus passaram o fogo correspondente à porteira a fracção autónoma
que, depois, transmitiram aos restantes réus.
Concluem os autores pedindo que seja declarada nula a
referida escritura, na parte em que considera o fogo destinado à porteira como
fracção autónoma, bem como a transmissão da propriedade do mesmo fogo para os
quarto e quinto réus, com a sua consequente entrega ao condomínio.
2. No despacho saneador (sentença) foi a acção julgada
procedente. Aí, delimitada a 'questão de direito' a resolver ( 'a nulidade - ou
não - do título constitutivo da propriedade horizontal quando este viola ou
infringe o projecto aprovado pela C.M.' - fls. 105), consignou-se ter o problema
sido solucionado pelo Assento, do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 10/5/89,
aplicando-se a doutrina deste à situação dos autos: 'sabido' - conforme se
consignou - 'que os assentos funcionam e existem como leis interpretativas, pelo
que a sua doutrina se aplica a casos ocorridos anteriormente e até a casos
pendentes em juízo' (fls. 106).
3. Inconformados apelaram, para o Tribunal da Relação de
Lisboa, os três primeiros réus, invocando, entre outros fundamentos, a
inconstitucionalidade formal dos Assentos (violação do artigo 115º, nº 5 da
Constituição, pelo artigo 2º do Código Civil) expressa na conclusão de que:
'Toda a decisão judicial que se fundamente em princípios fixados por Assento é
nula' (fls. 114).
O Tribunal da Relação negou provimento à
apelação, confirmando a decisão da 1ª. instância. Para o efeito, rejeitou o
argumento da inconstitucionalidade dos Assentos, consignando que: 'a doutrina
fixada no referido Assento de 10/ /5/89 tem de ser respeitada no caso sub
judice' (fls. 14o v).
4. De novo inconformados interpuseram os mesmos réus
recurso de revista para o supremo Tribunal de Justiça, renovando junto deste a
invocação da inconstitucionalidade dos Assentos. O Supremo Tribunal viria a
negar a revista e, aludindo a esta questão, após referir o Acórdão do Tribunal
Constitucional de 7 de Dezembro de 1993, a esse respeito, consignou:
' ... tanto a 1ª. instância como, depois, a Relação, deviam obediência ao
estatuído no falado assento deste Supremo Tribunal de 10/5/89. '
Mais adiante, referindo-se expressamente à questão
suscitada no processo (nulidade do título constitutivo da propriedade
horizontal), escreveu-se no mesmo aresto:
'a... controvérsia nasce do não acatamento por parte dos recorrentes da doutrina
contida no referido assento de 10-5-89. É que para eles não tem significado na
constituição de um prédio em propriedade horizontal, a aprovação pela Câmara
Municipal do respectivo projecto. Consistindo aquela constituição num negócio
jurídico é assunto que fica na inteira disponibilidade das partes. Assim, não
tem grande significado passar uma parte considerada comum para fracção
autónoma, à revelia do aprovado pela Câmara Municipal, até porque isso apenas
pode implicar uma mera sanção de carácter pecuniário.
Conclui-se, portanto, que para os recorrentes não são normas de interesse e
ordem pública as contidas no Regulamento Geral das Edificações Urbanas,
nomeadamente as contidas nos arts. 3º, 6º, 8º e 165º E parece esquecer que a
violação daquele Regulamento pode levar não só a tal sanção pecuniária, mas
também, como frizam os recorridos, à demolição, embargo administrativo ou
despejo sumário. Ora foi por causa de violação desse tipo que foi proferido o
assento de 10-5-89 que, como lhe foi notado no acórdão recorrido, 'resolve
explícita e claramente o problema que constitui o objecto do recurso'.
Dispõe o nº 1 do art. 1416º do Cód. Civil que a falta de requisitos legalmente
exigidos importa a nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal. O
assento veio precisamente esclarecer que entre os requisitos legalmente
exigidos está o respeito pelo projecto aprovado pela Câmara Municipal e que ao
contrariá-lo, dando-se destino ou utilização diferente do nele previsto, no
tocante às partes comuns ou a fracção autónoma, há lugar a nulidade parcial. O
que, pelos interesses em jogo, não pode ser superado pela simples vontade das
partes.
Deste modo, há nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal em
causa, na parte em que, contrariando o que foi aprovado pela Câmara Municipal os
recorrentes passaram o espaço comum destinado a porteiro não residente, para
fracção autónoma que, depois, venderam aos 2ºs RR. É o que resulta da lei e do
assento de 10-5-89.'
5. Desta Acórdão recorrem os referidos réus para o
Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1 alínea b) da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (LTC), indicando não se conformarem 'com o
facto de, ao caso em apreço, ter sido aplicada a doutrina resultante do Assento
do STJ, de 10/5/89', e, particularizando (quando instados pelo Supremo Tribunal
a dar cumprimento ao nº 2, do artigo 75º do LTC) terem suscitado 'a
inconstitucionalidade da figura jurídica dos Assentos', quer na alegação do
recurso de apelação, quer no de revista, rematando com a seguinte conclusão:
'..., o douto Acórdão recorrido, ao basear a sua decisão no citado Assento,
aplicou norma inconstitucional, com ofensa do preceituado nos artºs. 114º,
115º, nº5, 207º e 277º da Constituição.' (fls.203)
Foi elaborada exposição, nos termos do artigo 7º-A da
LTC, no sentido da improcedência do recurso, relativamente à qual se
pronunciaram (no sentido concordante) os recorridos, nada tendo dito os
recorrentes.
Com dispensa de vistos, cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
6. Está em causa no presente recurso a questão
habitualmente referida como 'inconstitucionalidade dos assentos', entendendo-se
esta como a da desconformidade do artigo 2º do Código Civil - que permite aos
tribunais fixar, por meio de assentos doutrina com força obrigatória geral - ao
teor do artigo 115º, nº 5 da Constituição - que proíbe a criação de categorias
de actos legislativos diversas das elencadas no nº 1 da mesma disposição, ou
atribuir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa,
interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus
preceitos.
Fora do âmbito do presente recurso está, assim,
conforme já se referiu na exposição, a questão que os recorrentes ao longo do
processo identificaram como 'efeitos do assento'. Esta (funcionamento do assento
como 'lei interpretativa' e possibilidade de ter 'efeitos retroactivos'), além
de pressupor a resposta às interrogações sobre a constitucionalidade dos
assentos, não se configura, nem foi ao longo do processo configurada, como
questão de constitucionalidade.
Sobre o problema da conformidade do instituto dos
assentos ao texto constitucional, se pronunciou o Plenário deste Tribunal
através do Acórdão nº 810/93, publicado no Diário da República, II série, de 2
de Março de 1994. Após esta decisão, dois outros acórdãos da 1ª Secção
(Acórdãos nºs 407 e 410//94), reafirmaram a decisão do Plenário.
7. No Acórdão nº 810/93 julgou, este Tribunal,
'inconstitucional a norma do artigo 2º do Código Civil na parte em que atribui
aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por
violação do disposto no artigo 115º, nº 5 da Constituição'.
O exacto significado desta declaração obtemo-lo com
recurso às seguintes passagens do Acórdão:
'..., tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos
como o seu carácter de imutabilidade não se apresentam como atributos anómalos
relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939, mas também se
configuram como normas de caracterização inadequada de um instituto que visa a
unidade do direito e a segurança da ordem jurídica.
...... desprovida desta caracterização, isto é, sem força vinculativa geral e
sujeita, em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio
tribunal dela emitente, aquela doutrina perderá a natureza de acto normativo de
interpretação autêntica da lei.
Desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os
tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados àquele que o tenha
emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral,
deixa de dispor de força obrigatória geral o que representa, no entendimento de
Marcelo Caetano, a perda automática do valor que é próprio dos actos
legislativos ...
......desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso
interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade
dos assentos - e não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre os pressupostos e
a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse
objectivo - a eficácia interna dos assentos, restringindo-se ao plano
específico dos tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de que o
Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respectiva hierarquia,
perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia
jurisdicional a revestir a natureza de simples «jurisprudência qualificada».
...assim sendo, a norma do artigo 2º do Código Civil, entendida como
significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos, «doutrina
obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente,
susceptível de por este vir a ser alterada», deixará de conflituar com a norma
do artigo 115º, nº 5, da Constituição'.
8. Na situação em apreço, tanto o Tribunal de 1ª.
instância como o Tribunal da Relação, aplicaram directamente o Assento de
10/5/89 (publicado no BMJ 387, 79 ), decidindo, em função dele, ser a escritura
de constituição da propriedade horizontal em causa nula, ao considerar a casa da
porteira como fracção autónoma.
Porém, tal aplicação da doutrina do Assento, vinda, como
nesse caso vem, de 'tribunais subordinados hierarquicamente ao tribunal
emitente', não consubstancia, do ponto de vista do Tribunal constitucional
expresso no Acórdão 810/93, uma aplicação do artigo 2º, do Código Civil
violadora do artigo 115º da Constituição.
A questão suscitada pelos recorrentes, coloca-se apenas
relativamente ao Supremo Tribunal de Justiça.
9. Importa analisar a posição assumida no processo, pelo
STJ, relativamente ao assento em causa.
Confrontaram-se nos autos duas interpretações possíveis
do nº 1 do artigo 1416 do Código Civil. Uma delas - a perfilhada pelos réus
aqui recorrentes - defende que a nulidade do título constitutivo da propriedade
horizontal apenas resultaria da falta dos requisitos do artigo 1415º do Código
civil (é a interpretação subjacente ao Acórdão do STJ de 21/12/82, publicado
no, BMJ 322, 333, precisamente uma das decisões postas em confronto no Assento
de 10/5/89). A outra interpretação - que é a contida no Assento e foi perfilhada
pelos autores da acção - entende que o título é parcialmente nulo, ao dar
destino diverso do constante do projecto aprovado pela Câmara, a parte comum ou
a fracção autónoma, ou seja, ao violar o Regulamento Geral das Edificações
Urbanas ( o confronto das duas posições pode ser visto no parecer do Mº Pº
formulado a respeito do Assento em causa, publicado no BMJ 387, 69 e na obra: Da
Propriedade Horizontal, Rodrigues Pardal/Dias da Fonseca, 6ª. ed., Coimbra
1993, págs. 107 e segs. e 157 e segs.).
Foi este problema concreto que o Acórdão proferido pelo
STJ nos presentes autos solucionou, optando, pelo mesmo entendimento do Assento
de 10/5/89, que citou sempre, apenas, no sentido de confirmar a sua doutrina.
10. A mera coincidência quanto à interpretação de uma
determinada norma, entre uma decisão do STJ e um assento, não representa, por
si, uma aplicação inconstitucional do artigo 2º do Código Civil (em rigor pode
não traduzir, até qualquer aplicação do artigo 2º do Código Civil.
Significa isto que, onde a decisão do Supremo Tribunal
se traduza, não numa aplicação formal do assento, mas num processo
interpretativo autónomo, coincidente ou não com aquele, a 'força obrigatória
geral' do assento desaparece, ultrapassando-se o carácter 'rígido e imutável'
que prendendo o tribunal emitente a um determinado entendimento fixado no
passado, 'contraria manifestamente o sentido mais autêntico da função
jurisprudencial' e confere aos assentos, em violação do disposto no artigo 115º,
nº 5 da Constituição, o 'valor que é próprio dos actos legislativos' (Acórdão nº
810/93).
11. Resta, assim, fixar as consequências da situação no
presente processo.
A este propósito, e tendo presente a solução proposta na
exposição, há que ponderar que, questionando os recorrentes no processo a
legitimidade constitucional de 'toda a decisão judicial que se fundamente em
princípios fixados por assentos' (fls. 114), o Tribunal do entender como
correcta a vinculação ao assento da 1ª Instância e da relação de alguma forma
profere uma declaração de improcedência da tese dos recorrentes quanto à questão
de fundo.
Porém, no que respeita à decisão do STJ (à decisão
recorrida), o entendimento deste Tribunal é o de que não tendo ocorrido
vinculação à doutrina do assento, não existe em rigor uma aplicação do artigo 2º
do Código Civil por parte do Supremo Tribunal, o que na prática impede o
Tribunal Constitucional de conhecer do recurso.
III
DECISÃO
12. Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do
recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em três unidades
de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Março de 1995
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida