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Procº nº 166/92.
2ª Secção.
Relator:- BRAVO SERRA
(Consº GUILHERME DA FONSECA)
I
1. A. e mulher, B., intentaram, em 25 de Março de 1985 -
consequentemente no domínio da Lei nº 76/77, de 29 de Setembro, com as
alterações introduzidas pela Lei nº 76/79, de 3 de Dezembro - , no Tribunal de
comarca do Funchal e contra C. e mulher, D., acção, que veio a seguir a forma de
processo sumário, visando denunciar o contrato de arrendamento entre eles
celebrado em 2 de Março de 1974 e que incidiu sobre um prédio rústico e urbano
sito em -----------------, freguesia de -----------------, concelho do Funchal.
Por sentença de 12 de Fevereiro de 1990 foi essa acção
julgada improcedente, essencialmente com base na circunstância de os Autores -
muito embora tivessem provado que pretendiam explorar directamente o prédio -
não terem logrado demonstrar que a sua situação económica era 'inferior à do
arrendatário e seu agregado familiar ou' que os rendimentos daqueles fossem
'superiores a uma vez e meia o salário mínimo nacional'.
Inconformados com essa sentença, apelaram os Autores
para o Tribunal da Relação de Lisboa, defendendo na alegação que produziram,
inter alia, que, tendo em conta a data em que foi proferida a decisão e o
disposto no artº 36º do Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, deveriam ter
sido observadas as prescrições, quer de natureza substantiva, quer adjectiva,
constantes deste diploma, razão pela qual - não podendo o arrendatário, nos
termos do nº 1 do seu artº 20º, opor-se à denúncia quando o senhorio pretenda
denunciar o contrato de arrendamento para passar, ele próprio, a explorar
directamente o prédio objecto desse contrato - deveriam os Réus ter sido
condenados no peticionado despejo.
Por seu turno, os Réus, na alegação oferecida e no que
ora releva, sustentaram que o normativo ínsito no mencionado artº 36º era
inconstitucional.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 7 de
Fevereiro de 1991 e no que agora importa, revogou a sentença proferida em 1ª
instância, decretando o solicitado despejo, o que fez, em síntese, por entender
que, in casu, eram aplicáveis as disposições do D.L. nº 385/88, aí se incluindo
o seu artº 36º, que, na sua óptica, não enfermava de inconstitucionalidade.
Recorreram os Réus para o Supremo Tribunal de Justiça
que, por acórdão de 11 de Fevereiro de 1992, negou a revista, o que motivou que
aqueles viessem a interpor recurso para o Tribunal Constitucional, dizendo no
requerimento em que manifestaram essa intenção que pretendiam ver apreciada a
norma do artº 36º do Decreto-Lei nº 386/88.
2. Os ora recorrentes remataram a alegação aqui
apresentada, na qual propugnam por ser dado provimento ao recurso, com o
seguinte quadro conclusivo:
'1 - O artigo 36 do Decreto lei nº 385/88, de 25/10, é norma
inconstitucional por violar o principio constitucional da não retroactividade
das leis, com a aplicação especifica nos nºs 2 e 3 do artº 18º da lei
Fundamental, pelo que não pode o Tribunal aplicá-lo, conforme do comando
expresso do artigo 207 do mesmo diploma.
2 - Também o mesmo artigo 12 do Código Civil, que é um texto
materialmente constitucional.
3 - A existência de preceitos legais materialmente constitucional, em
outras leis que não a Constituição da Republica, é principio de direito
constitucional, ensinado pelos mestres respectivos.
4 - A garantia contra a posssibilidade de denuncia pelo senhorio sem
oposição é um efeito do conteúdo da lei antiga, já adquirido pelo arrendatário,
pelo que o artigo 20 do citado Decreto-Lei, não dispondo directamente sobre o
conteúdo da relação jurídica, não se aplica retroactivamente.
5 - Considerações gerais de ordem jurídica (violações de espectativas
e perigo de instabilidade da vida e comércio jurídicos) e morais (como as das
situações concretas das partes) não permitem aplicação retroactiva da lei Nova.
A validade dessas considerações jurídicas e morais, para o Tribunal
julgar inconstitucional a norma, para o caso concreto, assenta, também em que
essa decisão não é definitiva, nem geral.
6 - O preceito do Decreto-Lei nº 385/88, de 25/10 é restritivo de
direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.
7 - O acórdão recorrido violou os artigos 18, nºs 2 e 3 e 207 da
Constituição da Republica e o artigo 12 do Código Civil, norma materialmente
inconstitucional.
8 - A aplicação da Lei Nova aos contratos vigentes em matéria de
arrendamento rural 'viola de forma intolerável a segurança jurídica e a
confiança que as pessoas têm direito de depositar na ordem jurídica que as
rege''.
De seu lado, os recorridos concluíram que 'nem o artigo
36º. do Decreto-Lei nº. 385/88, de 25 de Outubro, está ferido de
inconstitucionalidade material, nem o artigo 12º. do Código Civil é um 'texto
materialmente constitucional'...'.
II
1. Como resulta do antecedente relato, a questão de
inconstitucionalidade reporta-se ao preceito do artº 36º do Decreto-Lei nº
385/88, que dispõe:-
Artigo 36.º
Âmbito de aplicação da presente lei
1 - Aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente lei
aplica-se o regime nela prescrito.
2- Ficam totalmente isentas de custas as acções instauradas ao abrigo de normas
anteriores quando as partes desistam das mesmas ou se verifique a inutilidade
superveniente da lide.
3 - O novo regime previsto no artigo 3.º da presente lei apenas se aplicará aos
contratos existentes à data da sua entrada em vigor a partir de 1 de Julho de
1989.
4- O presente diploma não se aplica aos processos pendentes em juízo que à data
da sua entrada em vigor já tenham sido objecto de decisão em 1.ª instância,
ainda que não transitada em julgado, salvo quanto a normas de natureza
interpretativa.
5 - Os contratos de arrendamento já renovados à data da entrada em vigor da
presente lei não podem ser objecto de denúncia por parte do senhorio, para
efeitos de exploração directa, nos primeiros quatro anos a contar do início da
última renovação.
6 - Até ao termo do prazo, em curso, dos contratos validamente celebrados ao
abrigo do artigo 36.º da Lei n.º 76/77, de 29 de Setembro, não se aplica o
disposto no artigo 13.º do presente diploma.
Das normas inseridas no transcrito preceito releva,
quanto ao presente recurso de constitucionalidade, aquela que se contem no nº 1,
conjugada com o nº 4, que foi, justamente, a que constituiu suporte decisório
dos arestos lavrados na Relação de Lisboa e no Supremo Tribunal de Justiça, no
ponto em que aí se concluiu pela aplicabilidade ao caso do D.L. nº 385/88,
visto que à data da entrada em vigor deste diploma ainda não tinha sido
proferida sentença na 1ª instância.
Significa isto que o objecto deste recurso é constituído
pela dita norma, na dimensão em que consagra que aos contratos de arrendamento
rural celebrados no âmbito de ordenamento jurídico anterior ao D.L. nº 385/88,
havendo processo pendente visando o despejo do arrendatário e em que ainda não
foi proferida sentença em 1ª instância, é aplicável o regime constante deste
diploma.
Em consequência do dispositivo contido em tal norma,
haver-se-ão de considerar como aplicáveis ao contrato de arrendamento de que
curam os presentes autos (e não interessará aqui saber - pois que isso se não
insere nos poderes cognitivos deste Tribunal - se a vertente situação estaria ou
não contemplada pelo nº 5 do artº 36º do D.L. nº 385/88) as prescrições do seu
artº 20º, de entre estas avultando a do nº 1, que comanda que, '[q]uando o
senhorio pretenda denunciar o contrato para, no termo do prazo ou da renovação,
passar ele próprio ou filhos que satisfaçam as condições de jovem agricultor
estipuladas na lei a explorar directamente o prédio ou prédios arrendados, o
arrendatário não pode opor-se à denúncia'.
2. No domínio da Lei nº 76/77, com as alterações
introduzidas pela Lei nº 76/79, desejando o senhorio denunciar o contrato de
arrendamento [para o que deveria proceder de acordo com o estipulado na alínea
b) do nº 1 do artº 17º], e opondo-se o arrendatário a esse desiderato (tendo
então de actuar de harmonia com o disposto no nº 2 do artº 18º), não se
verificando as situações consideradas nos artigos 18º-A e 18º-B, poderia o
primeiro obter o despejo por intermédio de propositura de acção na qual, por um
lado, se não provasse que o despejo punha em risco a subsistência económica do
arrendatário e do seu agregado familiar ou que, tendo este habitação no prédio
arrendado, corresse sério risco de não conseguir outra habitação e, por outro,
se demonstrasse que ele, senhorio, pretendia a terra para o efeito de a
explorar directamente e que não tinha uma situação inferior à do arrendatário e
respectivo agregado familiar, ou que a soma de todos os seus rendimentos não era
superior a uma vez e meia o salário mínimo nacional (cfr. artº 19º).
São, pois, acentuadas as dissemelhanças quanto à
denúncia do contrato de arrendamento rural entre os regimes consagrados na Lei
nº 77/76 (com as referidas alterações) e no D.L. nº 385/88, perspectivando-se
como a mais saliente precisamente aquela segundo a qual não é permitido por este
último diploma que o arrendatário se oponha à denúncia.
Neste contexto, a questão que este Tribunal tem de
enfrentar é a de saber se violará alguma norma ou princípio constitucional a
norma incluída no nº 1 do artº 36º (em conjugação com o nº 4) do D.L. nº 385/88,
na parte em que comanda a aplicabilidade deste diploma, designadamente o
prescrito no nº 1 do artº 20º, aos contratos de arrendamento a respeito dos
quais, ao tempo da entrada em vigor desse decreto-lei, pendesse já acção em
juízo visando o despejo do arrendatário e na qual ainda não tivesse sido
proferida sentença em 1ª instância.
3. O princípio da não retroactividade da lei encontra-se
consagrado na Constituição, de modo expresso, unicamente para a matéria penal
(desde que a lei nova se não mostre de conteúdo mais favorável ao arguido) -
cfr. números 1 e 4 do artigo 29º - e para as leis restritivas de direitos,
liberdades e garantias - cfr. nº 3 do artigo 18º, pelo que, neste ponto, se
poderá dizer, como se fez no Acórdão nº 259/88 (in Diário da República, 2ª
Série, de 11 de Fevereiro de 1989), que na Lei Fundamental se não consagra como
um princípio o da proibição da não retroactividade da lei (cfr. ainda Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, 5ª edição, 378 e seguintes, e Afonso Queiró,
Lições de Direito Administrativo, 1976, 523).
Não querendo a Constituição consagrar, como princípio, a
irretroactividade da lei em geral, não é, desde logo por aí, defensável (como os
recorrentes fazem) uma óptica segundo a qual as normas relativas ao conflito de
leis no tempo - como é o caso do prescrito no artº 12º do Código Civil - se
postem como verdadeiro direito material constitucional.
Aliás, por outro lado, tem sido comummente entendido que
aquelas regras constituem, ao fim e ao resto, injunções dirigidas ao aplicador
ou operador da lei e não ao legislador (neste sentido, Baptista Machado, Sobre a
aplicação no tempo do novo Código Civil, 56 e seguintes), actuando, por isso,
como normas de interpretação.
Num caso como o dos autos, é límpido não nos situarmos
perante «matéria penal» e, porque em causa está uma relação contratual
decorrente 'do arrendamento rural, matéria que tem a ver com a organização
económica do Estado, em especial com a política agrícola' (palavras do Acórdão
nº 95/92, publicado na 2ª Série do Diário da República de 18 de Agosto de 1992),
não se poderá dizer que essa mesma matéria se insira naqueloutra atinente a
«direitos, liberdades e garantias» ou a «direitos fundamentais de natureza
análoga». Daí decorrerá, desde logo, que o presente caso se não encontra
abrangido nas matérias, já acima indicadas, para as quais a Constituição,
expressamente, consagra o princípio da irretroactividade da lei.
De outra banda, poderá haver quem entenda que a norma
sub specie não desenha, verdadeiramente, uma situação de retroactividade, mas
tão só um caso de aplicação imediata de lei nova ou, se se quiser,
retrospectividade ou retroactividade imprópria.
Seja como for, o que importará apreciar é se, quer em
situações de verdadeira retroactividade, quer em situações de retrospectividade
(imediata aplicação da lei nova a relações jurídicas anteriormente constituídas
à sombra de anterior lei), isso acarretará, por si só, violação de princípio
constitucionalmente consagrado.
3.1. Tem este Tribunal, aliás na esteira de uma
jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional (tornando-se
fastidioso enunciar aqui os arestos ou pareceres que, nestes particular e
sentido, foram tirados), defendido que o princípio do Estado de direito
democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, após a Revisão
Constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula 'uma ideia de
protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na
actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito
das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas', razão pela
qual 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária
ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a
comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de
direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica'
(palavras do Acórdão nº 303/90, publicado na 1ª Série do Diário da República de
26 de Dezembro de 1990).
Sequentemente (e ainda para se usar terminologia desse
Acórdão), o princípio do Estado de direito democrático há-de conduzir a que 'os
cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto
já alcançadas como consequência do direito em vigor'.
Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal
princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de
anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou quando tal
estatuição venha dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir
entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coartar a 'liberdade
constitutiva e a auto- -revisibilidade' do legislador, características que
são 'típicas', 'ainda que limitadas', da função legislativa (cfr. Vieira de
Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, 309).
Haverá, assim, que proceder a um justo balanceamento
entre a protecção das expectativas dos cidadãos decorrente do princípio do
Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do
legislador, também ele democraticamente legitimado, legislador ao qual,
inequivocamente, há que reconhecer a licitude (senão mesmo o dever) de tentar
adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as mais
acertadas e razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam «tocadas» relações ou
situações que, até então, eram regidas de outra sorte.
Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será
alcançado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta
vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente
constituídas, uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado
onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não
poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção
do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações.
Nesses casos, impor-se-á que actue o sub-princípio da protecção da confiança e
segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito
democrático, por forma a que a nova lei não vá, de forma acentuadamente
arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança que
todos têm de respeitar.
Como reverso desta proposição, resulta que, sempre que
as expectativas não sejam materialmente fundadas, se mostrem de tal modo
enfraquecidas 'que a sua cedência, quanto a outros valores, não signifique
sacrifício incomportável' (cfr. Acórdão nº 365/91 no Diário da República, 2ª
Série, de 27 de Agosto de 1991), ou se não perspectivem como consistentes, não
se justifica a cabida protecção em nome do primado do Estado de direito
democrático.
4. Perante estes parâmetros, e não escondendo que a
norma em apreço, na realidade, vai «tocar» nas situações jurídicas de
arrendatários rurais demandados em acção de despejo intentadas ao abrigo da Lei
nº 76/77 na versão da Lei nº 76/79 - por isso que, não tendo ainda sido lavrada
em tais acções sentença em 1ª instância, se torna possível o decretamento do
despejo e, em consequência, a sua obtenção, independentemente de o senhorio
propor acção e lograr demonstrar os requisitos (ou só um deles - cfr., sobre a
exigência ou não exigência cumulativa dos requisitos e respectiva prova, os
acórdãos da Relação do Porto de 12 de Julho de 1983 e da Relação de Évora de 24
de Novembro do mesmo ano, na Colectânea de Jurisprudência, ano VIII, Tomo IV,
223, e Tomo V, 272) do artº 18º dessa Lei - questão é que se saiba se essas
expectativas que porventura decorressem daquele «tocar» se postam como
consistentes (e isto independentemente de outra questão, que agora não vem ao
caso, consistente em responder se a segurança jurídica e a protecção da
confiança valem também para os casos em que a lei nova vai produzir efeitos em
situações jurídicas processuais e não só em situações jurídicas substanciais).
Significa isto, no fundo das coisas, que é necessário
averiguar, na vertente hipótese, se, caso actuasse aqui de modo irrestrito o
princípio da protecção da confiança, em termos de impedir que a alteração do
ordenamento implicada pela normação de que tratamos se projectasse no conteúdo
das relações ou situações jurídicas já anteriormente constituídas, isso iria
impedir que, de acordo com uma regência unicamente direccionada para futuro
dessa normação, o contrato de arrendamento em causa não viesse a ser denunciado
por mera vontade do senhorio, sem possibilidade de oposição por parte do
arrendatário.
Essa averiguação, como é facilmente atingível, só pode
conduzir a que se conclua que, num prisma de mera produção de efeitos para
futuro, as disposições do D.L. nº 385/88 sejam plenamente aplicáveis aos
contratos de arrendamento rural antecedentemente celebrados, pelo que poderão
estes ser denunciados sem que os arrendatários a isso se possam opor.
Mas, se assim é, então a norma do nº 1 do artº 36º (com
referência ao nº 4), ao determinar do modo como determina, não vai, intolerável
e inconsistentemente, afectar uma relação jurídica que, imediatamente a partir
da data da entrada em vigor desse diploma, vai ficar sujeita ao novo ordenamento
por ele ditado.
Dito de outro modo:
se porventura se perfilhasse o entendimento de que, pela
simples circunstância de a norma sub iudicio ter influência em relações ou
situações jurídicas criadas e reguladas à luz de um ordenamento jurídico
anterior, ela deveria ser fulminada por um juízo de inconstitucionalidade
fundado no sub-princípio da protecção da confiança - com a consequência de, na
presente acção, não ser ordenado o despejo -, nem por isso o contrato de
arrendamento celebrado entre recorrentes e recorridos deixaria, num momento
imediatamente posterior, de poder ser denunciado por estes últimos, e sem que os
primeiros a isso se pudessem opor. O que equivale a dizer que um entendimento
tal como aquele só relevaria em termos de eficácia para o desfecho desta acção,
não tendo a mínima repercussão na relação jurídica privada estabelecida entre
recorrentes e recorridos, que, assim, não ficava consistentemente intocada.
A isto é aditar, e decisivamente, que de há muito tempo,
em matéria de locação em geral e de arrendamento rural em especial, têm sido
constantes as alterações de regime, clausulando-se, praticamente em todos eles,
a aplicação do novo ordenamento aos contratos e situações anteriormente
constituídas, pelo que, fundadamente, se não pode considerar que os
intervenientes nas relações jurídico-privadas estabelecidas nessa matéria
«possam contar» com uma certa imodificabilidade ou, ao menos, uma parca mutação
do ordenamento. E daí não poder dizer-se que uma norma como a ora em análise
constitua algo de insólito e inesperado com que os cidadãos e a comunidade,
razoavelmente, não contariam.
III
Perante o que se deixa dito, nega-se provimento ao
recurso.
Lisboa, 15 de Março de 1995
Bravo Serra
José de Sousa e Brito
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de
voto junta).
Luís Nunes de Almeida
Processo nº 166/92
2ª Secção
Relator: Cons. Bravo Serra
(Guilherme da Fonseca)
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender, ao contrário do
decidido no acórdão, que a norma conjugada dos nºs 1 e 4 do artigo 36º do
Decreto-Lei nº 385/88, de 25 de Outubro, está ferida de inconstitucionalidade
material, por violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado
de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, pelo que deveria
conceder-se provimento ao recurso, para ser reformado o acórdão recorrido, de
acordo com tal juízo de inconstitucionalidade.
São estas as razões que, em resumo, passo a
alinhar:
1. Precise-se desde já que o presente recurso tem por objecto
a apreciação da (in)constitucionalidade do citado artigo 36, nºs 1 e 4, do
Decreto-Lei nº 385/88, enquanto, na interpretação da decisão recorrida,
determina a aplicação imediata do disposto no artigo 20, nº 1, à denúncia do
contrato efectuado antes da entrada em vigor daquele decreto-lei.
O artigo em causa, ao dispor sobre o âmbito de aplicação
daquele diploma, estabelece no seu nº 1:
'Aos contratos existentes à data da entrada em vigor da presente Lei aplica-se o
regime nela previsto'.
Por sua vez, o nº 4 do mesmo artigo determina:
'O presente diploma não se aplica aos processos pendentes em juízo que à data da
sua entrada em vigor já tenham sido objecto de decisão em 1ª instância, ainda
que não transitada em julgado, salvo quanto a normas de natureza
interpretativa'.
Ora, dado que não tinha ainda sido proferida sentença em 1ª
instância, à data da entrada em vigor do citado diploma, a decisão recorrida
entendeu ser de aplicar o estatuído no artigo 20, nº 1, do mesmo diploma.
Reza, assim, este preceito:
'Quando o senhorio pretenda denunciar o contrato para, no termo do prazo ou da
renovação, passar ele próprio ou filhos que satisfaçam as condições de jovem
agricultor estipuladas na lei a explorar directamente o prédio ou prédios
arrendados, o arrendatário não pode opor-se à denúncia'.
Como se viu, os recorrentes entendem que tal aplicação,
sendo retroactiva, não poupa os efeitos já produzidos pela lei antiga, e
adquiridos pelo arrendatário, e, por isso, violaria o disposto no artigo 18 da
Constituição e o artigo 12 do Código Civil, que consideram ser um 'texto
materialmente constitucional'.
2. Como por diversas vezes o Tribunal Constitucional já
afirmou (cfr., entre outros, o acórdão nº 259/88, de 9 de Novembro de 1988,
publicado no Diário da República, II Série de 11 de Fevereiro de 1989), o
princípio da não retroactividade da Lei, estabelecido no artigo 12º do Código
Civil, apenas está consagrado expressamente na Constituição em matéria penal
(artigo 29º) e no que respeita às leis restritivas de direitos, liberdade e
garantias (artigo 18º, nº 3).
'Mas a não retroactividade da lei não está consagrada como
princípio constitucional (...)' - é a afirmação daquele acórdão nº 259/88.
Para além disto, há inconstitucionalidade da norma quando se
estiver em presença de uma retroactividade que viole de forma intolerável a
segurança jurídica e a confiança que as pessoas têm o direito de depositar na
ordem jurídica que as rege; por outras palavras, há inconstitucionalidade de
norma retroactiva quando se estiver em presença de 'uma retroactividade
arbitrária ou opressiva que envolva uma violação demasiado acentuada daquela
confiança'.
Assim sendo, há que analisar se, na presente situação, se
verifica algum destes circunstancialismos para daí concluir como o fazem os
recorrentes.
O Tribunal Constitucional já teve ensejo, a propósito de
idêntico preceito e em matéria de arrendamento rural, de se debruçar sobre o
tema. Fê-lo no acórdão nº 95/ /92, de 17 de Março de 1992 (publicado no Diário
da República, II Série, de 18 de Agosto de 1992), onde se pode ler: [N]ão se
crê que o artigo 18º, nº 3, da Constituição seja aplicável, por força do artigo
17º, da mesma Constituição, às relações contratuais decorrentes do
arrendamento rural, matéria que tem a ver com a organização económica do
Estado, em especial com a política agrícola, e em que não parecem estar em
causa direitos fundamentais 'de natureza análoga a direitos, liberdades e
garantias'.
Face a tal conclusão, importa, agora, averiguar se a
aplicação da lei nova aos contratos vigentes em matéria de arrendamento rural
viola de forma intolerável, quer a segurança jurídica, quer a confiança, ou
ainda a estabilidade neste tipo de relação.
Caminho que também seguiu o citado acórdão nº 95/92, ao
'averiguar se a aplicação imediata ou retroactiva resultante da interpretação
das referidas normas (as 'normas conjugadas do artigo 18º, nº 2, da Lei nº
76/7, de 29 de Setembro, na redacção dada pela Lei nº 76/79, de 3 de Dezembro,
e do artigo 3º desta lei'), que foi acolhida na decisão recorrida, não viola os
princípios constitucionais de segurança e de confiança ínsitos no princípio do
Estado de Direito democrático constante do artº 2º da Constituição'.
É entendimento dos recorrentes que a solução de aplicar a
nova lei a todos os efeitos de um acto, desde que sejam posteriores à sua
entrada em vigor, e ainda que o acto donde emanam seja anterior à mesma data,
violaria as expectativas dos particulares, e traria, assim, uma grave
instabilidade à vida e ao comércio jurídico.
Ora, a garantia contra a possibilidade de denúncia pelo
senhorio sem oposição é um efeito da lei antiga, já adquirido pelo
arrendatário, pelo que as referidas considerações (violação de expectativas e
perigo de instabilidade da vida e comércio jurídico), bem como considerações de
ordem moral (como as das situações concretas das partes) não permitem a
aplicação retroactiva da Lei nova.
Tem também este Tribunal vindo a entender que, não existindo
um direito à não frustração de expectativas jurídicas ou à manutenção do regime
legal em relações jurídicas duradouras ou relativamente a factos complexos já
parcialmente realizados, pode o legislador alterar um determinado regime,
desde que a afectação de expectativas legitimamente fundadas das pessoas por
uma lei nova de eficácia retroactiva ou de aplicação imediata a situações
jurídicas preexistentes não se deva ter por inadmissível, arbitrária ou
demasiado onerosa.
Se os destinatários das normas não puderem contar,
razoavelmente, com os efeitos consequentes da nova regulamentação e não for
ela ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, é essa
afectação inadmissível (cfr. acórdãos nºs 287/90 e 307/90, publicados no Diário
da República, II Série, de 20 de Fevereiro de 1991 e 4 de Março de 1991,
respectivamente).
3. Resta, assim, averiguar se, no caso em apreço, se pode
considerar ter a norma do artigo 36 do Decreto-Lei nº 385/88, ao determinar a
aplicação imediata do disposto no nº 1 do artigo 20, afectado expectativas
legitimamente fundadas do arrendatário rural, de forma inadmissível, arbitrária
ou onerosa.
Impõe-se, aqui, fazer uma análise do modo como se tem vindo a
processar a oposição do arrendatário face à denúncia do contrato de
arrendamento, pelo senhorio, quando invocada a pretensão de explorar
directamente o prédio, no domínio dos vários diplomas legais pertinentes para o
caso.
Ao tempo da Lei nº 76/77, o arrendatário podia obstar à
efectivação da denúncia mediante decisão judicial, desde que os prédios
arrendados se destinassem a ser objecto de novo arrendamento e a denúncia
pusesse em grave risco a subsistência económica do arrendatário e seu agregado
familiar (artigo 18, nº 1).
O senhorio podia denunciar o contrato para o efeito de
passar a explorar directamente o prédio (artigo 19º, nº 1).
Se a denúncia tivesse por suporte aquele fundamento, estava
vedado ao arrendatário deduzir oposição à referida denúncia, ainda que se
verificasse alguma das circunstâncias referidas no artigo 18, nº 1 (artigo 19º,
nº 3).
Com as alterações introduzidas pela Lei nº 76/79, já o
arrendatário pode obstar ao despejo no termo do prazo do arrendamento ou sua
renovação desde que ele ponha em risco a sua subsistência económica e do seu
agregado familiar ou desde que, tendo habitação no prédio arrendado, corra
sério risco de não conseguir outra habitação.
O arrendatário que se considere numa dessas situações pode
opor-se à denúncia, devendo comunicá-lo, por escrito, ao senhorio, no prazo de
30 dias a partir da data em que lhe foi feita a comunicação da mesma (artigo 18,
nº 2, e artigo 17).
Assim, 'só no caso de o arrendatário se opor à denúncia do
contrato, invocando risco para a sua subsistência e do seu agregado familiar, é
que o senhorio poderá recorrer ao tribunal (o que terá de fazer no prazo de 30
dias após a declaração do arrendatário) para em acção de despejo tentar provar
que é infundada a oposição do arrendatário, ou então alegar que pretende a terra
para o efeito de a explorar directamente e, outrossim, provar, se for caso
disso, que tem uma situação inferior à do arrendatário e seu agregado familiar
ou que a soma de todos os seus rendimentos não é superior a uma vez e meia o
salário mínimo nacional' (v. acórdão da Relação do Porto, de 9 de Dezembro de
1983, Col. Jur. ANO XIII-1983, tomo 5, pág. 226).
Com o Decreto-Lei nº 358/88, procedeu-se a uma significativa
alteração do regime de oposição à denúncia.
O arrendatário pode obstar à efectivação da denúncia desde
que, em acção intentada no prazo de 60 dias após a comunicação da denúncia,
prove que o despejo põe em risco sério a sua subsistência económica e do seu
agregado familiar (artigo 19, nº 1).
O senhorio que pretenda denunciar o contrato para exploração
directa deve expressamente indicar essa finalidade na comunicação da denúncia
(artigo 20, nº 2), não podendo o arrendatário opor-se a ela.
Significa isto que o '[Ó]nus de intentar a acção judicial
passa a pertencer ao arrendatário, quando até aqui lhe bastava notificar o
senhorio, no prazo de 30 dias após ele ter denunciado o contrato, de que o
despejo punha em risco a sua subsistência económica e do seu agregado familiar
ou de que, tendo habitação no prédio arrendado, o termo do contrato o
colocaria em sério risco de não conseguir outra habitação' (cfr. Jorge Alberto
Aragão e Seia e outro - ARRENDAMENTO RURAL - nota 1 ao artigo 19).
Da análise estabelecida por cada um destes regimes, pode
extrair-se, desde já, a seguinte conclusão: quer no domínio da Lei nº 76/77
(redacção primitiva), quer no domínio do Decreto-Lei nº 385/88, encontra-se
vedado ao arrendatário o direito do exercício à oposição, quando o senhorio
invoque tal pretensão, ainda que se demonstre que a denúncia põe em grave ou
sério risco a subsistência económica do arrendatário e do seu agregado
familiar.
No que respeita à Lei nº 76/79, há que analisar mais
profundamente a situação.
Da leitura do artigo 19 daquela lei, deduzir-se-á que os
requisitos para que a acção de despejo proceda não são cumulativos (cfr. o
acórdão da Relação do Porto, de 7 de Abril de 1981, Col. Jur. Ano VI - 1981,
tomo 2, pág. 113).
Assim, basta que o senhorio ou prove que não se verificam os
riscos invocados pelo arrendatário [al. a)] ou então que o senhorio alegue (e
naturalmente prove) que pretende a terra para o efeito de a explorar e que seja
judicialmente reconhecido que tem uma situação inferior à do arrendatário e
seu agregado familiar ou que a soma de todos os rendimentos não é superior a uma
vez e meia o salário mínimo nacional [al. b)], para que a acção proceda.
A actuação do senhorio, segundo a interpretação que se faz do
artigo, será a seguinte: no prazo de 30 dias após recepção da declaração do
arrendatário, move a acção, para provar que é infundada a invocação do
arrendatário, nos termos da alínea a), mas a existência de prévia oposição só
pode ser determinante da procedência da acção ao abrigo desta alínea; já não
da instaurada ao abrigo da alínea b).
Quer dizer: no caso de haver oposição, o senhorio é obrigado
a demonstrar em acção judicial que o arrendatário não corre aqueles riscos, para
ver reconhecida a denúncia; não havendo oposição pode denunciar o contrato.
No entanto, não cremos que esta oposição valha para
obstacular ao despejo, quando se invoquem os fundamentos referidos na alínea b)
do mesmo artigo.
Provando-se que o senhorio tem uma situação inferior à do
arrendatário ou que a soma de todos os rendimentos não é superior a uma vez e
meia o salário mínimo nacional e quer explorar directamente a terra, a acção
procede, ainda que se provem também os riscos enunciados no artigo 18, nº 1.
Desta interpretação decorre que não é assim tão diferente
quanto isso o regime da oposição face à Lei nº 76/79 do da Lei 76/77.
A única diferença é que, no domínio da Lei nº 76/ /77, o
ónus de intentar a acção para demonstrar a existência do risco cabia ao
arrendatário e agora cabe ao senhorio o ónus de demonstrar que os riscos não se
verificam.
Mas, no que toca à denúncia para exploração directa da
terra, o regime mantém-se praticamente o mesmo.
No novo regime de arrendamento rural do Decreto-Lei nº
385/88, o ónus de alegar a existência do risco pertence ao arrendatário, como no
regime da Lei nº 76/77 (artigo 19, nº 1).
Se o senhorio pretender denunciar o contrato para exploração
directa da terra, não pode o arrendatário opor-se, como sucedia em 'ambos' os
regimes anteriores (artigo 20, nº 1).
Somente, agora, o senhorio não tem de provar que a sua
situação é inferior à do arrendatário ou que a soma de todos os rendimentos não
é superior a uma vez e meia o salário mínimo nacional, como acontecia face à
Lei nº 76/79.
Significa que, impondo-se ao arrendatário o ónus de provar a
existência dos riscos e retirando-se ao senhorio o ónus de demonstrar a
existência daquelas situações, colocou-se o arrendatário em posição mais
desfavorável (o próprio acórdão reconhece que são 'acentuadas as dissemelhanças
quanto à denúncia do contrato de arrendamento rural entre os regimes consagrados
na Lei nº 77/76 (com as referidas alterações) e no D.L. nº 385/88,
perspectivando-se como a mais saliente precisamente aquela segundo a qual não é
permitido por este último diploma que o arrendatário se oponha à denúncia').
É certo que a norma do artigo 19, nº 1, não vem posta em
crise nos presentes autos.
Contudo, não pode deixar de ser aqui chamada, porque ajuda a
compreender que, no conjunto do sistema, o arrendatário ficou prejudicado,
podendo ver-se aqui, de todo o modo, uma expectativa jurídica afectada com a
aplicação do novo regime ao caso dos autos.
E, como se diz em voto de vencido ao acórdão nº 95//92, 'não
obstante, a situação jurídica anteriormente constituída é, na realidade
'tocada', o que, só por si, justifica que se considerem postas em crise seja a
confiança seja, nomeadamente, a segurança jurídica, em articulação íntima com
aquela e, bem assim, com a estabilidade desejável neste tipo de relação
locatária'.
Com o que a norma dos nºs 1 e 4 do artigo 36, com a
interpretação que lhe foi dada na decisão recorrida, padece de
inconstitucionalidade material, por violação do princípio da confiança ínsito
no princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2 da
Constituição (cfr. o citado acórdão nº 95/92, com um discurso que se pode
assimilar à presente hipótese).
4. Mas, há mais, numa perspectiva que acolhe a afirmação dos
recorrentes relativa a 'violações de expectativas e perigo de instabilidade da
vida e comércio jurídicos' e a 'situações concretas das partes', prendendo-se
directamente com o questionado nº 4 do artigo 36, que ressalva a aplicação da
lei nova 'aos processos pendentes em juízo que à data da sua entrada em vigor já
tenham sido objecto de decisão em 1ª instância, ainda que não transitada em
julgado'.
É que, na interpretação e aplicação dessa lei nova pelo
acórdão recorrido, concluiu-se nele 'pela aplicabilidade do Decreto-Lei nº
385/88, porque quando o diploma legal citado entrou em vigor, na Madeira, ainda
a sentença não fora proferida, o que só veio a acontecer em 12/02/90'.
Ora, os autos revelam-nos o seguinte quadro processual:
- a acção foi intentada em 25 de Março de 1985 e, terminada a
face dos articulados, foi o processo concluso com a data de 12 de Julho de 1985,
tendo sido proferido só o despacho judicial em 16 de Novembro de 1988, com o
despacho saneador e a organização da especificação e do questionário.
- a sentença foi proferida com a data de 12 de Fevereiro de
1990, com o processo concluso em 8 do mesmo mês, e tendo havido dois adiamentos
do julgamento (a primeira marcação do julgamento foi para o dia 12 de Abril de
1989).
Isto significa que, numa sequência normal do processado,
este tipo de acção, que sempre teve carácter de urgência - artigos 42 da Lei
76/77, com a alteração da Lei nº 76/79, e 35, nº 2, do Decreto-Lei nº 385/88 -,
teria terminado muito antes da entrada em vigor do citado Decreto-Lei.
A considerar como razoável o período de tempo que decorreu,
no caso dos autos, entre o despacho saneador e a prolação da sentença - pouco
mais de um ano -, e aplicando esse período à data em que o processo foi
concluso, ou seja, 12 de Julho de 1985, resulta daqui que a acção poderia
perfeitamente ter sido julgada em primeira instância no decurso do ano de 1986
ou, na pior das hipóteses, no ano de 1987, sempre antes da data da entrada em
vigor do Decreto-Lei nº 385/88. Só que, o processo esteve parado, sem qualquer
despacho judicial, mais de três anos (também aqui acórdão não 'esconde' que 'a
norma em apreço, na realidade, vai «tocar» nas situações jurídicas de
arrendatários rurais demandados em acção de despejo intentadas ao abrigo da Lei
nº 76/77 na versão da Lei nº 76/79 - por isso que, não tendo ainda sido lavrada
em tais acções sentença em 1ª instância, se torna possível o decretamento do
despejo e, em consequência, a sua obtenção, independentemente de o senhorio
propor acção e lograr demonstrar os requisitos').
Talqualmente se lê no acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo, de 7 de Março de 1989, '... a não prolação da sentença num prazo
razoável já viola o disposto no nº 1 do artº 6º da Convenção Europeia dos
Direitos do Homem, ratificada pela Lei nº 65/78, de 13 de Outubro, sendo, por
isso, aplicável na nossa ordem jurídica interna.
Preceitua aquele normativo que 'Qualquer pessoa tem direito a
que a sua causa seja examinada (...) num prazo razoável por um tribunal (...), o
qual decidirá (...) sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de
carácter civil (...)'.
Ora, estatuindo o artº 6º do DL 48 051, de 21 de Novembro de
1967, que 'Para efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos
que violem as normas legais regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis
e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras
de ordem técnica e de prudência comum que devem ser tidas em consideração',
imperioso se torna concluir que o Juiz do Tribunal do Trabalho de Lisboa que
levou 5 anos a proferir uma sentença para a qual a lei determinava um prazo
máximo de 3 dias (artº 84º, do Código de Processo de Trabalho, aprovado pelo DL
45 497, de 30 de Dezembro de 1963), violou o disposto no nº 1 do artº 6º da
citada Convenção, porque tal prazo, face às regras da experiência comum, à
simplicidade da causa e à inexistência de circunstâncias anormais - desde logo
porque não foram alegadas - não é manifestamente razoável' (Acórdãos
Doutrinais, nº 344-345, pág. 1040/1047).
É uma situação que se pode transpor perfeitamente para a
hipótese sub judicio, agravada até pela circunstância da lei atribuir carácter
de urgência às acções do tipo da presente, do que resulta ser facto ilícito ter
estado a acção sem qualquer despacho judicial no período decorrido entre 12 de
Julho de 1985 e 16 de Novembro de 1988.
Ora, como considera o citado acórdão nº 287/90, fazendo apelo
à doutrina do tribunal constitucional alemão 'a segurança jurídica e a protecção
da confiança como critérios de avaliação de direito constitucional são também
exigíveis quando o legislador produz efeitos numa situação jurídica processual,
até então dada, em que o cidadão se encontra. Também o direito processual pode
fundamentar posições de confiança, nomeadamente em processos pendentes e em
situações processuais concretas. No domínio de processos civis ou
administrativos, através de alterações do direito processual, com efeito nos
processos pendentes, podem ser reduzidas ou eliminadas posições essenciais do
cidadão para uma defesa dos seus direitos, com condições de sucesso. Mesmo se em
geral a Constituição protege menos a confiança na manutenção de posições
jurídicas processuais do que na de posições jurídicas materiais, podem aquelas
no caso concreto ter um significado e um peso que a torna tão dignas de
protecção como estas. A 'situação da vida' regulada pelo direito, relevante
para a questão da retroactividade, seria aqui o próprio processo, e não a
situação da vida que determina o objecto deste (BVerfGE 63, 356, 360)'.
Se isto é assim, havendo expectativas legitimas dos réus na
acção e ora recorrentes de obterem uma sentença quando estava em vigor a lei
antiga, por ser razoável uma pendência da acção ainda na vigência dessa lei,
foram tais expectativas seriamente afectadas com a paragem do processo, sem
qualquer justificação, por mais de três anos, com o resultado a que se chegou no
acórdão recorrido, o da aplicabilidade plena da lei nova do Decreto-Lei nº
385/88.
Tendo ficado dito atrás que, face àquela lei, colocou-se o
arrendatário em posição mais desfavorável, foi também sacrificado com o decurso
do tempo o interesse individual do arrendatário, sendo, assim, 'arbitrário o
sacrifício e excessiva a frustração de expectativas' (linguagem do mesmo
acórdão nº 287/90, referindo ainda que a afectação de expectativas, 'em sentido
desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica
com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam
contar'). E não se diga, como faz o acórdão, que um tal entendimento 'só
relevaria em termos de eficácia para o desfecho desta acção, não tendo a mínima
repercussão na relação jurídica privada estabelecida entre recorrentes e
recorridos, que, assim, não ficava consistentemente intocada', pois não é
despiciendo esse relevo, na medida em que os réus e ora recorrentes poderiam
obter desde logo ganho de causa, e saber o que o senhorio iria depois fazer é
pura futuração.
Com o que, e nesta perspectiva de relação processual, também
a norma do nº 4 do artigo 36, com a interpretação que lhe foi dada no acórdão
recorrido, está afectada do vício de inconstitucionalidade material, por
violação do princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de direito
democrático consagrado no artº 2 da Constituição.