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Processo nº. 519/94
2ª. Secção
Rel. Cons.: Sousa e Brito
Acordam na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. A., arguido no processo comum afecto ao Tribunal Colectivo
nº. 66/91, da Comarca do --------------, foi condenado nesse processo, por
Acórdão de 6/3/92 (fls. 2/9), na pena única de 18 anos de prisão, relativa à
prática de dois crimes de homicídio, pena da qual foram desde logo declarados
perdoados 27 meses de prisão, ao abrigo do artigo 14º., nº. 1, alínea b), da Lei
nº. 23/91 de 4 de Julho.
No decurso do cumprimento de tal pena, a
propósito da publicação da Lei nº. 15/94, de 11 de Maio, foi proferido pelo Sr.
Juiz do processo o despacho certificado a fls. 10 v; declarando não beneficiar
o arguido do perdão previsto no artigo 8º. desse diploma, nos termos do artigo
9º., nº. 3 alínea d) do mesmo.
Deste despacho recorreu o arguido, para o
Tribunal da Relação de Évora, invocando nas respectivas alegações que os nºs. 2
e 3 do artigo 9º. da Lei nº. 15/94, violam a alínea g) do artigo 164º. e o
artigo 13º. da Constituição.
O Tribunal da Relação de Évora, através de
Acórdão de 25 de Outubro de 1994 (fls. 24/26), negou provimento ao recurso,
desatendendo a invocada inconstitucionalidade.
2. A este Acórdão se reporta o presente recurso, interposto
pelo arguido, ao abrigo da alínea b), do nº. 1 do artigo 70º. da Lei nº. 28/82,
de 15 de Novembro, concluindo da seguinte forma as respectivas alegações:
'a) Segundo o art. 13º da Constituição da República, todos os cidadãos têm a
mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
b) E a al. g) do art. 164º da mesma Constituição, determina, além
do mais, que 'compete' à Assembleia da República, conceder perdões genéricos.
c) O artigo 8º da Lei nº 15/94 (Lei da Amnistia) concedeu, na
verdade um perdão genérico.
d) Mas, o nº 2 e 3 do art. 9º desta mesma Lei nº 15/94, veio
restringir a aplicação daquele perdão genérico, a alguns cidadãos,
nomeadamente ao ora recorrente.
e) E tal restrição, ofende estes comandos consagrados naqueles nº 2
e 3 do art. 9º, a al. g) do art. 164º e o nº 1 do art. 13º ambos da Constituição
da República.
f) Logo, o nº 2 e 3 do art. 9º da lei nº 15/94, na medida em que
restringe a aplicação do art. 8º da mesma Lei, têm de se considerar
inconstitucionais.
g) E em consequência, aplicar-se o perdão, previsto no art. 8º da
Lei nº 15/94, ao suplicante. '
O Ministério Público, por sua vez, pugnando pela
improcedência do recurso, conclui que:
' A norma da alínea d) do nº 3 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11
de Maio ( Amnistia diversas infracções e outras medidas de clemência ), não
viola qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente, a alínea g)
do artigo 164º, ou o princípio da igualdade, consagrado no nº 1 do artigo 13º,
ambos da Constituição. '
Com dispensa de vistos, cumpre decidir.
III
FUNDAMENTAÇÃO
3. Preenchido que se mostra o pressuposto de acesso à
jurisdição constitucional invocado pelo recorrente ( suscitação anteriormente à
decisão recorrida da inconstitucionalidade de uma norma nela aplicada ), importa
determinar se a alínea d) do nº. 3 do artigo 9º. da Lei nº. 15/94 ( a disposição
efectivamente aplicada na decisão recorrida ), viola, como diz o recorrente, a
alínea g) do artº. 164º. da Constituição, que determina ser da competência da
Assembleia da República a concessão de 'amnistias e perdões genéricos', e/ou o
princípio constitucional da igualdade consagrado no artigo 13º..
Estabelece o artigo 8º. da Lei nº. 15/94, uma
série de perdões de penas (alíneas a), b), c) e d) do nº. 1 ) relativamente às
infracções cujo cometimento haja ocorrido anteriormente a 16 de Março de 1994.
Desses perdões, porém, são excluídas pelo diploma um conjunto de situações
elencadas nos nºs. 2 e 3 do artigo 9º., entre as quais a dos 'condenados pela
prática de crimes contra as pessoas a pena de prisão superior a 10 anos, que já
tenha sido reduzida por perdão anterior'.
Foi este o fundamento da não aplicação ao
arguido, pelo despacho que o Acórdão recorrido confirmou, de um perdão que ( não
fora essa exclusão ) se traduziria na redução de mais um oitavo da pena ( alínea
d) do nº. 1 do artigo 8º. da Lei nº. 15/94 ).
4. Seguindo uma linha interpretativa assumidamente reportada
ao 'elemento linguístico', pretende o recorrente, através do significado
constante de dicionários dos vocábulos 'genérico' e 'generalidade', extrair uma
interpretação da alínea g) do artigo 164º. da Constituição que proíba a exclusão
de qualquer classe de situações ou de pessoas de um perdão de penas decretado
pela Assembleia da República.
Esquece, porém, o recorrente que um argumento
linguístico (um argumento interpretativo reportado ao uso da linguagem ),
estando em causa conceitos técnicos (técnico-jurídicos) terá de ter como
referencial uma 'linguagem técnica' e não uma 'linguagem natural' (v. Robert
Alexy, Theorie der Juristischen Argumentation, Suhrkamp Verlag, 1978, pág.
289/290).
Ora, a interpretação da expressão 'perdões
genéricos', constante do artigo 164º. da Constituição, não suscita de um ponto
de vista técnico-jurídico problemas de maior. Trata-se, como referem Gomes
Canotilho e Vital Moreira, de distinguir a concessão de perdão, reservado ao
Parlamento, como acto geral que é, 'dos actos individuais de graça -- ou seja, o
indulto e a comutação de penas -- , que são da competência do PR (artº.
137º./f)' (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. ed., Coimbra 1993,
pág. 650; v. sobre o elemento 'carácter geral' no 'exercício do direito de
graça' e em concreto sobre a definição do 'instituto do perdão genérico',
Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As consequências jurídicas do crime,
Coimbra 1993, págs. 687/690).
Assim, com a expressão 'perdões genéricos' o que
se acentua é o elemento generalidade, ou seja que os perdões se refiram a una
classe de factos de uma classe de pessoas. Na lógica do texto constitucional,
importa, pois, distingui-los dos actos de graça concretos e individualizados
consubstanciados no indulto e na comutação de penas (v. Gomes Canotilho/Vital
Moreira, ob. cit., págs. 591/592).
Significa isto que a subtracção ao perdão
genérico de determinadas situações de modo algum retira generalidade, tanto ao
perdão como à sua exclusão, não traduzindo, por isso mesmo, qualquer violação
da alínea g) do artigo 164º. da Constituição.
5. Da mesma forma não é violado pela disposição em questão o
princípio da igualdade, resultante do artigo 13º. do texto constitucional.
É sabido que a igualdade, em sentido material (e
é esta a igualdade que o artigo 13º. expressa), pressupõe tratamento igual do
que é igual e tratamento diferente do que é diferente, de acordo com a medida
da diferença. Daí que, seguindo uma linha jurisprudencial constante que já
remonta à Comissão Constitucional, este Tribunal afirme (por exemplo no Acórdão
nº. 231/94, publicado no DR-I-A de 28/4/94) que uma diferenciação de tratamento
fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas, não é atentatória
do princípio da igualdade. Por outras palavras, utilizando uma formulação do
Tribunal Constitucional Federal Alemão (BVerf GE 1,14 (52), citada por Alexy,
Theorie der Grundrecht, Suhrkamp-Verlag, 1986, pág. 370) tratamentos legais
diferentes, traduzem uma diferenciação arbitrária 'quando (...) não é possível
encontrar um motivo razoável decorrente da natureza das coisas, ou que, de
alguma forma, seja concretamente compreensível', para essa diferenciação.
No caso da exclusão do perdão aqui em causa,
sendo colocados como são, em plano de igualdade todos aqueles que, como o aqui
recorrente, foram condenados pela prática de crimes contra as pessoas em pena de
prisão superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por anterior perdão, não
existe tratamento diverso de quem se encontra em situação idêntica (v. Rui
Pereira, O Princípio da Igualdade em Direito Penal, o Direito, 1988/I-II, pág.
151). Da mesma forma não comporta a exclusão tratamento arbitrário, sendo como
é explicável e racionalmente compreensível por razões de política criminal
expressas numa acrescida necessidade de efectividade da pena, nas situações
excluídas.
Tratam-se estas, com efeito, de situações
relativas a crimes graves (simbolicamente os primeiros crimes do nosso Código
Penal) em que penas concretamente graves expressam uma maior gravidade concreta,
face à qual há que aceitar que o legislador recuse sucessivas reduções (a este
respeito, v. o recente Acórdão nº. 42/95, desta 2ª. Secção).
Sobre este tema, já se escreveu ( José de Sousa e
Brito, 'Sobre a Amnistia', Revista Jurídica, 6/1986, pág. 44): 'o princípio da
igualdade, tratando-se aqui da definição de direitos individuais perante o
Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são alargados - como são
restringidos pela aplicação das sanções - , impede desigualdades de tratamento
(...). A delimitação dos factos amnistiados tem que ser feita segundo
critérios susceptíveis de generalização, em função de circunstâncias não
arbitrárias, mas razoáveis do ponto de vista dos fins do Estado de direito'.
Seja como for, não se verificam, e é essa a
conclusão a extrair do exposto, as inconstitucionalidades invocadas pelo
recorrente, restando portanto declarar a improcedência do recurso.
III
DECISÃO
5. Pelo exposto, negando-se provimento ao recurso,
confirma-se, no que ao julgamento de constitucionalidade respeita, a decisão
recorrida.
Lisboa, 15 de Março de 1995
José de Sousa e Brito
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Messias Bento
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida