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Proc. nº 256/94
1ª Secção
Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A., na qualidade de expropriante de prédio, de que
são proprietários B. e C., necessário à construção de um caminho de circulação
no Aeroporto do Porto, requereu ao Tribunal Cível do Porto o pagamento da
indemnização devida aos expropriados, e fixada por arbitragem no montante de
229.354.650$00, em dez prestações anuais no valor de 22.935.465$00 cada.
2. Por sentença de 25 de Março de 1994, foram julgadas
improcedentes as questões de extemporaneidade e ineptidão do pedido que tinham
sido suscitadas pelos requeridos e foi julgado improcedente o pedido de
pagamento da indemnização por expropriação em prestações.
O fundamento desta decisão de improcedência do pedido,
foi o entendimento de que a norma do artigo 84º, nº 2, do Código das
Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro, em que se
baseou o pedido, era inconstitucional, por contrariar o disposto no artigo 62º,
nº 2, da Constituição. Invocou-se, nesse sentido, o já decidido nesse domínio
pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 108/92 (Diário da República, II, de
15 de Julho de 1992).
Foi recusada, assim, a aplicação dessa norma e
determinado o depósito pela expropriante da totalidade da indemnização.
3. Desta decisão foi interposto pelo Ministério Público
o presente recurso (obrigatório) para o Tribunal Constitucional, nos termos dos
artigos 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nºs 1, alínea a), e 3, da Lei do Tribunal
Constitucional, para apreciação da questão de inconstitucinalidade da norma do
nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações de 1976.
Neste Tribunal, o Magistrado do Ministério Público
apresentou alegações, em que aderiu à jurisprudência constitucional vertida nos
Acórdãos nºs 108/92 e 283/94, que julgou inconstitucional a norma em causa. E
concluiu nos seguintes termos:
'1º. É inconstitucional, por violação dos artigos 62º, nº 2, e 13º,
nº 1, da Constituição da República Portuguesa a norma constante do artigo 84º,
nº 2, do Código das Expropriações aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de
Dezembro.
2º. Termos em que deverá confirmar-se a decisão recorrida, no que
se refere à inconstitucionalidade da norma desaplicada.'
Os recorridos B. e C. apresentaram alegações, em que
aderiram também à tese da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do artigo 84º
do Código das Expropriações de 1976.
Por sua vez, a recorrida A. produziu igualmente
alegações, que concluiu deste modo:
'1. A Expropriante é uma empresa pública (DL 260/76). Ao abrigo do art.
84º, nº 2, do DL 845/76 tem a faculdade de efectuar o pagamento da indemnização
devida pelo bem expropriado em prestações.
2. O art. 84º, nº 2 não é inconstitucional. Nem da letra, nem do
espírito dos arts. 62º, nº 2, e 13º da Constituição resulta algum impedimento ao
pagamento em prestações da indemnização, que não é obstáculo à atribuição da
justa indemnização (Ac. STJ, BMJ 394/156).
3. Há uma impossibilidade, face ao DL 845/76, de atribuir ao
expropriado uma indemnização prévia ou contemporânea ao momento em que o bem lhe
é retirado, impossibilidade que nenhuma relação tem com o pagamento em
prestações da indemnização.
4. A fixação definitiva da indemnização correspondente ao valor do
bem expropriado pressupõe um procedimento que leva tempo, nunca menos de 2/3
anos - publicação no Diário da República da Utilidade Pública do bem, vistoria
ad perpetuam rei memoriam, posse administrativa, arbitragem, recurso, resposta,
avaliação, alegações, sentença, recurso desta, ... - só após o trânsito em
julgado da última decisão, a indemnização é colocada à disposição do titular (em
prestações ou não) por só aí se tornar certa e definitiva.
5. Muito embora a partir da posse administrativa (artº. 17 e ss.) o
bem seja retirado do expropriado, tal não obriga ao pagamento de qualquer
indemnização que, nesse momento, nem sequer está determinada.
6. Quer haja ou não pagamento em prestações da indemnização, nunca
haverá contemporaneidade entre o momento em que o expropriado é privado do bem e
o momento em que a indemnização é colocada à sua disposição.
7. O facto de a indemnização ser atribuída em prestações não é
obstáculo a que a decisão judicial que a fixou, determine a actualização do
montante das prestações de acordo com a inflação, à medida que estas venham a
ser pagas.'
4. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
5. O presente recurso tem por objecto a questão da
constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 84º do Código das
Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de Dezembro.
Nessa norma, aplicável ao caso a que este recurso se
refere, confere‑se a determinadas entidades beneficiárias de expropriação por
utilidade pública a faculdade de efectuarem o pagamento em prestações das
indemnizações pecuniárias devidas pela expropriação, a ser exercida por essas
entidades sem necessidade de acordo dos interessados na indemnização. Aí se
dispõe o seguinte:
'As pessoas colectivas de direito público, empresas públicas,
nacionalizadas ou concessionárias de serviços públicos, poderão efectuar em
prestações o pagamento das indemnizações devidas por expropriação por utilidade
pública, salvo quando respeitarem:
a) A casas unifamiliares ou fracções autónomas de prédios em
regime de propriedade horizontal que constituam residência habitual dos
proprietários e seus agregados familiares;
b) A terrenos explorados pelos proprietários, exclusiva ou
predominantemente com o próprio trabalho ou de pessoas do respectivo agregado
familiar;
c) A terrenos explorados por cooperativas de produção de pequenos
agricultores e trabalhadores rurais pertencentes aos respectivos sócios ou à
própria cooperativa;
d) À parte do prédio expropriado em que o respectivo proprietário
exerça de conta própria actividade comercial ou industrial ou profissão liberal;
e) À caducidade, por efeito de expropriação, do arrendamento
rural, para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.'
6. Sobre esta matéria já se pronunciou o Tribunal
Constitucional, através dos Acórdãos nºs 108/92 (Diário da República, II, de 15
de Julho de 1992) e 283/94 (inédito).
Neles se concluiu que a norma em causa é em si mesma inconstitucional, por se
entender que o princípio do pagamento em prestações da indemnização por
expropriação viola os artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição.
Permanecem válidos esse entendimento e os seus
fundamentos.
Vejamos.
7. O artigo 62º, nº 2, da Constituição, ao dizer que a
expropriação por utilidade pública deve ser efectuada 'mediante o pagamento de
justa indemnização', sugere claramente que deve ocorrer uma simultaneidade entre
os momentos de produção do efeito de perda da propriedade pelo expropriado e de
pagamento da indemnização.
Aliás, só esse imediatismo permite realizar plenamente a
justiça na atribuição da indemnização. Uma indemnização por expropriação, para
ser justa, tem de garantir ao expropriado uma compensação plena da perda
patrimonial verificada, de acordo com o valor real do bem nesse momento. Ora, o
decurso do tempo, sem que essa indemnização seja logo (ou no mais curto espaço
de tempo possível) integralmente recebida, pode implicar - por fenómenos de
inflação e de depreciação da moeda, não compensados pelos mecanismos de cálculo
de juros previstos no diploma em causa - o pagamento de uma indemnização que não
seja justa.
Note-se que a circunstância, invocada pela recorrida
expropriante, de poder decorrer ainda um certo lapso de tempo entre a privação
da propriedade e o pagamento integral e unitário da indemnização ao expropriado,
por razões processuais (e, designadamente, no caso de 'posse administrativa'),
não pode constituir argumento a favor da constitucionalidade do pagamento em
prestações: o prejuízo que possa resultar para o expropriado da existência desse
lapso de tempo não legitima o alargamento de tal período através de um esquema
de pagamento faseado, na medida em que aí o prejuízo será naturalmente ampliado
e pode adquirir outra gravidade qualitativa. A justiça da indemnização
realiza-se tanto mais quanto maior for a proximidade temporal entre os momentos
da atribuição da indemnização e da privação da propriedade.
Decorre ainda do significado da indemnização para o
expropriado a ideia de que a indemnização por expropriação deve colocá-lo na
posição de poder adquirir bem da mesma natureza e valor daquele de que foi
desapropriado. E esse fim da indemnização apenas se realiza com a entrega
imediata da totalidade do montante indemnizatório.
A doutrina tem defendido a tese de que a indemnização
não é mero efeito ou consequência do poder de expropriação, mas sim um
pressuposto de legitimidade do seu exercício ou um elemento integrante do
próprio conceito de expropriação (cf. Alves Correia, As Garantias do
Particularna Expropriação por Utilidade Pública, 1982, pp. 156-162). Neste
sentido se pronunciou também a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cf.
Acórdãos nºs 108/92 e 203/94, citados). Na verdade, sem o pagamento da
indemnização imediatamente (ou no mais curto espaço de tempo possível) após a
produção do efeito privativo da propriedade, não são concebíveis uma verdadeira
expropriação e uma indemnização que se integre no acto expropriativo.
Em consequência do que se disse, o pagamento da
indemnização em prestações é incompatível com o princípio da 'justa
indemnização' em matéria de expropriação por utilidade pública, consagrado no
artigo 62º, nº 2, da Constituição.
8. Por sua vez, afigura-se também evidente que a regra
do pagamento em prestações da indemnização por expropriação afronta o princípio
da igualdade, vertido no artigo 13º, nº 1, da Constituição.
Isso ocorre tanto no plano da comparação entre sujeitos
expropriados que recebem imediata e unitariamente a indemnização e sujeitos
expropriados que a recebem em prestações (relação interna da expropriação), quer
no plano da comparação entre sujeitos expropriados e sujeitos não expropriados
(relação externa da expropriação). No primeiro caso, os expropriados que recebem
a indemnização em prestações são tratados de forma particularmente desfavorável,
sem fundamento material razoável. No segundo caso, esses mesmos expropriados
sofrem um sacrifício patrimonial agravado, em função da insuficiência da
respectiva compensação, também sem adequado suporte material.
9. Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade
material da norma do nº 2 do artigo 84º do Código das Expropriações de 1976, por
ofensa aos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da Constituição.
III
Decisão
10. Pelo exposto, decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do nº 2
do artigo 84º do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/76,
de 11 de Dezembro, por violação dos artigos 62º, nº 2, e 13º, nº 1, da
Constituição;
b) Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 4 de Abril de 1995
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Luís Nunes de Almeida