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Proc. nº 437/93
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., casado, advogado, residente na Rua
----------------------, nº ------------, --------------, propôs acção emergente
de contrato de trabalho no Tribunal de Trabalho desta cidade, em 25 de Janeiro
de 1982, contra o banco B., empresa pública, com sede na ----------- , na mesma
cidade, invocando a nulidade de um despedimento decretado pelo Banco demandado,
sua entidade patronal, e pretendendo a condenação deste no pagamento de
diferentes quantias, a título de diuturnidades vencidas e não pagas e de
gratificação concedida em 1975, bem como na reintegração do autor como seu
empregado na categoria que exercia antes no Banco C., entretanto objecto de
fusão com o banco demandado, bem como no pagamento dos salários que entretanto
se venceram até efectiva reintegração, acrescendo juros sobre todas as quantias
em dívida. A petição foi assinada pelo próprio autor, invocando a sua qualidade
de advogado em causa própria ('in rem propriam').
A acção foi contestada, foram elaborados despacho
saneador, especificação e questionário, seguindo-se a tramitação prevista na lei
até à realização do julgamento.
Por sentença de 13 de Julho de 1990, foi julgada
a acção parcialmente procedente, sendo condenado o Banco demandado a pagar as
quantias peticionadas pelo autor, a título de gratificação devida no ano de
1975 e de diuturnidades e respectivos juros, e absolvido quanto ao pedido de
reintegração como empregado do réu.
Desta sentença interpôs recurso de apelação o
autor.
Por acórdão proferido em 8 de Julho de 1991, foi
negado provimento ao recurso pelo Tribunal da Relação do Porto.
Ainda inconformado, interpôs o mesmo recurso de
revista, o qual foi admitido.
Nas alegações, sustentou que devia ser revogado o
acórdão recorrido, 'a não se aplicar o disposto na alínea ii) do art. 1º da lei
23/91, de 4 de Julho' (a fls. 254 vº). Nas contra-alegações, o Banco recorrido
não fez qualquer alusão a esta lei de amnistia.
No parecer do Ministério Público, sustentou-se
que devia ser aplicada no caso sub judicio a norma amnistiadora constante da Lei
nº 23/91, com todas as consequências legais (a fls. 273 e vº).
Sugerido por um dos conselheiros adjuntos do
relator no Supremo Tribunal de Justiça que fossem ouvidas ambas as partes sobre
a questão prévia de aplicação da amnistia, assim veio e ser ordenado por
despacho de fls. 283 vº.
O recorrente declarou conformar-se e louvar-se no
parecer do Ministério Público, ao passo que o Banco recorrido a tal se opôs,
sustentando que a amnistia laboral era inconstitucional por o Estado não poder
dispor de um poder punitivo de que não era titular, tratando arbitrariamente a
propriedade pública privadamente titulada. Fosse como fosse, o Banco recorrido
havia deixado de ser uma empresa pública, tendo sido transformado em sociedade
anónima de capitais públicos pelo Decreto-Lei nº 321-A/90, de 15 de Outubro,
para ser o seu capital ulteriormente privatizado a cem por cento. E, na
realidade, fora alienado 33% do seu capital, alienação que transformou o Banco
recorrido em sociedade de capitais mistos, públicos e privados, onde não podia
operar uma amnistia dirigida a empresas públicas e a sociedades de capitais
integralmente públicos. Acrescia ainda que o recorrente não tinha legitimidade
para pedir a aplicação da amnistia à sua pessoa, porque ele próprio afirmava
que não havia cometido qualquer infracção.
A fls. 299 dos autos, acha-se um ofício da
Comissão de Acompanhamento das Privatizações, datado de 25 de Junho de 1992, a
responder a solicitação de informação do Tribunal, de onde consta que a
privatização de 33% do capital social do Banco recorrido ocorrera em 11 de
Dezembro de 1990.
O relator relegou para final a apreciação de
questão prévia, entendendo que deveria conhecer-se prioritariamente do mérito,
para se apurar se havia ou não justa causa de despedimento. Foi, assim, ordenado
que se seguissem novos vistos, tendo o representante do Ministério Público
considerado insubsistente a justa causa de despedimento invocada pela entidade
patronal. Reafirmou, porém, que, fosse como fosse, tinha de se considerar
amnistiada a eventual infracção disciplinar, por não relevar a privatização
posterior de parte do capital social do Banco recorrido, sob pena de se
perfilhar uma interpretação inconstitucional da norma amnistiadora, ao fazer-se
a distinção arbitrária entre funcionários que, à data do cometimento dos factos
pretensamente delituosos, eram empregados de empresas públicas ou de capitais
integralmente públicos, consoante a entidade patronal houvesse ou não passado a
ser, entretanto, uma empresa de capitais mistos.
Por acórdão de 28 de Abril de 1993, o Supremo
Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão
recorrido. Sobre a questão da aplicabilidade da amnistia, pode ler-se neste
acórdão:
'Quando a infracção foi cometida, o Banco era empresa pública. Quando a amnistia
foi concedida, já era sociedade anónima de capitais mistos.
A lei nº 23/91 ao limitar-se a empresas públicas ou de capitais
públicos exige esta natureza aquando a prática da infracção ou aquando a sua
entrada em vigor?
Aquele primeiro entendimento tem por si a igualdade de
tratamento. Infracções que foram cometidas, na mesma altura, em empresas
daquelas, terão igual tratamento.
Este segundo contradiz o princípio da igualdade: duas infracções
iguais, cometidas na mesma altura, p.e. em empresas bancárias diferentes, terão
tratamento desigual se um dos Bancos se manteve empresa pública ou de capitais
públicos e o outro não.
Mas a ir-se pela primeira solução, teria de se aceitar que afinal
a lei quis abarcar fazenda que já não era só de Estado e funcionários sobre quem
o Estado já não detinha todo o poder disciplinar. É então de se pôr a questão
de o poder ou não fazer, ou seja, da constitucionalidade ou não de tal amnistia.
E, aceitando-se a constitucionalidade, sempre se poderia questionar por que se
limitou a natureza das empresas (v.g. excluindo empresas de capitais
minoritariamente públicos).
Volta-se a lembrar a essência discriminatória de qualquer
amnistia.
E, com respeito por contrárias e doutas opiniões, aceita-se que a
amnistia se dirigiu apenas às empresas públicas ou de capitais públicos que o
eram ao tempo da sua entrada em vigor. A própria letra da lei, ao não
distinguir, não permitirá, sobretudo aqui, que se distinga. Empresas que são e
não que foram.
O que quer dizer que a amnistia não se aplica ao caso concreto. E
que, circunscrita aos termos em que o foi, não cumpre aqui saber se, dentro de
tais limites, é ou não constitucional'. (a fls. 327-328)
Deste acórdão interpôs recurso o representante do
Ministério Público 'nos termos dos arts. 72º, nº 1, al. a) e 70º, nº 1, als. a)
e b), da Lei nº 28/85', afirmando que o douto acórdão havia feito uma
interpretação da lei amnistiadora inconstitucional, por violação do princípio da
igualdade, questão oportunamente suscitada pelo Ministério Público.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 334.
O recorrente, por seu turno, requereu a aclaração
do acórdão, mas o seu pedido foi indeferido por acórdão proferido em 7 de Julho
de 1993 (acórdão de fls. 348 a 350).
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
O recorrente Ministério Público apresentou
alegações, nas quais concluiu do seguinte modo:
'1º - Não é inconstitucional a interpretação de uma lei de amnistia, segundo a
qual a aplicação desta é feita depender da verificação de uma dada situação de
facto, posterior ao cometimento da infracção, existente no momento do início da
vigência da lei que a decreta.
2º - No caso dos autos, a natureza da empresa cujos trabalhadores são abrangidos
pelo decretamento da amnistia das infracções disciplinares é um elemento
material relevante para a apreciação da própria legitimidade da disposição, por
via legislativa e pelo Estado, do poder disciplinar subjacente à amnistia.
3º - Ponderada a discricionariedade legislativa necessariamente envolvida no
decretamento de medidas de clemência, afigura-se que a referida interpretação
da lei ordinária não viola, só por si, o princípio constitucional da igualdade,
já que se não configura como totalmente desrazoável ou arbitrária, por
desprovida de suporte material bastante'. (a fls. 374-375 dos autos)
O Banco recorrido não apresentou contra-alegação.
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar antes de mais a natureza do
recurso interposto e a legitimidade do recorrente para interpor este recurso.
II
4.O requerimento de interposição do recurso de
fls. 332-333 acha-se subscrito pela Procuradora-Geral Adjunta em funções na
Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça e nele se indica, como se viu, que
o mesmo é interposto 'nos termos dos arts. 72º, nº 1, al. a) e 70º, nº 1,
alíneas a) e b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações
introduzidas pela Lei 85/89 de 7 de Setembro'. No mesmo requerimento, afirma-se
o seguinte:
'[O Ministério Público vem interpor recurso] porquanto no douto acórdão
proferido por este Supremo Tribunal a fls. 310 e seguintes dos autos em
epígrafe, datado de 29.4.93, se não aplicou a amnistia concedida pela Lei 23/91,
de 4 de Julho, art. 1º, al. ii), com o argumento de que à data da publicação
daquela lei o Banco réu já fora privatizado, embora fosse empresa pública à data
do cometimento dos factos delituosos pelo Autor na presente acção.
Ao assim entender, o douto acórdão em causa fez uma interpretação
inconstitucional do citado normativo - art. 1º, al. ii) da Lei 23/91 -
distinguindo onde a Lei não distingue e a Constituição proíbe, por violação do
princípio da igualdade de tratamento garantido no seu art. 13º, entre
funcionários que praticaram ao serviço de empresas públicas factos delituosos
iguais ou semelhantes, amnistiáveis nos termos daquela Lei, só pela
circunstância aleatória de, como o caso da empresa Ré, ter sido privatizada
antes da entrada em vigor da citada amnistia mas depois da data prevista no
corpo do art. 1º, da Lei 23/91, [...]
Esta inconstitucionalidade foi oportunamente suscitada no parecer
do Ministério Público a fls. 301 verso e seguintes, pelo que se requer seja
admitido o recurso a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito
devolutivo'
Como a entidade recorrente aludiu às alíneas a) e
b) do nº 1 do art. 70º no seu requerimento, cumpre averiguar se houve lapso na
indicação das duas alíneas.
Nas alegações da entidade recorrente, subscritas
pelo Representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional,
considera-se que o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº
1 do art. 70º, devendo-se a lapso a indicação cumulativa da alínea a) no
requerimento.
Aceita-se a correcção, afigurando-se
efectivamente que a interpretação da norma amnistiadora, para delimitação do seu
âmbito de aplicação subjectiva, perfilhada pelo acórdão recorrido foi impugnada
como inconstitucional no segundo visto do Ministério Público, a fls. 304-305,
portanto durante o processo. Por outro lado, é mais duvidoso que se pudesse
sustentar que a decisão recorrida desaplicou, de forma implícita, com fundamento
em inconstitucionalidade, um segmento ideal do art. 1º, alínea ii), da Lei nº
23/91, de 4 de Julho. Seja como for, dada a correcção feita nas alegações do
Ministério Público, tem de entender-se que se está perante um recurso interposto
ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
A norma amnistiadora refere o seguinte:
'Art. 1º - Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são
amnistiados:
-------------------------------------------
ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas
ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado
pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e
transitada'.
Ora, o Ministério Público sustentou que sofreria
de inconstitucionalidade material, por violação do art. 13º da Lei Fundamental,
uma interpretação desta norma que exigisse, para poder aplicar-se a amnistia,
que, à data da entrada em vigor da Lei nº 23/91, a entidade patronal continuasse
a ter a natureza de empresa pública ou de empresa de capitais exclusivamente
públicos, ainda que as infracções disciplinares houvessem sido cometidas numa
altura em que tal entidade patronal detinha essa natureza (como era o caso dos
autos).
Não restam, assim, dúvidas de que,
'atempadamente, por meio idóneo e de forma suficientemente clara, foi, pelo
Ministério Público, suscitada a questão da inconstitucionalidade da norma da
alínea ii) do artigo 1º da Lei nº 23/91, na interpretação atrás referida', tal
como não restam dúvidas de que o Supremo Tribunal de Justiça interpretou a norma
amnistiadora de modo contrário ao preconizado pelo Ministério Público,
considerando que não era aplicável o entendimento mais favorável ao princípio
de igualdade, pois as amnistias tinham essência discriminatória por definição,
preconizando antes que a amnistia 'se dirigiu apenas às empresas públicas ou de
capitais exclusivamente públicos, que o eram à data da entrada em vigor da lei
de amnistia, tendo sido nesta interpretação que o artigo 1º, alínea ii) da Lei
nº 23/91, foi aplicado' (formulações das alegações da entidade recorrente a fls.
363 e 364 dos autos).
5. Assente que o presente recurso foi interposto
ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional,
há-de perguntar-se se o Ministério Público tinha legitimidade para interpor tal
recurso.
De facto, depois de no nº 1 do art. 72º da Lei do
Tribunal Constitucional se estabelecer que têm legitimidade para recorrer para
este Tribunal o Ministério Público e as 'pessoas que, de acordo com a lei
reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para
dela interpor recurso', o nº 2 do mesmo artigo estatui que, nos recursos
previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, tais recursos 'só podem ser interpostos pela parte que haja
suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade'
Cabe, pois, perguntar se, no caso sub judicio, o
Ministério Público interpôs este recurso em representação do trabalhador ou se
pode considerar-se como parte para efeito de aplicação do nº 2 do art. 72º da
Lei do Tribunal Constitucional (cfr. acórdão nº 85/90, in Diário da República,
II Série, nº 165, de 19 de Julho de 1990; a posição do Ministério Público, com
referência ao contencioso administrativo, em resposta a um parecer do relator,
acha-se publicada in Revista de Direito Público ano VII, nº 13; Mário Torres,
Legitimidade para o Recurso de Constitucionalidade págs. 9 e segs.)
Como se sabe, o art. 8º do Código de Processo de
Trabalho estatui, na sua alínea a), que os agentes do Ministério Público devem o
patrocínio oficioso aos 'trabalhadores e seus familiares' e, por outro lado, o
art. 10º do mesmo diploma prevê que 'constituído mandatário judicial, cessa o
patrocínio judiciário que estiver a ser exercido, sem prejuízo da intervenção
acessória do Ministério Público' (sobre este patrocínio oficioso, veja-se o
acórdão nº 190/92, da 1ª Secção deste Tribunal, in Diário da República, II
Série, nº 189, de 18 de Agosto de 1992).
No caso sub judicio, o trabalhador demandante era
advogado inscrito na respectiva Ordem, tendo sempre agido como advogado em causa
própria.
Tem, assim, de entender-se que a intervenção do
Ministério Público nos presentes autos foi feita a título acessório, tal como se
acha previsto no art. 10º do Código de Processo do Trabalho. Isso mesmo resulta
da circunstância de o autor, na sua dupla qualidade de parte e de advogado 'in
rem propriam', nunca ter deixado de exercer o patrocínio da sua causa,
nomeadamente quando, no requerimento de fls. 285, apresentado no Supremo
Tribunal de Justiça, veio, 'louvando-se nos doutos pareceres juntos' pela
Procuradora-Geral Adjunta, requerer que a questão prévia da aplicação da
amnistia fosse levada à conferência para decisão, ou quando, no requerimento de
fls. 337, veio requerer a aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
quando já havia sido interposto recurso de constitucionalidade pela referida
representante do Ministério Público.
6. Importa, por isso, resolver a questão da
legitimidade do Ministério Público para interpor o recurso da alínea b) do nº 1
do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional como mera parte acessória.
Ora, o Tribunal Constitucional vem entendendo
que, em casos como o presente, o Ministério Público carece de tal legitimidade.
Assim, no recente acórdão nº 636/94 (publicado no Diário da República, II Série,
nº 26, de 31 de Janeiro de 1995) pode ler-se o seguinte passo:
' Ora, no presente caso, o Ministério Público, ao suscitar a questão
de inconstitucionalidade - o que fez nos autos de recurso, interposto pelo D.
para o Supremo Tribunal de Justiça - não o fez como representante de qualquer
das partes do processo.
Partes do processo são, com efeito, o autor e o réu
(respectivamente, recorrido e recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça).
A intervenção do Ministério Público foi, por conseguinte, uma
intervenção acessória, como bem decorre do que se dispõe no artigo 10º do Código
de Processo do Trabalho, conjugado com o artigo 8º, alínea b), do mesmo Código,
combinados ambos com o artigo 5º, nº 1, alínea d), da Lei Orgânica do Ministério
Público (Lei nº 47/86, de 5 de Outubro).
Não tendo o Ministério Publico tido intervenção principal no
processo, pois que não era parte nele, e tratando-se de um recurso interposto ao
abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional
(isto é, de um recurso de uma decisão que aplicou norma arguida de
inconstitucional), não tem ele legitimidade para recorrer para este Tribunal.
'No caso de recurso de 'aplicação' duma norma [...], a
legitimidade restringe-se compreensivelmente à parte que suscitou a questão de
inconstitucionalidade' - escreve J. M. CARDOSO DA COSTA (A Jurisprudência
Constitucional em Portugal, 2ª edição, Coimbra, 1992, página 52).
Por isso, nesta espécie de recurso - como escrevem J.J. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª
edição, Coimbra, 1993, página 1021) -, 'o Ministério Público não tem
legitimidade específica para recorrer, salvo quando seja parte e tenha sido ele
a arguir a inconstitucionalidade'.
É esta uma solução que bem se compreende.
De facto, a legitimidade para interpor recurso para o Tribunal
Constitucional identifica-se, em primeira linha, com a legitimidade para
recorrer nos termos gerais [cf. artigo 72º, nº 1, alínea b), já atrás citado].
Pertence, por isso, à parte vencida no processo, ou seja, à parte a quem a
decisão foi desfavorável - parte que, por isso, tem interesse em fazê-la revogar
ou reformar.
O Ministério Público tem, pois, legitimidade para recorrer para o
Tribunal Constitucional, se, no processo, representar uma parte que aí tenha
ficado vencida.
Mas, mesmo não representando parte vencida no processo, o
Ministério Público, nalguns casos, pode (melhor: deve) recorrer para o Tribunal
Constitucional: é o que sucede quando uma decisão judicial recusa aplicação, com
fundamento em inconstitucionalidade, a uma norma constante de convenção
internacional, acto legislativo ou decreto regulamentar; e, bem assim, quando
aplica norma já antes julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional ou
pela Comissão Constitucional (cf. o nº 2 do artigo 72º da Lei do Tribunal
Constitucional).
Nos dois casos por último apontados, em que o Ministério Público
pode recorrer para o Tribunal Constitucional mesmo não sendo parte no processo,
a legitimidade para recorrer assenta no facto de ele agir no recurso em defesa
de um interesse público objectivo (o interesse da constitucionalidade) - que é o
que não sucede com as partes, que actuam sempre para defender os seus direitos e
interesses, ou seja, um interesse subjectivo. E a isto acresce que, estando em
causa uma decisão que aplique norma já antes julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional, a obrigatoriedade do recurso para o Ministério Público
arranca da ideia de garantir o primado da competência deste Tribunal em questões
de constitucionalidade - primado que a Constituição consagra (cf. artigos 207º,
211º, nº 1, 212º, nº 1, 223º e 280º da Constituição).
No tocante às decisões que apliquem normas arguidas de
inconstitucionais durante o processo, que antes este Tribunal nunca julgou
incompatíveis com a Constituição, não se verifica nenhuma das razões capazes de
obrigar à intervenção do Tribunal.
7. Reitera-se a argumentação agora transcrita
pelo que se impõe a conclusão de que o Ministério Público carecia de
legitimidade para interpor o presente recurso.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide
o Tribunal Constitucional não conhecer do objecto do recurso, por falta de
legitimidade do recorrente.
Lisboa, 4 de Abril de1995
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Luís Nunes de Almeida