Imprimir acórdão
Processo n.º 116/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. requereu à Segurança Social que lhe fosse concedido apoio judiciário.
O Instituto da Segurança Social proferiu decisão de indeferimento.
O Requerente impugnou esta decisão junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra desacompanhado do pagamento de qualquer taxa de justiça.
Em 8 de novembro de 2011 foi proferido despacho, considerando que não era devido o pagamento de qualquer taxa de justiça prévia pela dedução daquela impugnação, com fundamento na inconstitucionalidade do artigo 12.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 6.º, n.º 1, 1.ª parte, do Regulamento das Custas Processuais, na parte em que estatui que “nos processos relativos à impugnação judicial da decisão sobre a concessão do apoio judiciário, atende-se ao valor indicado no Quadro 1, da Tabela I-B”, sendo que “a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado”.
O Ministério Público recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, requerendo a fiscalização da constitucionalidade da norma cuja aplicação foi recusada.
Apresentou alegações com as seguintes conclusões:
1º A norma do artigo 12.º, n.º 1, alínea a), conjugada com o artigo 6.º, n.º 1, primeira parte, ambos do Regulamento das Custas Processuais, na parte em que estatui que «Nos processos relativos à impugnação judicial da decisão sobre a concessão do apoio judiciário, atende-se ao valor indicado no Quadro 1 da Tabela I – B», sendo que «A taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado (…)», não afronta a Constituição, nomeadamente, o seu artigo 20.º, n.º 1.
2.º Com efeito, a taxa de justiça devida pelo impulso processual em causa, calculada nos termos das normas questionadas, cifra-se em metade de uma unidade de conta, ou seja, em € 51,00.
3.º Valor esse que, a nosso ver, não se afigura desproporcionado, nem constitui um fator inibitório ao exercício do direito de impugnação da decisão administrativa de indeferimento do pedido de concessão do apoio judiciário.
4.º Pelo que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.
Fundamentação
1. Do objeto do recurso
A decisão recorrida, na sua parte decisória, pronunciou-se pela inconstitucionalidade do artigo 12.º, n.º 1, alínea a), conjugado com o artigo 6.º, n.º 1, 1.ª parte, do Regulamento das Custas Processuais, na parte em que estatui que “nos processos relativos à impugnação judicial da decisão sobre a concessão do apoio judiciário, atende-se ao valor indicado no Quadro 1, da Tabela I-B”, sendo que “a taxa de justiça corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado”.
Da leitura da fundamentação resulta, com evidente clareza, que a recusa de aplicação da conjugação dos referidos segmentos destes preceitos legais, com fundamento em inconstitucionalidade, teve como pressuposto a sua interpretação com o sentido de que a apreciação da impugnação judicial da decisão administrativa que negou a concessão de apoio judiciário está condicionada ao pagamento prévio da taxa de justiça prevista no artigo 12,º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais, pelo que deve ser essa interpretação normativa o objeto do presente recurso de constitucionalidade.
2. Do mérito do recurso
O n.º 1, do artigo 20.º, da Constituição, na redação introduzida pela Revisão Constitucional de 1997, dispõe que “a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
A garantia fundamental do acesso aos tribunais é uma concretização do princípio do Estado de Direito que apresenta uma dimensão prestacional na parte em que impõe ao Estado o dever de assegurar meios tendentes a evitar a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos.
Em texto que mantém toda a atualidade, a Comissão Constitucional, com referência à versão originária da Constituição, afirmou no Parecer n.º 8/78, de 23 de fevereiro (in Pareceres da Comissão Constitucional, 5.º volume, pág. 3), a tal propósito:
“Ao assegurar o«acesso aos tribunais, para defesa dos seus direitos», a primeira parte do n.º1 do artigo 20.º da Constituição consagra a garantia fundamental que se traduz em confiar a tutela dos direitos individuais àqueles órgãos de soberania a quem compete administrar a justiça em nome do povo (artigo 205.º). A defesa dos direitos e dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos integra expressamente o conteúdo da função jurisdicional, tal como ela se acha definida no artigo 206.º da lei fundamental.
Do mesmo passo, ao assegurar a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, o legislador constitucional reafirma o princípio geral da igualdade consignado no n.º 1 do artigo 13.º
Mas indo além do mero reconhecimento de uma igualdade formal no acesso aos tribunais, o n.º 1 do artigo 20.º, na sua parte final, propõe-se afastar neste domínio a desigualdade real nascida da insuficiência de meios económicos, determinando expressamente que tal insuficiência não pode constituir motivo de denegação da justiça.
Está assim o legislador constitucional a consagrar uma aplicação concreta do princípio sancionado no n.º 2 do artigo 13.º, segundo o qual «ninguém pode ser (…) privado de qualquer direito (…) em razão de (…) situação económica».
Não se dirá, todavia, que do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição decorre o imperativo de uma justiça gratuita.
O sentido do preceito, na sua parte final, será antes o de garantir uma igualdade de oportunidades no acesso à justiça, independentemente da situação económica dos interessados. E tal igualdade pode assegurar-se por diferentes vias, que variarão consoante o condicionalismo jurídico-económico definido para o acesso aos tribunais. Entre os meios tradicionalmente dispostos em ordem a atingir esse objetivo conta-se, como é sabido, o instituto de assistência judiciária, mas, ao lado deste, outros institutos podem apontar-se ou vir a ser reconhecidos por lei.
Será assim de concluir que haverá violação da parte final do n.º 1 do artigo 20.º da Constituição se e na medida em que na ordem jurídica portuguesa, tendo em vista o sistema jurídico-económico aí em vigor para o acesso aos tribunais, puder o cidadão, por falta de medidas legislativas adequadas, ver frustrado o seu direito à justiça, devido a insuficiência de meios económicos.”
Para evitar a denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, a Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com a redação introduzida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, consagrou um sistema de acesso ao direito e aos tribunais que assenta essencialmente na concessão da proteção jurídica na modalidade de apoio judiciário.
Nos termos do referido diploma legal, o acesso ao direito e aos tribunais compreende a informação jurídica e a proteção jurídica (artigo 2.º, n.º 2).
Por seu turno, a proteção jurídica reveste as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário (artigo 6.º, n.º 1).
A consulta jurídica consiste no esclarecimento técnico sobre o direito aplicável a questões ou casos concretos nos quais avultam interesses pessoais legítimos ou direitos próprios lesados ou ameaçados de lesão (artigo 14.º, n.º 1).
O apoio judiciário compreende as seguintes modalidades: a) dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo; b) nomeação e pagamento da compensação de patrono; c) pagamento da compensação de defensor oficioso; d) pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo; e) nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono; f) pagamento faseado da compensação de defensor oficioso (artigo 16.º, n.º 1).
Com este sistema diversificado de superação dos entraves económicos ao acesso à justiça procurou-se que ninguém deixasse de exercer os direitos que lhe são reconhecidos pela ordem jurídica por insuficiência de meios para suportar os custos desse exercício.
O acesso ao descrito sistema de apoio judiciário efetua-se através de um procedimento administrativo que passou a ser da competência dos serviços da segurança social com a entrada em vigor da Lei 30-E/2000, de 20 de dezembro.
Foi então argumentado pelo então Ministro da Justiça que “o apoio judiciário destina-se a quem se encontra em situação de carência económica e constitui uma prestação social dos Estado idêntica às suas outras prestações sociais. Não deve, por isso, ser tramitada em tribunal, como é atualmente, mas, sim, nos serviços da segurança social, como acontece com as demais prestações sociais. (...) Ora, a atribuição de uma prestação social de apoio judiciário é o mesmo que a atribuição de uma prestação social de subsídio de desemprego, de rendimento mínimo garantido, de qualquer outra prestação social relativamente às quais não se vai requerer ao tribunal a sua concessão” (Vide discussão, na generalidade, da proposta de lei n.º 51/VIII, D.A.R. I Série, n.º 26, págs. 993-994).
A atribuição de competência decisória a uma entidade administrativa em matéria de concessão de apoio judiciário teve por objetivo libertar os tribunais do peso burocrático dos procedimentos de avaliação da situação económica dos interessados num contexto de ausência de qualquer litígio carecido de composição, não se deixando, contudo, de assegurar a possibilidade de impugnação judicial da decisão administrativa (artigo 26.º, n.º 2 e 27.º, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho).
Algumas normas em matéria de custas neste procedimento de impugnação judicial já foram objeto de fiscalização de constitucionalidade por este Tribunal.
Assim, nos Acórdãos n.º 255/07, 299/07 e 43/2011 (todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), entendeu-se que, atribuindo o preceito do Código das Custas Judiciais em análise um valor tributário desproporcionado ao processo, através do qual se impugnava o indeferimento administrativo do pedido de apoio judiciário, essa norma constituía naturalmente num fator inibitório ao exercício do direito de impugnação, decorrente da ponderação do valor das custas no caso de um possível e eventual decaimento, pelo que se declarou inconstitucional a norma contida na alínea o), do n.º 1, do artigo 6.º, do Código das Custas Judiciais, na parte em que tributava em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário, por violação do n.º 1, do artigo 20.º, em conjugação com o artigo 18.º, da Constituição.
E no Acórdão n.º 420/2006 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt) julgaram-se inconstitucionais, por violação do artigo 20º, n.º 1, da Constituição, as normas dos artigos 6.º, n.º 1, alínea o), 14.º, n.º 1, alínea a), 23.º, n.º 1, 24.º, n.º 1, alínea c), 28.º e 29.º, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, na redação emergente do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro, quando interpretadas no sentido de que a impugnação judicial da decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário não está dispensada do pagamento prévio da taxa de justiça inicial, calculada com referência ao valor da causa principal, e determinando a omissão do pagamento o desentranhamento da alegação apresentada e a preclusão da apreciação jurisdicional da impugnação deduzida.
Neste aresto entendeu-se que, se a resolução da questão da insuficiência de meios económicos para suportar os custos de um processo estiver, ela própria, condicionada ao pagamento de uma taxa de justiça prévia, imperioso se torna concluir que os requerentes de apoio judiciário que não possuam tais meios – e não pode obviamente excluir-se a hipótese de existirem requerentes nessa situação, a quem a Administração indevidamente negou o apoio judiciário – nunca têm acesso aos tribunais, quer para discutir o acerto da decisão administrativa que lhes indeferiu o pedido de apoio judiciário, quer para, em última análise, sustentarem em juízo as suas pretensões.
É este exatamente o problema que nos coloca a norma sub iudicio.
Na verdade, a decisão recorrida interpretou o disposto nos artigos 12.º, n.º 1, alínea a), e 6.º, n.º 1, 1.ª parte, do Regulamento das Custas Processuais, como impondo, atualmente, o pagamento prévio da taxa de justiça prevista no referido artigo 12,º, n.º 1, alínea a), como condição da apreciação da impugnação judicial da decisão dos serviços da Segurança Social que negou a concessão de apoio judiciário.
Essa taxa tem um valor fixo de metade da unidade de conta que, atualmente, corresponde a € 51,00.
Apesar de esta taxa ter um baixo valor, não nos podemos esquecer que o regime de apoio judiciário se destina precisamente a pessoas com uma débil situação económica que não lhes permite fazer face aos custos de utilização do sistema de justiça, não sendo possível excluir a hipótese de existirem requerentes que se encontrem numa situação de não poderem dispor daquela quantia para poderem ter acesso a um regime que lhes permita exercer os seus direitos sem constrangimentos económicos. Tenha-se presente que, por exemplo, o valor de referência individual do Rendimento Social de Inserção é de apenas € 189,52.
Ora, o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, pressupõe, desde logo, que tal acesso não seja dificultado em função da condição económica das pessoas, o que necessariamente sucede quando a lei constrange o particular a acatar a decisão administrativa proferida a propósito dessa mesma condição económica, unicamente porque não tem meios económicos para obter a sua reapreciação judicial.
Na verdade, não é possível condicionar ao pagamento prévio de uma taxa pelo requerente de apoio judiciário, mesmo que de baixo valor, a verificação judicial da sua situação de insuficiência económica para suportar os custos do exercício dos seus direitos, uma vez que essa exigência pode precisamente impedir a finalidade constitucional visada com a criação do sistema de apoio judiciário, ou seja o acesso a esse exercício daqueles que se encontrem numa situação de carência económica.
Por estas razões deve ser confirmado o juízo de inconstitucionalidade formulado pela decisão recorrida, julgando-se improcedente o recurso.
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma contida na leitura conjugada dos artigos 12.º, n.º 1, alínea a), e 6.º, n.º 1, 1.ª parte, do Regulamento das Custas Processuais, na interpretação de que a apreciação da impugnação judicial da decisão administrativa que negou a concessão de apoio judiciário está condicionada ao pagamento prévio da taxa de justiça prevista no referido artigo 12,º, n.º 1, alínea a);
e, em consequência,
b) julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.
Lisboa, 23 de maio de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.