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Proc. nº 498/92
1ª Secção
Rel. Cons.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Director do Estabelecimento Prisional de -----------
determinou ao recluso A. a sanção de trinta dias de encerramento em cela
disciplinar e a sua transferência, ao fim desse tempo, para o Pavilhão de
Admissão, no sentido de aí permanecer com duas horas diárias de recreio, durante
três meses.
A decisão imputava àquele recluso o facto de haver 'agredido um
outro recluso, e provocado o seu internamento no hospital, em estado muito
grave', e dava conta da comunicação do mesmo facto ao tribunal para efeitos de
procedimento criminal.
O recluso A., notificado, recorreu daquela decisão para o Tribunal
de Execução de Penas de Lisboa, nos termos do artigo 143º do Decreto-Lei nº
265/79, de 1 de Agosto. Nesse tribunal, o Ministério Público, em requerimento de
15 de Julho de 1992, dirigido ao juiz, considerou existirem 'indícios
suficientes para a prática de crimes, cuja instrução cabe ao Tribunal Judicial
do Cartaxo' e afirmou a seguir: 'A aplicação da sanção disciplinar nos termos do
art. 134º al. r) do D.L. 265/79, de 1 de Agosto, parece inconstitucional face
aos artigos 32º, nºs 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa. Assim,
requere-se que a notificação da decisão seja efectuada ao Exmo. colega de turno,
para efeitos dos arts. 70º, nº 1, al. b), e 72º, nº 2, da Lei n. 28/82'.
Ainda em 15 de Julho de 1992, realizou-se a audição do recluso e, a
seguir, o sr. juiz decidiu manter a sanção disciplinar que ao mesmo fora
determinada e, ponderando a existência de indícios da prática de crimes,
ordenou que se enviasse cópia do processo ao Tribunal Judicial da Comarca do
Cartaxo.
Desta decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal
Constitucional, nos termos do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, considerando que 'a norma tem o seu fundamento no artigo 132º,
alínea e) [quer antes referir a alínea r)] do Dec.Lei nº 265/79, de 1 de Agosto'
e que tal norma afronta o artigo 32º, nºs 2 e 4, da Constituição da República.
O Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no
sentido da não inconstitucionalidade da norma impugnada, do artigo 132º, alínea
r), do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto. Concluiu assim:
'1ª. As garantias do processo criminal, constantes dos nºs 2 e 4 do
artigo 32º da Constituição, não são directamente aplicáveis ao processo
disciplinar, limitando-se quanto a este, a Constituição a prescrever que são
garantidas ao arguido a sua audiência e defesa (artº 269º, nº 3);
2ª Radicando as responsabilidades criminal e disciplinar na violação
de bens jurídicos de diferente natureza, há concurso real de infracções sempre
que o mesmo comportamento do arguido preencha simultaneamente aquelas duas
ordens normativas; pelo que não viola o princípio do 'non bis in idem',
proclamado pelo nº 5 do artigo 29º da Lei Fundamental, a possibilidade de
apreciação autónoma da responsabilidade disciplinar - mesmo antes de decidido o
processo penal - e a sucessiva imposição ao arguido de sanções de natureza
diversa.'
Contra-alegando, o recluso A. defendeu a tese de
inconstitucionalidade da norma do artigo 132º, alínea r), do Decreto-Lei nº
265/74, norma que confrontou com os artigos 32º, nºs. 2 e 4, e 29º, nº 5, da
Constituição da República [princípio do 'non bis in idem']. 'O respeito por este
princípio - disse - deverá determinar a suspensão da instância disciplinar e
aguardar a decisão definitiva a proferir no processo crime'.
II - Segundo o artigo 132º do Decreto-Lei 265/79, com a redacção do
Decreto-Lei nº 49/80, de 22 de Março, 'as medidas disciplinares são aplicadas,
sem prejuízo do disposto no artigo 128º, de uma forma geral, a todos os reclusos
cuja conduta contrarie a ordem e a disciplina do estabelecimento e os fins tidos
em vista na execução da medida privativa de liberdade, bem como a reclusos que
sejam declarados responsáveis, nomeadamente por: r) factos previstos na lei como
crime'.
É aquela mesma legislação penitenciária a elencar ainda as medidas
sancionatórias de natureza disciplinar, que vão da suspensão até ao internamento
em cela disciplinar até um mês (artigo 133º) e a atribuir competência para a sua
aplicação ao director do estabelecimento prisional em causa (artigo 136º). Em
se tratando da medida de internamento em cela disciplinar por tempo superior a
oito dias, há direito de recurso para o juiz do tribunal de execução das penas
(artºs. 143º a 148º).
Para o recorrente, a norma transcrita do artigo 132º, alínea r)
contraria os artigos 32º, nºs 2 e 4 da Constituição da República. Os fundamentos
desta tese não estão, porém, claros no momento da arguição de
inconstitucionalidade. Mas, ponderando os enunciados das normas constitucionais
invocadas ['Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da
sentença' (artº 30º, nº 2); 'Toda a instrução é da competência de um juiz' (artº
30º, nº 4)] há-de entender-se, como o fez o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste
Tribunal, que o recurso se funda numa ideia segundo a qual 'a imposição de
sanções disciplinares em consequência da prática de uma conduta que
simultaneamente preencha um tipo legal de crime, só poderia ter lugar no âmbito
do processo criminal, com todas as garantias de defesa próprias deste'.
Ora, a Constituição não impõe a transferência de todas as garantias
de processo penal consagradas no artigo 32º para o domínio do processo
disciplinar, nem impõe a unificação das punições ou a sua imposição cumulativa
naquele processo.
A sanção disciplinar pressupõe um procedimento administrativo com as
garantias de audiência e defesa que decorrem do artigo 269º, nº 2, da
Constituição, e outras que com essas estão conexionadas e que se ligam aos
próprios fundamentos do Estado de Direito democrático: as do contraditório, de
consulta do processo e de recurso. Estas garantias - que são as adequadamente
convocáveis no caso em apreço - não são postas em causa no sistema da lei que
integra a norma em apreço do artigo 132º, alínea r). [cf. artigos 143º, 144º,
145º, 146º do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto]. As outras garantias, do
julgamento no mais curto prazo e da competência do juiz para a instrução,
informam directamente a estrutura do processo penal e não é deste processo que
aqui se trata.
Como se disse no acórdão nº 263/94 [D.R., II Série, de
19-07-1994], que procedeu também ao controlo da norma do artigo 132º, alínea r),
do Decreto-Lei nº 265/79, 'tratando-se de uma responsabilidade disciplinar
sancionada através de um processo administrativo, não estão as disposições que
regulam tal responsabilidade e o respectivo processo sancionador subordinados às
normas constitucionais aplicáveis ao processo penal (...)'.
E é ainda um fundamento de independência e separação dos direitos
penal e disciplinar a fazer concluir que a norma do artigo 132º, alínea r), do
Decreto-Lei nº 265/79, não afronta o princípio 'non bis in idem', consagrado no
artigo 29º, nº 5, da Constituição da República. [Se bem que esta norma não seja
invocada pelo recorrente, ela é porém expressamente referida pelo recorrido, em
alegações para o Tribunal Constitucional].
Ora, da autonomia entre responsabilidade penal e responsabilidade
disciplinar deriva que a imposição a uma mesma pessoa, como consequência de um
mesmo facto, de duas sanções diferentes, uma de natureza penal, a outra de
natureza disciplinar, não está a pôr em causa o princípio 'non bis in idem', que
proíbe a aplicação repetida de sanções jurídico-penais pela prática da mesma
infracção.
A norma do artigo 132º, alínea r), concorre, no caso, com as normas
de direito penal que eventualmente hajam de aplicar-se aos factos praticados
pelo recorrido. Estes factos desencadearam a um tempo formas de responsabilidade
diferenciadas - a penal e a disciplinar - ligadas com a violação de bens
jurídicos também diferenciados - os bens jurídico-penalmente relevantes, da
saúde e integridade física - e os bens disciplinarmente relevantes, da
convivência ordenada da comunidade de reclusos (cf., artigo 110º, nº 3, do
Decreto-Lei nº 265/79).
Trata-se, como se afirmou ainda no Acórdão nº 263/94, cit., 'nestes
casos, de convergências ou concursos de normas sancionadoras de natureza diversa
(no caso, normas penais e disciplinares), situação que é bem conhecida dos
diferentes ordenamentos jurídicos e se acha bem estudada pela teoria geral do
direito. Tratando-se deste concurso de normas sancionadoras de diferente
natureza, parece intuitivo que não pode dar-se prevalência a uma sobre a outra,
na ausência de norma que disponha nesse sentido (...). E, depois, advertiu: 'o
que acaba de dizer-se pressupõe, como é óbvio, que as sanções aplicadas sejam de
diferente natureza pois, de outro modo, poderia sustentar-se que se tratava de
uma dupla penalização criminal não obstante as diferentes qualificações formais
das leis em presença. Ora, não restam dúvidas de que o internamento do recluso
em cela disciplinar não é uma sanção penal, que se configura como uma típica
sanção disciplinar, que se traduz aqui num carácter mais gravoso da forma de
execução de uma pena criminal privativa da liberdade do recluso'...
Ao que acresce que, no sistema do Decreto-Lei nº 265/79, a garantia
do juiz surge como controlo da determinação da pena a que se abrem as normas
disciplinares aqui em causa: por via dela se averigua a imputação do facto ao
recluso, a culpa e também a relevância disciplinar autónoma da conduta que se
apresenta como crime.
Conclui-se, assim, que a norma do artigo 132º, alína r), do
Decreto-Lei nº 265/79, com a redacção do Decreto-Lei nº 49/80, de 22 de Março,
não viola o artigo 32º, nºs 2 e 4, nem o artigo 29º, nº 5, da Constituição da
República.
III - Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e, em
consequência, confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 23 de Março de 1995
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria Fernanda Palma (vencida nos termos da
declaração de voto junta)
José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Votei vencida por entender que a norma contida no artigo
143º, alínea r), do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto, viola o princípio
constitucional da presunção de inocência do arguido previsto no artigo 32º, nº
2, e consequentemente a garantia do artigo 32º, nº 4, da Constituição.
Entendo que a referida norma viola o princípio da
presunção de inocência do arguido, na medida em que faz depender a aplicação das
medidas disciplinares previstas no artigo 133º da declaração do recluso como
responsável por factos previstos na lei como crime [artigo 143º, alínea r)], sem
que o recluso disponha, previamente à aplicação de tais medidas disciplinares,
de todas as garantias do processo penal que lhe permitam defender-se da acusação
da prática de um facto previsto como crime (pois apenas se prevê o direito de
recurso para o tribunal de execução das penas - artigos 143º a 148º). Deste
modo, a mera presunção de responsabilidade criminal fundamenta a aplicação de
medida disciplinar que pode chegar a consistir numa alteração qualitativa da
pena de prisão como acontece no caso do artigo 133º (internamento em cela
disciplinar até um mês).
É notório que a norma do artigo 143º vem permitir que o
recluso que praticou um facto previsto na lei como crime no exercício de uma
causa de justificação ou sob o domínio de uma causa de exclusão de culpa,
situações só averiguáveis pelo processo penal, seja declarado responsável
criminalmente para efeitos disciplinares. Deste modo, ou a responsabilidade
disciplinar pressupõe averiguação da responsabilidade criminal sem a plenitude
das garantias de defesa do processo penal ou se basta com a prática de um facto
previsto como crime ainda que corresponda ao exercício de um direito de defesa
ou de necessidade do recluso. Ambas as hipóteses são juridicamente
insustentáveis: no primeiro caso, violam-se as garantias de defesa; no segundo,
admite-se responsabilidade disciplinar pela prática de um facto previsto como
crime que até pode consistir no exercício de um direito.
Por outro lado, também está indirectamente afectado o
princípio non bis in idem, na medida em que não se prevêem com autonomia os
fundamentos da aplicação das medidas disciplinares e da responsabilidade
criminal, nem se delimita a responsabilidade em função do bem jurídico
disciplinarmente relevante. Não bastará afirmar que o princípio non bis in idem
é respeitado porque decorre das diferentes sanções uma diferente natureza do
ilícito fundamentante. É sempre necessário poder retirar da estrutura
comportamental e do seu significado valorativo uma verdadeira autonomia entre os
fundamentos de responsabilidade penal e disciplinar.
Maria Fernanda Palma