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Processo nº 23/93
1ª Secção
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A Sociedade C..., S.A., com sede em Lisboa, impugnou
judicialmente a decisão do vereador com competência delegada da Câmara Municipal
de Lisboa, de 31 de Março de 1992, que lhe aplicou a coima de 400.000$00 por, em
31 de Agosto de 1991, ter procedido, nesta cidade, ao despejo do entulho
proveniente de obras em terreno municipal, sem licença, o que constitui
infracção ao disposto na alínea a) do artigo 35º do Edital Camarário nº 112/90,
de 28 de Dezembro, punível pelo nº 4 do artigo 40º do mesmo diploma, com a coima
de 40.000$00 a 100.000$00 por metro cúbico ou fracção.
Remetido o respectivo processo ao Tribunal de
Polícia de Lisboa, procedeu-se a audiência de julgamento, em 10 de Dezembro de
1992, tendo o Senhor Juiz recusado a aplicação daquele artigo 40º, nº 4, por
violar o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição da República
(CR), na medida
em que estabelece um mínimo de coima superior a 500$00 e um máximo que, sendo
variável, pode ultrapassar os 6.000.000$00.
Do assim decidido foi oportunamente interposto
recurso pelo Ministério Público, nos termos dos artigos 280º, nº 1, alínea a),
da CR, e 70º, nº 1, alínea a), e 72º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
2.- Neste Tribunal apenas alegou o Ministério Público
que assim rematou os seus considerandos:
'1º- Os montantes mínimos e máximos das coimas a prever nos
regulamentos municipais devem respeitar os limites estabelecidos no regime geral
de punição do ilícito de mera ordenação social de proveniência autárquica,
constante do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei
nº 356/89, de 17 de Outubro) e do artigo 21º da Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro.
2º- Não envolve violação deste regime, não sendo, por isso,
inconstitucional, a norma do nº 4 do artigo 40º do Regulamento de Resíduos
Sólidos da Cidade de Lisboa, na parte em que - para um caso como o dos
presentes autos - fixa em 40.000$00 o limite mínimo da coima aplicável à
contra-ordenação consistente no despejo de entulhos de construção civil em
qualquer área pública do município prevista na alínea a) do artigo 35º do mesmo
diploma.
3º- Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente
juízo de não inconstitucionalidade.'
3.- Correram-se os vistos legais, baixaram os autos para
análise de eventual aplicação da medida de amnistia prevista na Lei nº 15/94, de
11 de Maio - alínea ff) do seu artigo 1º - e cumpre agora apreciar e
decidir.
II
Constitui objecto do presente recurso a questão de
constitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 40º do Regulamento dos Resíduos
Sólidos da Cidade de Lisboa constante do Edital Camarário nº 112/90, publicado
no Diário Municipal de 28 de Dezembro de 1990, na parte em que estabelece a
quantia de 40.000$00, por metro cúbico ou fracção, como limite mínimo da coima
aplicável à contra-ordenação prevista no artigo 35º, alínea a), do mesmo
diploma, e consistente no despejo de entulhos de construção civil em qualquer
área pública do município de Lisboa.
1.- Dispõe o artigo 35º do Regulamento mencionado:
'São proibidas no Município de Lisboa as seguintes condutas:
a) Despejar entulhos de construção civil em qualquer área
pública do Município;
b) Despejar entulhos de construção civil em qualquer terreno
privado sem prévio licenciamento Municipal e consentimento do proprietário.'
E, por sua vez, comina o artigo 40º, no seu nº 4:
'A violação ao disposto no artigo 35º constitui contra-ordenação
punida com coima de 40.000$00 a 100.000$00 por metro cúbico ou fracção, e os
responsáveis são obrigados a proceder à remoção dos entulhos no prazo máximo de
3 dias, findo o qual é aplicado um agravamento de 50% da coima'.
1.2.- Ora, o Tribunal recorrido deu como provada matéria de facto
subsumível àquele enquadramento legal, relativa a uma quantidade de entulho que
não foi possível determinar.
Mas considerou a este respeito:
'O artigo 40º, nº 4, do citado Edital estabelece como mínimo da
coima o valor de 40.000$00. Acresce que esse mínimo é variável em função da
quantidade de entulho.
Este montante é manifestamente superior aos 500$00 estabelecidos no
artigo 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, o qual estabelece
o mínimo geral das coimas.
Por outro lado, ao estabelecer também o máximo da coima variável,
pode por essa via ultrapassar-se o limite imposto no artigo 21º, nº 2, da Lei nº
1/87, de 6 de Janeiro, bem como o estabelecido no artigo 17º, nº 3, do
Decreto-Lei nº 433/82.'
Considerou, então, o magistrado recorrido que a
norma citada do nº 4 do artigo 40º viola o disposto naquele artigo 17º,
nomeadamente ao fixar um mínimo superior a 500$00, assim alterando a moldura
geral abstracta das coimas, recordando os Acórdãos do Tribunal Constitucional
nºs. 156/89 e 324/90 (publicados no Diário da República, II Série, de 22 de
Março de 1989 e de 19 de Março de 1991, respectivamente) os quais, ao invocarem
o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea d), da CR, sublinharam só à Assembleia
da República, ou com sua autorização, ser lícito ultrapassar os limites mínimos
e máximos das coimas previstas no artigo 17º, que devem obedecer a um quadro
rígido com referência a valores taxativos dos montantes mínimos.
Ora, observou-se então, o citado artigo 40º, no seu
nº 4, viola essa norma constitucional - e o regime geral na matéria, constante
do artigo 17º do Decreto-Lei nº 433/82 - 'na medida em que estabelece um
mínimo da coima superior a 500$00 e um máximo [que], sendo variável, pode
ultrapassar os seis milhões de escudos (6.000.000$00)'.
Assim ponderando, o Senhor Juiz entendeu que, no
caso concreto, há a considerar, como mínimo da coima 500$00 e, como máximo, os
100.000$00, uma vez que não foi determinada a quantidade de entulho, deste modo
não aplicando a norma em crise na parte ferida de inconstitucionalidade,
condenando a arguida na coima de 50.000$00, além das custas do processo.
Como já houve oportunidade de registar, diferente
opinião é a sustentada pelo Ministério Público nas suas alegações de recurso.
2.1.- Nos termos do artigo 242º da CR as autarquias locais dispõem de
poder regulamentar próprio nos limites da Constituição, das leis e dos
regulamentos emanados das autarquias de grau superior ou das autoridades com
poder tutelar.
Este poder regulamentar independente, directamente
oriundo da Lei Fundamental, constitui o cerne da autonomia local, tem, como
limites, os enunciados no preceito constitucional e é concebido no âmbito da
prossecução das respectivas atribuições autárquicas, para gestão dos interesses
próprios (cfr., v.g., J.M.Sérvulo Correia, O Princípio da Legalidade
Administrativa no Direito Português, Coimbra, 1987, pág. 264; J.C. Vieira de
Andrade, 'Autonomia regulamentar e Reserva de Lei' in - Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, I, Coimbra, 1984, pág. 22 e nota 40;
M.Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1980, pág. 114;
J. Casalta Nabais, A Autonomia Local (Alguns Aspectos Gerais), Coimbra, 1990,
pág. 80 e segs. (separata daqueles Estudos).
Na área em questão, importa considerar não só o
Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, conhecido por Lei das Autarquias Locais
(LAL), diploma essencial no domínio das atribuições das autarquias locais e da
competência dos respectivos órgãos, a conjugar, aliás, com os artigos 44º, nº 5,
e 49º, nº 3, do Código Administrativo, como também ter presente a Lei nº 1/87,
de 6 de Janeiro, sobre as finanças locais, e o Decreto-Lei nº 488/85, de 25 de
Novembro, que dispõe quanto a resíduos sólidos.
Assim, diz-nos, na parte que interessa, o artigo 2º
da LAL (redacção da Lei nº 25/85, de 12 de Agosto):
'1- É atribuição das autarquias o que diz respeito aos
interesses próprios, comuns e específicos das populações respectivas e,
designadamente:
-----------------------------------
d) À salubridade pública e ao saneamento básico;
-----------------------------------
i) À defesa e protecção do meio ambiente e da qualidade de
vida do respectivo agregado populacional;
---------------------------------.'
Ora, o Decreto-Lei nº 488/85, ao estabelecer normas
relativas à produção de resíduos sólidos, comete às câmaras municipais,
isoladamente ou em associações, a competência para, além do mais, definirem os
sistemas municipais destinados à remoção, tratamento e destino final dos
resíduos sólidos urbanos (RSU) produzidos nas suas áreas de jurisdição e
publicarem posturas sobre a recolha e transporte desses resíduos.
Competindo às assembleias municipais a aprovação de
posturas e regulamentos [alínea a) do nº 2 do artigo 39º da LAL, na redacção da
Lei nº 25/85, de 12 de Agosto], o artigo 21º da Lei nº 1/87, sob a epígrafe
'coimas e multas' dispõe, por sua vez, o seguinte:
'1.- A violação de posturas e regulamentos de natureza genérica
e execução permanente das autarquias locais constitui contra-ordenação
sancionada com coima.
2.- As coimas a prever nas portarias e regulamentos
municipais e de freguesia não podem ser superiores, respectivamente, a dez vezes
e uma vez o salário mínimo nacional dos trabalhadores da indústria, nem exceder
o montante das que forem impostas por autarquias de grau superior ou pelo Estado
para contra-ordenações do mesmo tipo.
---------------------------------.'
Resulta do exposto a atribuição aos municípios de
um conjunto de competências relacionadas com a gestão dos resíduos sólidos, sua
reciclagem e eliminação, no âmbito de uma política geral de salvaguarda da
salubridade pública e de protecção do meio ambiente que às autarquias interessa
e incumbe defender e prosseguir, o que, nomeadamente, farão ao emitir posturas e
regulamentos de natureza genérica e execução permanente, fixando coimas nos
limites impostos pelo nº 2 do artigo 21º da Lei nº 1/87.
Resta, no entanto, apurar se o Regulamento de
Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa traduz com suficiência o seu suporte
habilitante, considerando o disposto no nº 7 do artigo 115º da CR e a
observância da primariedade da lei e valores que lhe subjazem.
2.2.- Diz-nos, com efeito, o nº 7 do artigo 115º da CR que os
regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que
definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Fala-se, a este respeito, do princípio da
precedência da lei ou da primariedade da lei, que Gomes Canotilho considera um
dos instrumentos utilizados pela Constituição 'para restringir o amplo grau de
liberdade de conformação normativa da administração, pouco compatível com um
Estado de direito democrático' (cfr., Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra,
1991, pág. 924).
Colhe-se do confronto do nº 7 com o nº 6 do artigo
115º tratar-se de exigência a ser observada por todos os regulamentos, incluindo
assim os do Governo, os emanados dos órgãos de governo próprio das regiões
autónomas e os dos órgãos próprios das autarquias locais, pois que, de um de
outro modo estão todos ligados à lei que necessariamente precede cada um deles,
sendo que o papel dessa lei precedente não é sempre o mesmo, como se observa no
acórdão do Tribunal Constitucional nº 76/88 (publicado no Diário da República, I
Série, de 21 de Abril de 1988): umas vezes a lei a referir é aquela que o
regulamento visa regulamentar - será o caso dos regulamentos de execução
stricto sensu ou dos regulamentos complementares - outras vezes a lei a
indicar é a que define a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão.
Visa-se com semelhante exigência, escrevem Gomes
Canotilho e Vital Moreira, não só disciplinar o uso do poder regulamentar,
obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação
legal de cada regulamento, mas também garantir 'a segurança e a transparência
jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principiologia do Estado de direito
democrático' (cfr., Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.,
Coimbra, 1993, pág. 516).
Não existe, assim, exercício de poder regulamentar
sem fundamento numa lei anterior (cfr., o acórdão deste Tribunal nº 184/89,
publicado no Diário da República, I Série, de 9 de Março de 1989).
Ora, a violação do dever de citação da lei
habilitante gera vício de inconstitucionalidade formal.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional
mostra-se elucidativa, a este respeito: a essa conclusão não chegou apenas o
citado acórdão nº 76/88 podendo citar-se, entre vários outros, os acórdãos nºs.
63/88, 307/88, 160/93 e 319/94, publicados no Diário da República, II Série, de
10 de Maio de 1988, I Série, de 21 de Janeiro de 1989 e II Série de 10 de Abril
de 1993 e de 3 de Agosto de 1994, respectivamente.
No caso do acórdão nº 160/93 tratava-se de
regulamento emanando por assembleia municipal no exercício das suas atribuições
mas nele não constava qualquer indicação da norma ou normas que definem a
competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, o que levou o Tribunal a
concluir pela ilegitimidade constitucional do regulamento, em virtude de vício
de ordem formal - a não citação expressa e, portanto, a não individualização
do fundamento legal do regulamento.
E, ponderou-se, a inconstitucionalidade formal
manter-se-ia, em nome dos interesses protegidos pela exigência constitucional,
'ainda que se pudessem identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas
das leis das autarquias locais que habilitaram o órgão autárquico a aprovar este
regulamento'.
2.3.- Quid juris no concreto caso?
Neste aspecto é evidente a deficiência que revela o
Regulamento de Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa, tornado público pelo Edital
nº 112/90, uma vez que a única referência ao seu suporte habilitante consta do
próprio corpo do seu artigo 1º onde se diz:
'É da exclusiva responsabilidade da Câmara Municipal de Lisboa, nos
termos do nº 3 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 488/85, de 25 de Novembro,
planificar, organizar e promover a recolha, transporte, eliminação ou utilização
dos Resíduos Sólidos Urbanos produzidos no Município de Lisboa, bem como dos
detritos industriais e hospitalares que sejam passíveis dos mesmos processos de
eliminação'.
Ora, este diploma estabelece normas sobre os
resíduos sólidos e a norma que o regulamento expressamente cita comete às
câmaras municipais competência para, isoladamente ou em associações, definirem
(além do mais) os sistemas municipais destinados à remoção, tratamento e destino
final dos RSU produzidos nas suas áreas de jurisdição, elaborarem os respectivos
projectos, de acordo com critérios de protecção da saúde pública e do ambiente,
publicarem as posturas de recolha e transporte dos RSU e planificarem,
organizarem e promoverem a recolha, transporte, eliminação ou utilização dos RSU
produzidos nas suas áreas.
Consta, por sua vez, da acta da sessão
extraordinária da Assembleia Municipal, realizada em 17 de Maio de 1990, ter
esse órgão municipal aprovado por unanimidade 'o Regulamento dos Resíduos
Sólidos da Cidade de Lisboa e respectivas Normas Técnicas sobre os Sistemas de
Deposição de Resíduos Sólidos em Edifícios do Concelho de Lisboa, conforme
proposta noventa e um / noventa, enviada à sua apreciação pela Câmara Municipal
de Lisboa, ao abrigo do artigo trigésimo nono, número dois alínea a), do
Decreto-Lei cem / oitenta e quatro de vinte e nove de Março'.
Contém, assim, a mencionada acta, menção do suporte
habilitante imediato do regulamento, com expressa evocação da lei definidora da
competência subjectiva e objectiva para a sua emissão: a citada norma do artigo
39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, que atribui competência às
assembleias municipais para aprovação de posturas e regulamentos.
Estará satisfeita a exigência de identificação que,
em cada caso, passa não só pelo controlo da habilitação legal de cada
regulamento mas também pela garantia de segurança e transparência jurídicas (à
luz da aludida principiologia do Estado de direito democrático)?
É certo que a redacção do regulamento revela
incompleta consignação do seu fundamento legal, de modo a desde logo se
precisarem as normas que à assembleia municipal conferem competência para o
editar - ao invés do ocorrido com outros textos emanados do mesmo órgão quase
contemporaneamente, como é o caso, por exemplo, do Regulamento Geral de
Mobiliário Urbano e Ocupação da Via Pública, constante do Edital Camarário nº
101/91 (publicado no Diário Municipal de 16 de Abril de 1991) onde, não obstante
a omissão da matéria constitucional, logo se diz ter sido aprovado 'ao abrigo do
artigo 51º do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, e nos termos dos artigos
51º, nº 3, alínea a), e 39º, nº 2, do citado diploma legal e artigo 21º da Lei
nº 1/87'.
No entanto, pensa-se que a menção contida logo no
artigo 1º do Regulamento e, bem assim, a mais completa, constante do livro das
actas da Assembleia Municipal - cujo acesso sem dúvida é facultado aos
destinatários das normas - respeitam minimamente o princípio da primariedade
da lei, informam da lei habilitante e, como tal, garantem os valores de
segurança e transparência que se pretendem acautelar.
Exactamente porque há um mínimo salvaguardado
suficientemente, o caso vertente não é reconduzível aos de regulamentos que este
Tribunal fulminou em atenção ao vício formal de que eram portadores - casos
paradigmáticos dos acórdãos nºs. 163/93 e 319/94, de ausência integral de
menções aos respectivos fundamentos legais.
Mas, sendo assim, importa conhecer do pedido.
3.1.- Este Tribunal já teve oportunidade, em numerosos arestos, de
abordar a questão de fundo, traçando a linha de demarcação das competências da
Assembleia da República e do Governo em matéria de ilícito de mera ordenação
social e respectivo processo.
O artigo 168º, nº 1, alínea d), da Constituição
(versão de 1982) dispunha como segue:
' 1 - É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[...]
d) Regime geral de punição [...] dos actos ilícitos de mera ordenação social
[...].'
Significa isto que o Governo só pode editar normas
que façam parte do regime geral das contra-ordenações, munido de autorização
legislativa. Mas pode legislar sem necessidade de autorização da Assembleia da
República fora desse regime geral - isto é, sobre tudo o que não seja a
definição da natureza do ilícito, dos tipos de sanções aplicáveis e dos
limites destas.
No Acórdão nº 56/84 deste Tribunal resumiram-se
assim as 'ideias conclusivas essenciais no que toca ao exercício do poder
legislativo pela Assembleia da República e pelo Governo em matéria de direito
sancionatório público', no domínio da versão da Constituição resultante da
primeira revisão constitucional (e que ainda hoje mantém plenamente a sua
validade, por não ter havido aí qualquer alteração na segunda revisão
constitucional):
'É da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo
autorização ao Governo (e admitindo hipoteticamente a subsistência
constitucional da figura da contravenção):
a) Definir crimes e penas em sentido estrito, o que comporta
o poder de variar os elementos constitutivos do facto típico, de extinguir
modelos de crime, de desqualificá-los em contravenções e contra‑ordenações e de
alterar as penas previstas para os crimes no direito positivo;
b) Legislar sobre o regime geral de punição das
contra‑ordenações e contravenções e dos respectivos processos;
c) Definir contravenções puníveis com pena de prisão e
modificar o quantum desta.
É da competência concorrente da Assembleia da República e do Governo
(e na mesma linha de hipotética sobrevivência constitucional do tipo
contravencional):
a) Definir, dentro dos limites do regime geral,
contravenções não puníveis com pena restritiva de liberdade e contra‑ordenações,
alterar e eliminar umas e outras e modificar a sua punição;
b) Desgraduar contravenções não puníveis com pena restritiva
de liberdade em contra‑ordenações, com respeito pelo quadro traçado pelo
Decreto‑Lei nº 433/82. [In Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., 1984,
p. 174 (sublinhados acrescentados)].'
Este Tribunal vem considerando integrar-se na
competência legislativa concorrente da Assembleia da República e do Governo a
criação ex novo de contra‑ordenações ou a conversão em contra‑ordenações de
anteriores contravenções puníveis com pena não restritiva de liberdade e, bem
assim, a fixação da respectiva punição.
Quanto a este último ponto, porém, tem-se entendido
que, sob pena de inconstitucionalidade, o Governo não pode ultraassar o regime
geral de punição fixado no Decreto-Lei nº 433/82, o que significa que não pode
fixar à coima um limite mínimo inferior nem um limite máximo superior aos
fixados no artigo 17º daquela lei-quadro. Pode, no entanto, fixar às coimas
limites mínimos superiores ou limites máximos inferiores aos fixados pelo
mencionado artigo 17º (cf., neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal nºs.
305/89, 428/89, 324/90, 435/91, 447/91 e 314/92 - publicados no Diário da
República, 2ª série, de 12 de Junho e 15 de Setembro de 1989, 19 de Março de
1991, 24 de Abril de 1992, 1ª série de 11 de Janeiro de 1992 e 2ª série de 1 de
Março de 1993, respectivamente - e os Acórdãos nºs. 355/92, 385/93 e 424/93,
ainda inéditos).
O mesmo raciocínio é aplicável às coimas
estabelecidas pelas autarquias no âmbito dos seus poderes de normação, havendo
apenas que ter em conta (quanto ao limite máximo) o preceituado no artigo 21º da
Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro, atrás citado. Esta norma de lei emanada da
Assembleia da República permite que as entidades com competência para emitirem
posturas e regulamentos de natureza genérica e de execução permanente ao nível
das autarquias locais fixem coimas, que podem variar, nos seus valores máximos e
respectivamente para as freguesias e para as posturas e regulamentos municipais,
até uma vez e dez vezes o salário mínimo nacional dos trabalhadores da
indústria, desde que estes valores não ultrapassem os montantes fixados pelo
Estado para contra-ordenações do mesmo tipo.
A coima prevista na norma do nº 4 do artigo 40º do
Regulamento de Resíduos Sólidos da Cidade de Lisboa, tem para o caso dos autos
uma moldura variável entre 40.000$00 e 100.000$00.
A decisão em recurso julgou a norma
inconstitucional e recusou parcialmente a sua aplicação, na medida em que fixava
um limite mínimo da coima superior ao montante mínimo do regime geral das
contra-ordenações.
Ora, estando em causa nos autos apenas o valor do
limite mínimo da coima, já se concluiu antes que só existe violação daquele
regime geral quando se fixa um montante mínimo da coima inferior ao mínimo
fixado no artigo 17º do Decreto-Lei nº 433/82, na redacção do Decreto-Lei nº
356/89, de 17 de Outubro, que é de 500$00, quer se trate de pessoas singulares
quer de pessoas colectivas.
Assim sendo, é manifesto que não existe violação do
preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea d) da Constituição.
III
Em face do exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma
constante do nº 4 do artigo 40º do Regulamento dos Resíduos Sólidos da Cidade
de Lisboa constante do Edital Camarário nº 112/90, publicado no Diário
Municipal de 28 de Dezembro de 1990, na parte em que fixa em 40.000$00 o limite
mínimo da coima aplicável à contra-ordenação consistente no despejo de entulhos
de construção civil em qualquer área pública do município prevista na alínea a)
do artigo 35º do mesmo diploma.
b) consequentemente, revogar a decisão
recorrida, na parte impugnada.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 1995
Ass) Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa