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Proc. nº 606/92
1ª Secção
Rel. Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A. interpôs recurso contencioso, no Tribunal
Administrativo do Círculo de Lisboa, do despacho proferido pelo
administrador-delegado do Hospital B., em 22 de Abril de 1991, que lhe ordenou a
reposição de quantias recebidas a título de abono, correspondente a 40% do
vencimento base, por prestação de trabalho em regime de tempo completo
prolongado, durante o período em que frequentou, com bolsa de estudo, o curso de
enfermagem pós-básico, entre 26 de Abril de 1989 e 16 de Dezembro de 1990.
Notificada para responder, a entidade recorrida
apresentou uma resposta assinada por advogado por si constituído.
Nas suas alegações, a recorrente requereu o
desentranhamento dos autos e a devolução à entidade recorrida daquela resposta,
em virtude de ela ter sido assinada por advogado, o que violaria o disposto no
artigo 26º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos
Tribunais Administrativos).
2. O Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa
proferiu sentença em que negou provimento ao recurso e indeferiu o pedido de
desentranhamento da resposta da entidade recorrida. O Tribunal recusou a
aplicação do artigo 26º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/85, por entender que ele
viola o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea t), da Constituição da República
Portuguesa, na redacção dada pela 1ª revisão constitucional.
Na fundamentação, sustenta-se que a norma em causa, ao
impedir que o advogado constituído pela entidade recorrida subscreva a resposta
ao recurso, colide com o artigo 54º, nº 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março, e que a matéria do estatuto
dos advogados é respeitante a associação pública, integrando-se na reserva
relativa de competência legislativa da Assembleia da República.
3. Desta sentença interpôs o Ministério Público recurso
obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos
280º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição, e 70º, nº 1, alínea a), e 72º, nº
3, da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da questão da
constitucionalidade do artigo 26º, nº 2, do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de
Julho.
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público
apresentou alegações, formulando as seguintes conclusões:
'1ª) O nº 2 do artigo 26º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos
(Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), limitando-se a prescrever que
determinado acto processual - a resposta ao recurso pela autoridade recorrida -
reveste carácter estritamente pessoal, devendo ser praticado necessariamente
pelo próprio autor do acto recorrido, não sendo admitido, consequentemente, a
sua prática através de mandatário, não ofende qualquer preceito ou princípio
constitucional, designadamente o constante do artigo 20º da Lei Fundamental.
2ª) Tal regime não colide com o estatuído no artigo 54º do
Estatuto da Ordem dos Advogados (constante do Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de
Março), já que não inviabiliza o patrocínio judiciário das autoridades
recorridas nos recursos contenciosos, em nada afectando as garantias do
exercício da advocacia enquanto forma de defesa de direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos - tratando-se, em consequência de disposição
da lei processual situada fora do âmbito da reserva de competência da Assembleia
da República, emergente do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea u), primeira
parte, da Constituição.
3ª) Deve, pois, conceder-se provimento ao recurso,
determinando-se a reforma da decisão recorrida na parte impugnada.'
4. Por sua vez, a ora recorrida, A., apresentou também
alegações, em que acompanhou integralmente a posição do Ministério Público.
5. Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
Fundamentação
6. O presente recurso tem por objecto a questão da
constitucionalidade da norma constante do nº 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº
267/85, de 16 de Julho (Lei de Processo nos Tribunais Administrativos).
Assim, apenas está em causa o segmento da sentença
recorrida em que se recusou a aplicação daquela norma com fundamento em
inconstitucionalidade orgânica, por alegada violação do disposto no artigo 168º,
nº 1, alínea u), primeira parte, da Constituição (na redacção dada pela 2ª
revisão constitucional).
7. No nº 1 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 267/85
determina-se que 'a autoridade recorrida pode produzir alegações e exercer
quaisquer outros poderes processuais correspondentes aos dos demais recorridos,
incluindo o de impugnar as decisões proferidas no recurso contencioso, desde que
os respectivos actos processuais sejam praticados por advogado constituído ou
por licenciado em Direito com funções de apoio jurídico designado para aquele
efeito'. Porém, no nº 2 do mesmo artigo prescreve-se que 'a resposta ao recurso
só pode ser assinada pelo próprio autor do acto recorrido ou por quem haja
sucedido na respectiva competência'.
De acordo com estas normas, verifica-se que a lei não
contém um impedimento genérico ao patrocínio por advogado: pelo contrário, o
citado nº 1 do artigo 26º consagra, como regra geral, o patrocínio judiciário
obrigatório para o exercício de direitos processuais fundamentais. Apenas no
caso da 'resposta ao recurso' está vedada a intervenção de advogado na
assinatura da respectiva peça processual: esta tem de ser subscrita pessoalmente
pelo autor do acto recorrido.
8. Isto sinifica que o legislador considera a resposta
ao recurso como um acto processual pessoal, que tem de ser praticado
pessoalmente pela própria parte. Conforme salientam Artur Maurício, Dimas
Lacerda e Simões Redinha (Contencioso Administrativo, 1987, p. 142), citando um
acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Fevereiro de 1987, 'tal
exigência funda-se na protecção e defesa de valores do maior relevo e revela a
importância que foi atribuída a essa peça processual e o carácter pessoal que se
quis imprimir a esse dever processual das autoridades recorridas'.
É evidente que ao impedir-se a entidade recorrida de
praticar o acto através de advogado se está a criar um limite à intervenção
deste no processo. Mas há que ponderar se tal limitação contende com o estatuto
do advogado - ou seja, se a norma do nº 2 do artigo 26º do Decreto-Lei nº
267/85 constitui norma relativa ao estatuto do advogado - para se poder concluir
pela inconstitucionalidade orgânica da norma em crise [por violação do disposto
na primeira parte da alínea u) do nº 1 do artigo 168º da Constituição].
Por outro lado, importa averiguar se a referida
limitação coarcta de forma arbitrária a intervenção de advogado em processo
administrativo, violando o direito de acesso aos tribunais consagrado no nº 1 do
artigo 20º da Constituição, o que implicaria a inconstitucionalidade material da
norma sub judicio.
9. O artigo 168º, nº 1, alínea u), primeira parte, da
Constituição, na redacção resultante da 2ª revisão constitucional (vigente
quando foi proferida a sentença recorrida), e que corresponde à alínea t) do nº
1 do mesmo artigo na redacção dada pela 1ª revisão constitucional (vigente no
momento da publicação do Decreto-Lei nº 267/85), determina que é da exclusiva
competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar
sobre matéria de 'associações públicas'.
Ora, nas associações públicas inclui-se, seguramente, a
Ordem dos Advogados, conforme se concluiu em anteriores arestos deste Tribunal
(Acórdãos nºs 46/84, 497/89 e 199/94, D.R., II Série, de 13 de Julho de 1984, de
1 de Fevereiro de 1990 e de 20 de Maio de 1994, respectivamente). Trata-se de
corporação pública, que participa na realização do interesse público e a que
foram conferidos certos poderes públicos, designadamente o de impor a inscrição
nela como condição para o exercício da profissão de advogado.
Nesta medida, pode afirmar-se que se inclui na reserva
parlamentar a definição do regime jurídico da Ordem dos Advogados enquanto
corporação pública, bem como a definição do núcleo essencial do estatuto da
profissão, em particular no que respeita às garantias fundamentais do exercício
da advocacia na perspectiva da defesa dos direitos e interesses legalmente
protegidos.
Assim se compreende que o Estatuto da Ordem dos
Advogados (Decreto-Lei nº 84/84, de 16 de Março) tenha sido aprovado ao abrigo
de autorização legislativa (Lei nº 1/84, de 15 de Fevereiro), na qual, aliás, se
invocou expressamente o disposto no artigo 168º, nº 1, alínea t), da
Constituição (versão da 1ª revisão constitucional), mencionando-se, entre as
matérias objecto da autorização, não só os temas de ordem organizativa e
corporativa, mas também os do foro estritamente estatutário, designadamente na
sua componente exógena (artigo 2º, alínea a), da Lei nº 1/84).
10. A questão reconduz-se, pois, a saber se a norma sub
judicio versa sobre o regime jurídico da Ordem dos Advogados enquanto associação
pública ou sobre o estatuto profissional do advogado, matérias que integram a
referida reserva de lei.
Ora, é evidente que estamos perante uma norma
processual, reguladora da prática de acto processual, no âmbito do processo
administrativo. Portanto, não respeita seguramente ao regime jurídico da
associação profissional dos advogados.
Por outro lado, a regra geral consagrada na Lei de
Processo nos Tribunais Administrativos é a de a autoridade administrativa
recorrida ser patrocinada por advogado (ou por licenciado em Direito dos seus
quadros, com funções de consulta jurídica). Apenas se impede, no nº 2 do artigo
26º do Decreto-Lei nº 267/85, que a resposta ao recurso seja assinada por
mandatário, o que constitui mera limitação formal, já que nada obsta à
assistência desse mandatário na elaboração daquela peça processual, no quadro do
patrocínio judiciário exercido no processo (e no âmbito do qual a lei admite a
plena representação por advogado em todos os demais actos processuais).
Daqui decorre que o estatuto do advogado não é afectado,
na sua essência, pelo Decreto-Lei nº 267/85. A limitação do nº 2 do artigo 26º
desse diploma surge como uma regra meramente processual, justificada pelo
carácter pessoal que o legislador quis conferir ao acto em apreço. O legislador
pretende que a autoridade recorrida se responsabilize pelos esclarecimentos que
prestar (designadamente quando estão em causa actos discricionários) e dá-lhe a
oportunidade de revogar o acto recorrido (cf. o nº 1 do artigo 141º do Código do
Procedimento Administrativo).
Deste modo, deve concluir-se (como no Acórdão nº 199/94
da 2ª Secção deste Tribunal, D.R., II Série, de 20 de Maio de 1994) que a norma
do nº 2 do artigo 26º do Decreto‑Lei nº 267/85 não versa sobre matéria relativa
a 'associação pública'. Tal norma reporta-se, diversamente, a matéria de
processo administrativo, que não se encontra reservada à Assembleia da República
[cf. artigos 168º, nº 1, alíneas c) e d), e 201º, nº 1, alínea a), da
Constituição]. Não se verifica, por conseguinte, nenhuma inconstitucionalidade
orgânica, por violação do disposto na alínea t) do nº 1 do artigo 168º da
Constituição (na redacção dada pela 1ª revisão constitucional).
11. Também não se verifica, no caso em apreço, nenhuma
inconstitucionalidade material. A norma sub judicio não cria um impedimento
substancial à intervenção de advogado em processo administrativo, sendo admitida
uma ampla representação da autoridade administrativa recorrida por advogado.
Assim, tal norma não viola o disposto no nº 1 do artigo 20º da Constituição, que
assegura a todos (incluindo a Administração) o acesso aos tribunais para defesa
dos seus direitos e interesses.
III
Decisão
12. Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em
consequência, revoga-se a sentença recorrida no que respeita ao julgamento da
questão de inconstitucionalidade, devendo a mesma ser reformada em conformidade
com o ora decidido sobre tal questão.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 1995
Maria Fernanda Palma
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa