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Processo n.º 690/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 634/2011:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, do despacho proferido pelo Juiz do 4º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Braga, em 11 de março de 2011 (fls. 20 a 22) para que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
“(…) do artigo 808.º, n.º 1 do CPC no sentido de todas as notificações mesmo de natureza exclusivamente jurisdicional que afetam os direitos do Exequente competirem ao agente de execução” (fls. 4);
“(…) do artigo 15.º da L30-E/2000 de 20-12 na redação dada pelo DL 38/2003 no sentido de que o beneficiário de Apoio Judiciário para injunção concedido em momento anterior à existência da modalidade pagamento de honorários a agente de execução não abrange aqueles encargos em futura execução daquela” (idem).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 7) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Nos presentes autos, o próprio recorrente admite que não suscitou as questões de inconstitucionalidade normativa que agora pretende ver apreciadas, tendo alegado que a decisão ora recorrida constituiu “decisão-surpresa”, pelo que estaria isento do ónus de prévia e adequada suscitação da questão de constitucionalidade (artigo 72º, n.º 2, da LTC).
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem vindo a aceitar, a título excecional, a dispensa daquele ónus sempre que a norma (ou interpretação normativa) efetivamente aplicada(s) seja(m) “surpreendentes, insólitas ou imprevisíveis” (a mero título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 479/89, n.º 489/94, n.º 394/2005, n.º 120/2002, 415/2010, todos disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Porém, conforme nota o Acórdão n.º 415/2010:
“A natureza imprevisível, surpreendente ou insólita da norma ou interpretação normativa efetivamente aplicada depende, todavia, do preenchimento de um grau reforçado de diligência do recorrente. Este grau de diligência implica uma antecipação das diversas soluções jurídicas potencialmente aplicáveis ao litígio controvertido, devendo precaver-se contra a adoção de soluções que, ainda que minoritárias, possam ser configuradas como objetivamente admissíveis face à letra da lei. Só no caso de não ter sido possível antecipar a aplicação de norma ou interpretação normativa contrária à Constituição – sendo esta possibilidade sempre aferida de modo objetivo – é que será admissível a dispensa de suscitação prévia da inconstitucionalidade (neste sentido, cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 489/94 e 479/89).”
Ora, as interpretações normativas adotadas pela decisão recorrida dificilmente poderão ser consideradas de difícil antecipação. Para que uma decisão seja considerada como “surpreendente” forçoso é que a mesma não seja objetivamente antecipável em face da letra da lei, o que, manifestamente, não ocorreu no caso em apreço.
Quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação extraída do artigo 808º, n.º 1, do CPC, é por demais evidente que o recorrente, no seu requerimento de 21 de janeiro de 2011 (fls. 17 a 19), aborda o problema da notificação levada a cabo pelo mandatário. Porém, em momento algum suscita a questão de inconstitucionalidade relativa àquela norma jurídica, tendo podido fazê-lo. De igual modo, quanto à inconstitucionalidade extraída do artigo 15º da Lei de Apoio Judiciário, o recorrente reiterou a omissão de suscitação de uma precisa questão de inconstitucionalidade. Ora, ao abordar o problema da sucessão no tempo de normas relativas ao apoio judiciário, ter-lhe-ia cabido prevenir e suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa que pretende agora ver apreciada.
Com efeito, a própria decisão recorrida salienta que:
“Se o Exequente, antes de mover a presente execução, não se acautelou requerendo o benefício do apoio judiciário nas novas modalidades, «sibi imputet».” (fls. 22)
Em suma, de acordo com a jurisprudência consolidada neste Tribunal, as interpretações normativas que constituem objeto do presente recurso não podem ser consideradas como “surpreendentes, insólitas ou imprevisíveis”, pelo que teria competido ao ora recorrente suscitar a respetiva inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido. Não o tendo feito, não deve este Tribunal conhecer do objeto do presente recurso.
4. A título subsidiário, e por mero esgotamento da fundamentação, importa ainda dizer que, por um lado, a interpretação normativa relativa ao artigo 808º CPC que o recorrente pretende ver apreciada afigura-se bem mais desenvolvida e exaustiva do que aquela efetivamente adotada pelo despacho recorrido – o que sempre implicaria a impossibilidade de conhecimento do recurso, quanto a essa parte, por falta de aplicação efetiva (artigo 79º-C da LTC) – e, por outro lado, a questão da inconstitucionalidade normativa extraída do artigo 15º da Lei de Apoio Judiciário, já nem sequer seria passível de recurso de constitucionalidade – por extemporaneidade –, na medida em que a decisão sobre se o benefício de apoio judiciário abrangia (ou não, como decidido) os honorários do agente de execução já havia transitado em julgado, à data da interposição do recurso para este Tribunal, conforme notado pela decisão recorrida (fls. 21).
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.”
2. O recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da LTC, nos termos que ora se resumem:
“1 – Na douta decisão em crise sustenta-se a impossibilidade de conhecimento do recurso na parte respeitante à interpretação do artigo 808º, nº 1 do CPC;
2 – Diz a douta decisão sumária reclamada que podia o recorrente ter suscitado a inconstitucionalidade daquela norma no seu requerimento de 21/12/2011 (fls. 17 19);
3 – Mais diz que se “aborda o problema da notificação levada a cabo pelo mandatário”,
4 – Quanto a esta última parte ficou o aqui Reclamante sem aprender o alcance desta última afirmação;
5 – Porquanto o que importa com a interpretação tida pelo Recorrente como inconstitucional em nada contende com qualquer notificação levada a cabo pelo mandatário;
6 – Sequer tem a ver com a notificação aí referida da Nota Discriminativa nos termos do artigo 33º do CJJ;
7 – Naquele requerimento suscitou-se a nulidade em resultado de omissão de notificação de um despacho;
8 – Despacho de natureza jurisdicional e que afetava os direitos do Exequente;
9 – Não podia nem era de admitir que se fizesse um juízo de aplicação do que dispõe o artigo 808 de forma antecipada.
10 – Conquanto este normativo nada tem a ver com os regime das nulidades ou de notificações de atos jurisdicionais;
11 – Antes tem a ver com as diligências de execução sobre os que nada foi suscitado naquele ato processual;
12 – Por outro lado entendeu-se que a interpretação normativa que se pretende ver apreciada se afigura “bem mais desenvolvida e exaustiva do que aquela efetivamente adotada”.
13 – Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Reclamante que ao invés do atrás exposto, assim não é;
14 – A circunstância do tribunal a quo, na sua decisão, apenas referir que naqueles termos a notificação compete ao agente de execução nem por isso permite afirmar que não interpretou na forma apresentada pelo recorrente;
15 – O Recorrente, tão só, enquadrou a natureza da notificação que é indiscutível, ou seja, que é de natureza exclusivamente jurisdicional e afeta direitos do Exequente;
16 – O Tribunal não o afirmou expressamente mas é o que resulta do teor da notificação em causa a qual se cingia a despacho do Tribunal sobre a questão relativa ao apoio judiciário e seu alcance – notificação jurisdicional e que afetava direitos do Exequente;
17 – Posto que caberia ser o objeto do recurso, pelo menos, nesta parte apreciado.”
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos, que ora se resumem:
“(…)
8º
Ora, nada na argumentação do recorrente, constante da presente reclamação, prejudica a justeza das decisões, quer do digno magistrado de 1ª instância, quer da Ilustre Conselheira Relatora deste Tribunal Constitucional.
Com efeito, a presente reclamação, no essencial, apenas retoma argumentação anterior, sem lograr abalar os fundamentos de tais decisões, que detalhadamente a apreciaram e resolveram.
9º
Terá, assim, de concluir-se, no seguimento da Decisão Sumária 634/11 reclamada, que as questões de inconstitucionalidade, invocadas pelo arguido, teriam sempre de determinar uma decisão de não conhecimento, por parte deste Tribunal Constitucional.
O que aconteceu!
10º
Por todo o exposto, crê-se que a reclamação para a conferência, em apreciação, não merece provimento, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 634/11, que determinou a sua apresentação.”
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A presente reclamação apenas coloca em crise o juízo que se formulou acerca da impossibilidade de conhecimento da questão normativa relativa ao artigo 808º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC). Com efeito, em momento algum se impugna o juízo de não conhecimento relativo ao artigo 15º da Lei de Apoio Judiciário, pelo que apenas daquela primeira questão se apreciará.
Quanto à incompreensão relativamente à menção a uma (pretensa) notificação, “levada a cabo pelo mandatário”, do despacho proferido pelo tribunal recorrido em 06 de dezembro de 2010, concede-se razão ao reclamante. Contudo, resulta evidente que a menção, pela decisão reclamada, a uma notificação pelo mandatário corresponde a um lapso de escrita manifesto que, portanto, pode ser alvo de retificação oficiosa, nos termos dos artigo 666º, n.º 2, e 667º, n.º 1, ambos do CPC, aplicáveis ex vi artigo 69º da LTC. Assim, onde se lê Quanto à alegada inconstitucionalidade da interpretação extraída do artigo 808º, n.º 1, do CPC, é por demais evidente que o recorrente, no seu requerimento de 21 de janeiro de 2011 (fls. 17 a 19), aborda o problema da notificação levada a cabo pelo mandatário”, deve passar a ler-se “levada a cabo pela agente de execução”.
Feita esta retificação, acompanha-se integralmente a decisão reclamada no sentido de que teria sido, no momento em que foi notificado pela agente de execução – e, portanto, sem que houvesse notificação jurisdicional, ordenado pelo juiz ou oficiosamente efetuada pela secretaria – que o ora reclamante deveria ter suscitado a questão de inconstitucionalidade normativa. Na verdade, ao apresentar requerimento através do qual invocou a nulidade da notificação, pela agente de execução, do despacho proferido em 06 de dezembro de 2010, deveria aquele ter colocado o tribunal recorrido perante a questão de inconstitucionalidade que agora pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional. Não o tendo feito, em tempo oportuno, mais não resta do que confirmar a decisão reclamada, por falta de suscitação processual adequada, exigida pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 15 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 19 de janeiro de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.