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Procº. nº. 266/93
2ª. Secção
Relator Cons.: Sousa e Brito
Acordam, na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional
I
A CAUSA
1. Na comarca de Guimarães, foi intentada por A., contra B. e
mulher C., acção declarativa de condenação, com processo sumário, reinvindicando
destes um prédio misto sito no lugar do -------------, freguesia de
-----------------.
No desenvolvimento da acção, foi proferido
despacho saneador e organizada especificação e questionário, contendo este três
quesitos, condensando a tese exposta pelos réus na contestação (a existência de
um 'arrendamento' - cedência de uso mediante retribuição mensal - 'verbal' a
eles, réus, de parte do prédio).
Realizado julgamento foi proferido despacho
respondendo questionário, pela seguinte forma:
' Nesta acção declarativa com forma de processo sumário, movido por A. a B. e
mulher C., dou as seguintes respostas ao questionário:
- Ao quesito 1º.: não provado
- ' ' 2º.: não provado
- ' ' 3º.: não provado.'
Não tendo sido deduzida qualquer reclamação, foi,
em função destas respostas, proferida sentença julgando a acção procedente e
condenando os réus a reconhecerem o direito de propriedade dos autores sobre o
prédio em causa e a 'restituirem-lho com todos os frutos' por ele produzidos
desde a ocupação até à entrega.
2. Desta decisão apelaram os réus para o Tribunal da Relação
do Porto, invocando, entre outros fundamentos, a inconstitucionalidade do
disposto no nº. 2 do artigo 653º. do Código de Processo Civil (CPC), na parte em
que não impõe a motivação das respostas negativas aos quesitos.
Por acórdão de 15/2/93 (fls. 96/100) julgou a
Relação do Porto improcedente a referida apelação, negando fundamento à
invocada inconstitucionalidade do artigo 653º., nº. 2 do CPC.
3. De novo inconformados recorreram os réus, desta feita para
o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70º., nº. 1, alínea b), da Lei
nº. 28/82, de 15 de Novembro, indicando haverem suscitado a
inconstitucionalidade da norma do artigo 653º., nº. 2 do CPC, nas alegações
apresentadas perante o Tribunal da Relação do Porto.
Neste Tribunal Constitucional formularam os réus
(aqui recorrentes) alegações que remataram com as seguintes conclusões:
'1ª -Da correcta leitura e hermenêutica dos artºs. 13º, 17º, 20º,
37º e 210º nº 1 da Constituição, conjugados com o artº. 14º do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos deve concluir-se que a obrigação de
fundamentar todas as decisões judiciais e, por isso, todas as respostas aos
quesitos -- quer positivas, quer negativas -- como corolário dos princípios da
igualdade, do livre acesso de todos aos tribunais do dever de fundamentar as
decisões jurídicas e do direito de informar e ser informado, constitui
verdadeiro direito fundamental, consagrado na Constituição.
2ª - Ainda quando tal princípio não deva ter-se por aí directamente
consagrado, ele deve, como 'norma constitucional de fundo' e por intervenção
criadora do intérprete -- aplicador, ser reconhecido por força da 'eficácia
irradiante' ou da generalização daqueles princípios expressos.
3ª - O juiz tem o dever de julgar contra a lei ordinária quando este
for desconforme à Constituição e, nesse caso, aplicar directamente ao caso sub
judice, reavaliando sempre, em toda a sua extensão, o juízo do legislador
ordinário.
4ª - Daí que, não obstante o disposto no nº 2 do artº. 653º, maxime
após reclamação a propósito, feita no caso, o juiz devia, como fundamentou as
respostas positivas dadas aos quesitos, também fundamentar as respostas
negativas.
5ª - Não tendo sido motivadas as respostas negativas dadas aos
quesitos, devem as mesmas ser julgadas nulas, por se dever considerar
inconstitucional, inconstitucionalidade que aqui de novo se suscita e deve ser
declarada, -- e daí recusar-se a sua aplicação -- a norma do artº. 653º, nº 2
do Código de Processo civil na parte em que dispensa a fundamentação das
respostas negativas, pelo menos, por violação dos artºs. 13º (princípio da
igualdade) e 37º (direito a ser informado sem impedimentos nem discriminação)
e 210º nº 1 (dever de fundamentar as decisões judiciais) da Constituição da
República, na medida em que a lei ordinária deve exigir motivação expressa das
respostas negativas aos quesitos, como exige a das respostas positivas. '
Os recorridos (autores na acção) apresentaram,
por sua vez as seguintes conclusões:
'a) - o direito de informação consignado na 'Declaração Universal dos
Direitos do Homem e na Constituição da República, é distinto e de natureza
diferente da obrigação de fundamentação das decisões dos tribunais e dos actos
administrativos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos dos
cidadãos, estatuídos naquela última;
b) - porque o primeiro, corolário dos direitos de opinião, expressão e, de
certa maneira, formação, com os quais está intimamente interligado, pouco ou
nada tem a ver com aquelas obrigações, que visam, no essencial, possibilitarem
o controle das decisões e actos, na sua conformidade com todas as leis;
c) - daí ter a Constituição atribuído ao legislador comum a fixação das
coordenadas do seu exercício, delegando-lhe, assim, a determinação, em cada
caso, dos parâmetros do procedimento;
d) - e, portanto, o artigo 653º. 2 do Código de Processo Civil, na parte
questionada e à semelhança de muitos outros preceitos desse diploma, ou de
outros, não é inconstitucional;
e) - independentemente de o problema suscitado e em sede desse ramo de
direito adjectivo, ser actual e carecer de ponderação;
f) - entretanto, não pode deixar de merecer atenção a situação real
subjacente a este recurso e que essa, sim, pelo tempo decorrido na sua
resolução, viola todos os princípios e boa fé que devem presidir aos pleitos;
g) - numa dilação despropositada e ofensiva do direito de propriedade do
recorrido e que, ao que se vê, nada justificaria. '
Corridos os vistos, importa decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
4. Está em causa a inconstitucionalidade (suscitada durante
o processo e relativamente à qual foi proferida uma decisão de não provimento)
do nº. 2, do artigo 653º. do CPC, na parte em que não exige fundamentação ou
motivação das chamadas respostas negativas ao questionário.
Invocam os recorrentes, a este respeito, violação
dos artigos 13º., 17º., 20º., 37º. e 208º., nº. 1 (a referência ao artigo 210º.,
nº. 1, reporta-se ao texto anterior à segunda revisão constitucional) da
Constituição e do artigo 14º. do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e
Políticos.
Não coloca o específico problema da fundamentação
das respostas negativas aos quesitos em processo civil, qualquer questão
susceptível de ser abordada por referência: ao princípio constitucional da
igualdade (não comportando, como não comporta, qualquer dimensão discriminatória
arbitrária); que traduza qualquer limitação do direito de 'acesso ao direito e
aos tribunais' (cfr., quanto à caracterização deste, o Acórdão 211/93, DR-II,
28/5/93); que tenha algo que ver com a 'liberdade de expressão e informação';
ou, enfim, que haja de analisar à luz da disposição referida do Pacto, tomado
este como elemento coadjuvante da clarificação do sentido e alcance de normas
ou princípios constitucionais relevantes (v. Acórdão 147/92, DR-II, 24/7/92).
A questão poder-se-á colocar apenas, face ao
artigo 208º., nº. 1, da Constituição, ao estabelecer que: 'As decisões dos
Tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei'.
5. Prescreve, com efeito, o nº. 2 do artigo 653º. do CPC,
relativamente ao julgamento da matéria de facto e na parte que aqui nos
interessa, o seguinte:
' ... de entre os factos quesitados, o acórdão declarará quais o tribunal julga
ou não julga provados e, quanto àqueles, especificará os fundamentos que foram
decisivos para a convicção do julgador ...'
Daqui decorre inequivocamente (da referência
'quanto àqueles', reportada aos factos que o tribunal julga provados) não ter o
legislador, que introduziu em 1961 a obrigatoriedade de motivação das respostas
aos quesitos, estendido essa obrigação às respostas negativas (v. Gonçalves
Salvador, Motivação, BMJ 121, 85; Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora,
Manual de Processo Civil, 2ª. ed., Coimbra 1985, pág. 653/655).
No caso, a não fundamentação das respostas 'não
provado' a todos os quesitos, fundou-se sem dúvida nesta circunstância. Cabe,
aliás, salientar, não obstante isso não constituir obstáculo ao presente
recurso, que os recorrentes -- contrariamente ao que parecem pretender dizer na
conclusão 4ª. de fls. 112 v ('... após reclamação a propósito, feita no caso
...') -- nenhuma objecção, designadamente de natureza constitucional,
formularam na altura à não fundamentação das respostas.
Seja como fôr, importa caracterizar o dever de
fundamentação emergente do artigo 208º., nº. 1 da Constituição e, partindo daí,
verificar a conformidade constitucional do procedimento de não fundamentação
das respostas negativas.
6. No Acórdão nº. 310/94 deste Tribunal (DR-II, 29/8/94),
tendo-se concluído que o acto processual consubstanciado nas respostas aos
quesitos, nos termos do artigo 653º., nº. 2 do CPC, é daqueles para os quais
vale a exigência do artigo 208º., nº. 1 da Constituição, caracterizou-se o
princípio constitucional da fundamentação das decisões dos tribunais, como
tendo um alcance:
' ... eminentemente «programático», ficando devolvido ao
legislador, em último termo, o seu «preenchimento», isto é, a delimitação do
seu âmbito e extensão. Com efeito, o legislador constituinte consagrou o dever
de fundamentação das decisões judiciais -- fê-lo na revisão constitucional de
1982 --, em termos prudentes, evitando correr o risco de estabelecer uma
exigência de fundamentação demasiado extensa e, por isso, inapropriada e
excessiva. Daí o ter-se limitado a consagrar o aludido princípio «em termos
genéricos», deixando a sua concretização ao legislador ordinário. '
Isto, porém, não significa - e continuamos a
citar o referido Acórdão:
' ... que assiste ao legislador ordinário uma liberdade constitutiva total e
absoluta para delimitar o âmbito da obrigatoriedade de fundamentação das
decisões dos tribunais, em termos de esvaziar de conteúdo a imposição
constitucional.
Do princípio consagrado no artigo 208º., nº. 1, da Constituição,
enquanto garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito
democrático (artigo 2º.), há-de decorrer para o legislador, pelo menos, a
obrigação de prever a fundamentação das «decisões judiciais que tenham por
objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e
legitimidade da própria decisão judicial e de garantia do direito ao recurso»
(cf. J.J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3ª. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 798-799). De qualquer
modo, os limites a tal liberdade constitutiva do legislador (ou
«discricionariedade» legislativa) hão-de ser muito largos e respeitar a um
núcleo essencial mínimo de decisões judiciais. '
Exerce, com efeito, a fundamentação dos actos
jurisdicionais uma dupla função. Por um lado, numa lógica 'endoprocessual',
funciona como 'instrumento de racionalização técnica do funcionamento do
processo', permitindo o controlo da decisão, às partes e em sede de recurso,
através da reconstituição do percurso lógico que a ela conduziu. Por outro
lado, e desta feita exteriormente ao processo (numa lógica 'extraprocessual') e
tendo como destinatária a própria sociedade, possibilita esse mínimo de
'controlo externo e geral do fundamento factual, lógico e jurídico da decisão',
garante da independência e imparcialidade dos juízes (cfr. Michele Taruffo, Note
Sulla Garanzia Constituzionale Della Motivazione, in Boletim da Faculdade de
Direito de Coimbra, Vol. LV, 1979, pág. 31/33).
A primeira destas funções é geralmente associada
às concretas exigências de fundamentação constantes dos diversos compêndios
normativos processuais, enquanto a segunda tem preferencialmente assento na
garantia constitucional de fundamentação.
O entendimento deste Tribunal (expresso, por
exemplo, no já citado Acórdão 310/94) é o de que a norma do nº. 2 do artigo
653º. do CPC ao obrigar à indicação dos 'fundamentos que foram decisivos para a
convicção do julgador' relativamente aos factos julgados provados -- ou seja,
aqueles que recebendo uma resposta positiva ou especificada são instrumentos da
decisão final -- assegurando minimamente as indicadas funções endoprocessual e
extraprocessual, respeita o que podemos qualificar como sendo o núcleo essencial
mínimo da exigência constitucional de fundamentação estabelecida no artigo
208º., nº. 1.
Há, assim, que concluir pela conformidade
constitucional da norma invocada, ao não prever a motivação das respostas
negativas aos quesitos.
III
DECISÃO
7. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso,
confirmando o Acórdão recorrido, no que tange ao julgamento da questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 15 de Março de 1995
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
Luís Nunes de Almeida