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Processo n.º 463/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. No Juízo de Instância Criminal de Águeda, comarca do Baixo Vouga, foram julgados os cidadãos A. e B. acusados da prática de crime de pesca ilegal previsto e punido pelo artigo 34º do Regulamento da Lei nº 2.097 de 06 de junho de 1959, aprovado pelo Decreto n.º 44.623 de 10 de outubro de 1962. Na sentença, proferida em 11 de abril de 2011, foram desaplicados dois grupos de normas, com fundamento em inconstitucionalidade: a do artigo 67º do citado Regulamento enquanto impõe a agravação da pena dos crimes previstos no seu artigo 65º quando praticados de noite; e este artigo 65º quando, por força do n.º 1 do artigo 3º do Decreto-lei n.º 400/82 de 23 de setembro, em conjugação com o disposto no artigo 40º n.º 1 do Código Penal (atual artigo 41º n.º 1), determina que a pena aplicável ao crime é uma pena fixa de um mês de prisão. Diz-se na sentença, na parte aqui relevante, o seguinte:
«[...]
V – Da medida das penas
Em conformidade com o disposto no n.º 1 do art. 40.º e no n.º 1 do art. 71.º do Código Penal, a aplicação das sanções penais tem por escopo a prevenção geral positiva de integração, que consiste na reafirmação contrafáctica da confiança da comunidade na validade das normas jurídicas violadas, ou, numa enunciação menos normativista, na necessidade de proteção dos bens jurídicos; bem como a prevenção especial positiva ou de reintegração do arguido na sociedade.
O quantum da pena é fixado em função da suscetibilidade de ressocialização do agente do crime e do grau de exigência da tarefa de integração social, dentro de um limite mínimo de proteção dos bens jurídicos e um ponto ótimo a partir do qual a pena se mostra excessiva por coartar desproporcionadamente os direitos fundamentais, tendo sempre como limite inultrapassável a culpa.
No caso sub iudice, os factos apresentam um grau de gravidade já elevado, sendo o desvalor da conduta revelado, além do mais, por ter sido capturada mais do que uma lampreia e todo o equipamento e grau de planeamento revelados.
A culpa de cada arguido é elevada, na forma de dolo direto.
A favor de cada arguido milita ainda a ausência de antecedentes criminais, assim como estarem social e familiarmente integrados.
Chegados a este ponto, desde já importa esclarecer entender este Tribunal não ser de aplicar, por inconstitucional, a agravação prevista no art. 67º do Regulamento aos crimes previstos no seu art. 65º quando praticados, além do mais, de noite, como sucede no caso dos autos.
Isto, na medida em que determina a aplicação das penas de multa e de prisão pelo seu máximo, e, como tal, uma sanção fixa, violando os princípios da culpa enquanto fundamento e limite da pena, da igualdade, que reclama que se dê tratamento igual a situações basicamente idênticas, da necessidade e da proporcionalidade, que postulam que a gravidade das sanções deve ser proporcional à gravidade das infrações (arts. 1º, 13º, 18º e 25º da Lei Fundamental).
De resto, o Tribunal Constitucional, no Acórdão 124/2004, declarou já a inconstitucionalidade desta norma, com força obrigatória geral, ao estatuir a aplicação, como agravação, da pena máxima prevista no seu art. 64º para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada, cujos fundamentos encontram plena aplicação ao caso dos autos.
No que se refere às molduras penais previstas no art. 65º do Regulamento, uma outra questão se constitucionalidade se coloca no tocante à determinação dos limites mínimo e máximo da pena de prisão.
Isto porque, de acordo com os n.ºs 1 e 2 do art. 3º do Decreto-lei nº 400/82 de 23 de setembro (diploma preambular do Código Penal de 1982), “ficam alterados para os limites mínimo e máximo do art. 40º, nº 1 do Código Penal todas as penas de prisão que tenham duração inferior ou superior aos limites aí estabelecidos.
Ficam alterados para os limites mínimos e máximos resultantes do art. 40º do Código Penal todas as penas de multa cominadas em leis penais, de duração ou quantitativo inferiores ou superiores aos limites aí fixados”.
Com o nº 1 desta norma o legislador entendeu que, a partir da entrada em vigor do Código Penal de 1982, as disposições penais avulsas que cominassem penas de prisão cujos limites mínimo e máximo se afastassem desses limites (um mês e vinte anos), passariam, de modo automático, a ser lidas como consagrando estes últimos.
Ora, in casu, no que se refere à pena de prisão, a fixar-se o limite mínimo em trinta dias nos termos estabelecidos no Código Penal, implicaria que fosse coincidir com o limite máximo estabelecido no art. 65º do Regulamento da Lei nº 2097, o que acarretaria uma vez mais, em face da imutabilidade, do caráter fixo da pena, a violação dos princípios da culpa enquanto fundamento e limite da pena, da igualdade, que reclama que se dê tratamento igual a situações basicamente idênticas, da necessidade e da proporcionalidade, que postulam que a gravidade das sanções deve ser proporcional à gravidade das infrações (arts. 1º, 13º, 18º e 25º da Lei Fundamental).
Assim, entendemos que o nº 1 do art. 3º do Decreto-lei nº 400/82, quando interpretado no sentido à aplicação de uma pena de prisão fixa, é inconstitucional por violar os referidos princípios basilares, termos em que se recusa a respetiva aplicação, sob pena de ser o próprio Tribunal a tratar situações distintas de modo igual, em termos perfeitamente incompatíveis com o Direito Penal, que pressupõe a existência de penas variáveis.
Em consequência, na medida em que não é possível aplicar, no que se refere à pena de prisão, a moldura penal traçada pelas regras gerais do Código Penal, há que lançar mão da moldura fixada no Regulamento da Lei nº 2097, sem “atualização”, isto é, sem alteração dos respetivos limites mínimo e máximo.[...]»
2. O Ministério Público interpôs recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de novembro (LTC). Recebido o recurso, alegou:
[...] 2.1. A primeira questão da inconstitucionalidade, anteriormente referida.
2.1.1. Segundo o § único do artigo 67.º do Regulamento quando ocorre a agravante de o facto ter sido praticado durante a noite, é aplicável, quanto ao crime previsto no artigo 65.º, o máximo de pena aqui previsto, ou seja, 30 dias de prisão.
Não há dúvidas, portanto, que estamos perante uma pena fixa, o que não é constitucionalmente tolerável, face aos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Foi precisamente por considerar violados aqueles princípios, que o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante da parte final do § único do artigo 67.º do decreto n.º 44 623, enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64.º (40 dias de prisão) para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada (Acórdão n.º 124/2004).
2.1.2. Ora, sendo a dimensão normativa agora em apreciação diferente da declarada inconstitucional e naturalmente não abrangida por aquela declaração, é óbvio que os fundamentos que levaram a que fosse proferido o juízo positivo de inconstitucionalidade, são inteiramente aplicáveis e transponíveis, sem mais, para a situação que agora está em apreciação.
Sem necessidade de mais considerações remetemos, pois, a fundamentação constante do Acórdão n.º 124/2004.
2.2. A segunda questão de inconstitucionalidade.
2.2.1. O artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82 estabelece que “ficam alterados para os limites mínimo e máximo fixados no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, todas as penas de prisão que tenham duração inferior aos limites ali estabelecidos”.
Nos termos do artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal (atual 41.º, n.º 1) a pena de prisão tem a duração mínima de um mês.
O crime previsto no artigo 65.º do Regulamento é punível com pena de 10 a 30 dias de prisão.
Assim, temos que o mínimo da pena de prisão constante do artigo 40.º do Código Penal coincide com o máximo de pena aplicável ao crime.
Estamos, pois, também aqui, perante uma pena fixa.
2.2.2. Sobre esta questão se pronunciou o Acórdão n.º 22/2003, que julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 433/82, enquanto dele decorre o estabelecimento para a pena de prisão, do limite mínimo previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal aprovado por aquele diploma, relativamente a um tipo legal de crime previsto em legislação avulsa cuja moldura penal tenha como limite máximo um limite igual ou inferior ao limite mínimo consagrado no mesmo n.º 1 do artigo 40.º.
De salientar que nesse processo, tal como neste, estava em causa, precisamente, um crime de pesca ilegal previsto e punido nos termos do artigo 65.º do Regulamento.
Assim, remetemos para a fundamentação constante do Acórdão n.º 22/2003, nada mais havendo a acrescentar.
3. Conclusão
1. A existência de penas – no caso de prisão – fixas, não é constitucionalmente admissível, face aos princípios da culpa, da igualdade, da necessidade e da proporcionalidade.
2. Assim, por violação daqueles princípio constitucionais, a norma do § único do artigo 67.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44.623, de 10 de outubro de 1962, enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 65.º para o crime de pesca com utilização de meios proibidos (artigo 44.º, n.º 1, alínea a)), quando concorre a agravante de os factos serem praticados durante a noite, é inconstitucional.
3. O mesmo ocorrendo com a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de setembro, enquanto manda aplicar o limite mínimo (1 mês) previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal (atualmente artigo 41.º), a um tipo penal previsto em legislação avulsa – no caso o crime de pesca ilegal previsto no artigo 65.º do Regulamento referido –, cuja moldura penal se situa entre os 10 e os 30 dias de prisão.
4. Consequentemente, deve negar-se provimento ao recurso.
3. Não foram apresentadas contra-alegações. Corridos os vistos, cumpre decidir.
4. No Acórdão n.º 124/2004 o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante da parte final do § único do artigo 67º do Decreto n.º 44.623, de 10 de outubro de 1962 – enquanto manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 64º para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada. Fundamentou-se este julgamento no seguinte raciocínio: o legislador, na previsão das penas, deve procurar uma justa medida – uma adequada proporção – entre as penas e os factos a que elas se aplicam: a gravidade das penas deve ser, por isso, proporcional à gravidade das infrações. Decorre dos princípios da culpa, da igualdade e da proporcionalidade a necessidade de a lei prever penas variáveis, pois só assim pode o juiz adequar a pena à culpa do agente, às exigências de prevenção e às demais circunstâncias que ele deve considerar para encontrar, em concreto, a pena ajustada a cada caso. A norma que manda aplicar o máximo da pena prevista para o crime de pesca em época de defeso, quando concorra a agravante de a pesca ter lugar em zona de pesca reservada, é inconstitucional porque viola os princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade.
Ora, a norma agora em causa também impõe, nas circunstâncias aqui verificadas, a aplicação de uma pena fixa (o 'máximo da pena').
Conforme alega, com toda a propriedade, o Ministério Público, «sendo a dimensão normativa agora em apreciação diferente da declarada inconstitucional [no aludido Acórdão n.º 124/2004] e naturalmente não abrangida por aquela declaração, é óbvio que os fundamentos que levaram a que fosse proferido o juízo positivo de inconstitucionalidade, são inteiramente aplicáveis e transponíveis, sem mais, para a situação que agora está em apreciação.»
Com efeito, também no presente caso se verificam os já aqui referidos elementos que, na norma declarada inconstitucional, determinaram tal juízo. Com esse fundamento deve julgar-se constitucionalmente desconforme a norma do § único do artigo 67.º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44.623 de 10 de outubro de 1962, na parte que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 65º para o crime de pesca com utilização de meios proibidos, quando concorre a agravante de os factos serem praticados durante a noite.
5. A segunda questão, sobre a qual o Tribunal também já se pronunciou, reporta-se, igualmente, a um problema de desconformidade constitucional de norma que prevê uma pena fixa de prisão. Com efeito, no Acórdão n.º 22/2003 (DR, II série de 18-02-2003) foi julgada inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 de setembro, «enquanto dela decorre o estabelecimento, para a pena de prisão, do limite mínimo previsto no n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal aprovado por aquele diploma, relativamente a um tipo legal de crime previsto em legislação avulsa cuja moldura penal tenha como limite máximo um limite igual ou inferior ao limite mínimo consagrado no mesmo n.º 1 do artigo 40.º» Ponderou o Tribunal, para esse efeito, que é desconforme com a Lei Fundamental, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade, uma norma de onde decorra a estatuição de penas fixas e que a previsão de uma pena fixa, mesmo que só 'tendencialmente' fixa, torna o normativo que a incorpora materialmente inconstitucional, quer tal previsão resulte diretamente da norma que pune a infração, quer resulte da conjugação com outra norma aplicável ao caso.
Ora, tal como explica o Ministério Público, o crime previsto no artigo 65.º do Regulamento, punível com pena de 10 a 30 dias de prisão, passaria, por força do artigo 3º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 de setembro (diploma preambular do Código Penal), conjugado com o disposto no artigo 40º n.º 1 do Código Penal (atual artigo 41º n.º 1), a ter a duração mínima de um mês, que coincide com o máximo de pena aplicável, convertendo-se, por isso, numa pena fixa de um mês de prisão.
Valem, aqui, as considerações expendidas no aludido Acórdão n.º 22/2003 que conduzem ao julgamento de inconstitucionalidade da norma, tal como, de resto, se julgou na sentença recorrida.
6. Assim, sem necessidade de outras considerações, o Tribunal decide confirmar, nessa parte, a sentença recorrida, julgando inconstitucional:
– a norma do § único do artigo 67º do Regulamento aprovado pelo Decreto n.º 44.623 de 10 de outubro de 1962, na parte que manda aplicar o máximo da pena prevista no artigo 65º para o crime de pesca com utilização de meios proibidos, quando concorre a agravante de os factos serem praticados durante a noite;
– a norma do artigo 65.º do aludido Regulamento, quando, por força do artigo 3º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 400/82 de 23 de setembro (diploma preambular do Código Penal), conjugado com o disposto no artigo 40º n.º 1 do Código Penal (atual artigo 41º n.º 1), determina que a pena aplicável ao crime é uma pena fixa de um mês de prisão.
Sem custas.
Lisboa, 9 de fevereiro de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos.