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Proc. nº 418/92
1ª Secção Rel. Cons. António Vitorino
Acordam, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A A. participou contra B., por este, como sócio gerente da C., em 17 de Março de 1987, ter emitido e lhe ter entregue um cheque no valor de 297.809$00, para pagamento de mercadorias à queixosa, cheque esse que, uma vez apresentado a pagamento no prazo legal, não foi liquidado por falta de provisão.
Após inquérito preliminar elaborado pela Directoria de Lisboa da Polícia Judiciária, foram os autos remetidos ao Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa que, por despacho de 20 de Maio de 1992, entendeu que havia lugar a instrução preparatória, 'uma vez que o Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro.
A pretensão assim deduzida assentava no entendimento de que a norma do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro - que determinava
'que o crime de emissão de cheque sem provisão será averiguado em inquérito preliminar, independentemente das circunstâncias e do seu valor (...)' - havia sido revogada pelo artigo 15º, alínea b), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, pelo que, não contendo este último diploma disposição específica sobre a fase preliminar do processo por crime de emissão de cheque sem provisão, haveria que aplicar o regime geral vigente na matéria relativamente a processos instaurados, como o presente, antes de 1 de Janeiro de 1988. Ora, a esse respeito, dispunha o nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, na redacção do Decreto-Lei nº 402/82, de 23 de Setembro, que haveria instrução preparatória quando ao crime correspondesse processo de querela, isto
é, fosse punível com pena de prisão por mais de três anos ou demissão (artigo
63º do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do mesmo Decreto-Lei nº
402/82), e, no caso, o crime era punível, dado o quantitativo sacado ser consideravelmente elevado (cfr. fls. 55 vº, em que se menciona o artigo 24º, nº
2, alínea c), do Decreto nº 13004, de 12 de Janeiro de 1927, na redacção do artigo 5º do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de Setembro, a que hoje correspondem os artigos 11º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, e 314º, alínea c), do Código Penal de 1982) com prisão de 1 a 10 anos.
2. Contudo, o juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, por despacho de 9 de Junho de 1992, entendeu não dever proceder à pretendida instrução em virtude de se ter recusado a aplicar ao caso o Decreto-Lei nº
454/91, com fundamento em inconstitucionalidade. O que fez com os seguintes fundamentos:
' Decorre do exame do preâmbulo do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, que este diploma regulamentador do uso do cheque e, por consequência,
'instituição' legal definidora do ilícito emissão de cheque sem provisão e seu regime, dimana do Governo no uso de autorização legislativa que foi concedida pela Assembleia da República através da Lei nº 30/91, de 20 de Julho, autorização essa válida pelo período de 90 dias.
Assim sendo, há que atentar na disciplina ínsita no artigo 168º da Constituição da República Portuguesa, normativo este que versa a matéria sobre autorizações legislativas, o qual, no seu nº 4, claramente consagra a caducidade daquelas, entre outras razões, - 'com o termo da legislatura' para o qual elas foram concedidas.
Concatenando tais directivas com o modo e tempo como aconteceram, o termo da legislatura que gozava da faculdade de legislar sobre a matéria em exame e da exclusiva competência da Assembleia da República (vidé artigos 113º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea c) da Constituição da República Portuguesa) e o início de nova legislatura durante a qual foi publicado e, consequentemente, entrou em vigor o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, é-se tentado a afirmar ter este surgido estando já caduca a autorização legislativa que o suportou.
Na realidade, é inquestionável que a sexta legislatura da Assembleia da República teve início em 4 de Novembro de 1991, reunindo em sessão plenária ao abrigo do artigo 176º, nº 1, da Constituição após publicação dos resultados eleitorais no Diário da República - cfr. D.A.R., de 5 de Novembro de 1991, I Série, nº 1, de 29 de Outubro de 1991, e D.R., I Série-A, nº 249.
Apresenta-se também inabalável que a última reunião plenária da anterior legislatura se efectuou em 20 de Junho de 1991 e a última reunião da comissão permanente ocorreu em 31 de Outubro de 1991 - ver D.R. de 21 de Junho de 1991, I Série, nº 96, e de 2 de Novembro de 1991, I Série, nº 105 - tendo a
5ª legislatura funcionado, em Comissão Permanente, até 3 de Novembro de 1991.
Tal demonstra de modo cristalino que a autorização legislativa invocada no Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, caducou em 3 de Novembro, e, por conseguinte, tal diploma quando publicado enferma de vício de inconstitucionalidade orgânica, porque oriundo de órgão sem competência sobre a matéria e desprovido de autorização para tal.
E não se diga que o ora apreciado Decreto-Lei terá sido elaborado no tempo da autorização, aprovado em Conselho de Ministros em tempo - 29 de Agosto de 1991 - tendo surgido a sua promulgação, e tão-só esta, fora de tempo, isto é, depois da 5ª legislatura.
Tal em nosso entender não colhe, pois até então e mesmo com a promulgação, o diploma não existe. 'Os decretos-leis autorizados devem ser publicados durante o período da autorização, pois só a publicação lhes dá existência e não é possível controlar o momento da aprovação' (GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, 'Constituição da República Portuguesa Anotada', Coimbra Editora, pág. 336).
Com efeito, sendo concedida autorização para 'construir' um diploma no
âmbito e aquando do tempo de certa governação, com filosofia e princípios próprios e específicos de determinado corpo e ideologia, não faria sentido este surgir a público apenas e tão-só a tempo de outro governo que se orientasse por filosofia e princípios completamente opostos.
Face a todo o expendido, conclui-se que as normas constantes do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, são organicamente inconstitucionais, não podendo as mesmas serem publicadas o que implica consequentemente a plena vigência do Decreto-Lei nº 14/84.
Nestes termos, recusa-se por inconstitucional a aplicação do novo diploma - Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - não se procedendo à pretendida instrução'.
3. Desta decisão interpôs recurso obrigatório de constitucionalidade o representante do Ministério Público junto do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
Nas suas alegações, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, depois de delimitar o objecto do recurso à norma da alínea b) do artigo 15º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, na parte em que revogou o artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro ( pois o que está em causa é verdadeiramente a questão da constitucionalidade da norma que fundou a pretensão de realização da instrução preparatória), ofereceu o seguinte quadro de conclusões.
'1º - Para que uma autorização legislativa seja validamente utilizada basta que, antes de expirar o prazo da sua duração e antes do termo da legislatura da Assembleia da República que a concedeu, o Governo haja aprovado, em Conselho de Ministros, o correspondente decreto-lei, sendo irrelevante que este só venha a ser promulgado, referendado e publicado para além daqueles termos;
2º - Assim, o Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, aprovado em Conselho de Ministros em 29 de Agosto de 1991, foi-o antes de expirado o prazo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 30/91, de 20 de Julho, e antes do termo da V Legislatura da Assembleia da República;
3º - Não sofre, por isso, de inconstitucionalidade orgânica a norma do artigo 15º, alínea b) desse Decreto-Lei, na parte em que revogou o artigo 3º, nº
1, do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro'.
Razões pelas quais preconizou que fosse concedido provimento ao recurso e se determinasse, em consequência, a reformulação da decisão recorrida, na parte impugnada.
4. Corridos que foram os vistos legais, passa-se a decidir a questão de constitucionalidade colocada no presente processo.
II
1. Conforme refere, nas suas alegações, o Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, embora a decisão recorrida refira genericamente o Decreto-Lei nº
454/91, estando em causa essencialmente a revogação do artigo 3º, nº 1, do Decreto-Lei nº 14/84, o alegado vício de inconstitucionalidade orgânica reporta-se à norma da alínea b), do artigo 15º, do Decreto-Lei nº 454/91, a qual constitui, por isso, objecto do presente recurso.
Mas, tratando-se de um vício de inconstitucionalidade orgânica, naturalmente que o mesmo terá que ser aferido ao conjunto do diploma onde se insere a norma que directamente constitui fundamento da decisão recorrida.
2. Ora, sobre a alegada inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei nº
454/91, já o Tribunal Constitucional teve ocasião de formular um juízo inequívoco, no Acórdão nº 349/93, publicado no Diário da República, II Série, de
3 de Agosto de 1993.
No que ora releva, pode ler-se naquele aresto:
'Mas, uma vez determinado o sentido da política criminal pretendida pela lei de autorização legislativa, não poderá ainda sustentar-se a inconstitucionalidade orgânica da norma em apreço, com fundamento em caducidade dessa mesma autorização?
Com efeito, o artigo 168º, nº 4, da Constituição, dispõe que 'as autorizações caducam [...] com o termo da legislatura' e tanto a promulgação como a referenda e publicação do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, tiveram lugar após o termo da 5ª Legislatura da Assembleia da República.
Porém, como este Tribunal vem entendendo, o momento relevante na contagem dos prazos da autorização legislativa é, quanto aos decretos-leis autorizados, o da sua aprovação em Conselho de Ministros. Acolhendo a orientação de António Vitorino, o Acórdão nº 150/92 deixou afirmado:
Fica-nos, pois, como mais aceitável a tese da utilização com a aprovação em Conselho de Ministros. Não só pelo paralelo que se pode estabelecer com a aprovação parlamentar (a lei considera-se definitivamente aprovada quando o Parlamento vota o seu texto final em termos globais) mas também porque, sendo a autorização legislativa um instituto que assenta no relacionamento directo e especialmente vinculante entre o Parlamento e o Governo, um dado e concreto Governo, este cumpre o ónus que para ele decorre da lei de autorização com a aprovação do acto delegado, desonerando-se assim da incumbência que se lhe encontra cometida pela lei de delegação, cessando aí, nessa aprovação, a sua responsabilidade quanto à efectiva utilização da autorização conferida ( in Diário da República, 2ª série, de 28 de Julho de 1992; cf. também, Acórdão nº
400/89, in Boletim do Ministério da Justiça, nº 387, pág. 215).
Não procede, pois, a tese da inconstitucionalidade da norma impugnada, mesmo em confronto com o enunciado relativo à caducidade da autorização legislativa, contido no artigo 168º, nº 4, da Constituição da República.'
3. Este Acórdão, embora versando um recurso em sede de fiscalização concreta, foi tirado pelo Tribunal Constitucional, em sessão plenária, ao abrigo da faculdade conferida ao presidente do Tribunal, pelo artigo 79º-A, da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com a redacção dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, para promover o julgamento do caso em plenário 'quando o considerar necessário para evitar divergências jurisprudenciais ou quando tal se justifique em razão da natureza da questão a decidir', pelo que à orientação assim definida
é devida observância por parte das duas secções do Tribunal. E embora o citado aresto tenha versado apenas sobre a norma do artigo 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, o aludido juízo àcerca da alegada inconstitucionalidade orgânica reporta-se, como se viu, ao conjunto do diploma em causa, pelo que, inexistindo qualquer especificidade, neste domínio, em relação à norma ora impugnada (do artigo 15º, alínea b) do mesmo diploma), ao Tribunal mais não cabe do que aplicar também a este caso a orientação jurisprudencial anteriormente definida e que acabamos de citar.
III
Nestes termos, o Tribunal decide não julgar organicamente inconstitucional a norma da alínea b) do artigo 15º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro e, consequentemente, conceder provimento ao recurso e determinar a reforma da decisão recorrida de acordo com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Outubro de 1993
António Vitorino
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa