Imprimir acórdão
Proc. nº 306/94
1ª Secção
Rel. Cons. Ribeiro Mendes
FALTA EXPOSIÇÃO
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Nos presentes autos de recurso de
constitucionalidade, em que são recorrentes F... e sua mulher, e recorrido M...,
o relator elaborou exposição liminar nos termos do art. 78º-A, nº 1, da Lei do
Tribunal Constitucional, em que preconizou que deveria ser negado provimento ao
recurso, por entender que a norma objecto do recurso - norma do art. 678º, nº
1, do Código de Processo Civil - não sofria de inconstitucionalidade, razão por
que devia ser confirmado o despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
que a aplicara. Nessa exposição indicou-se que a solução preconizada para o
julgamento da questão de inconstitucionalidade era pacificamente aceite por
jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional, tendo citado espécies
jurisprudenciais mais significativas.
2. Notificados recorrentes e recorrido para se
pronunciarem, querendo, sobre o teor da exposição do relator, vieram apenas os
primeiros a fazê-lo, discordando desse teor, sustentando que deveria ser
concedido provimento ao recurso (requerimento de fls. 166 a 168).
Para tanto invocaram as seguintes razões:
- Nas acções de despejo relativas a contrato de arrendamento cuja renda seja
superior a Esc. 166.667$00, o réu-inquilino pode recorrer para o Supremo
Tribunal de Justiça, ao passo que outro inquilino em igualdade de
circunstâncias, mas cuja renda locatícia seja inferior àquele montante limite,
não o poderá fazer em princípio. A circunstância de poder haver na acção de
despejo dedução de pedidos cumulados, a título principal ou reconvencional, e,
desse modo, ser excedido o valor da alçada da Relação, não constitui argumento
válido no sentido da não inconstitucionalidade, visto que esses eventuais
pedidos cumulados 'não se prendem directamente com a a subsistência do contrato
de arrendamento';
- O direito à habitação é um direito complexo, com uma componente social, que
tem sempre o mesmo 'valor' numa acção de despejo, independentemente do valor da
renda, merecendo a mesma tutela do direito, pelo que é incompreensível que, nuns
casos, uns réus possam chegar, em via de recurso, ao Supremo Tribunal de
Justiça, enquanto que outros réus não possam chegar a esse Tribunal;
- A desigualdade em causa decorre de um 'facto aleatório, que é o valor da
renda', daí decorrendo 'uma injustificada e injustificável discriminação entre
inquilinos habitacionais, o que equivale a dizer que há direitos à habitação
mais dignos de tutela do que outros sendo, porém que, em todas as
circunstâncias, este direito, que se acha constitucionalmente consagrado, deverá
ter a mesma dignidade, ou seja, o mesmo «valor»';
- Acresce que, nas acções de despejo também está envolvido um valor patrimonial,
que será tanto mais elevado quanto mais baixa for a renda, uma vez que 'o
prejuízo decorrente do despejo há-de ser apurado em função da capitalização do
diferencial entre o valor da renda paga na casa que se pretende despejar e o
valor da renda a pagar em casa idêntica, em novo arrendamento'. Daí que se tenha
por inaceitável que, 'quanto maior for o valor patrimonial envolvido, menor seja
a possibilidade de o fazer valer em juízo, isto é, que mais encurtada seja a
garantia de acesso ao tribunal';
- Tal solução acarreta uma injustificada desigualdade 'já que, se a situações
desiguais deve corresponder desigual tratamento, a verdade é que deve haver
homologia entre a desigualdade de situações e a desigualdade de tratamento'. A
homologia não ocorre visto que a desigualdade de tratamento 'penaliza aqueles
casos em que o direito é mais forte e merecedor de maior protecção'.
2. Não obstante o carácter sugestivo de algumas
das razões avançadas pelos recorrentes na reclamação interposta para o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e agora reiteradas e desenvolvidas,
crê-se que as mesmas respeitam a normas que excedem o objecto do recurso de
constitucionalidade, tal como foi delimitado na exposição do relator.
Desde a reclamação para o Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça que os recorrentes consideram inconstitucional 'a norma que
decorre das disposições conjugadas dos arts. 20º, nº 1 da Lei nº 38/87, de 23 de
Dezembro (Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), 678º, nº 1 e 307º, nº 1 do
Código de Processo Civil e 57º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que conduz a que só sejam recorríveis
para o Supremo Tribunal de Justiça as decisões proferidas em acções de despejo
quando a renda mensal for superior a Esc: 166.667$00' (a fls. 129 dos autos;
esta norma complexa é de novo indicada como objecto do recurso de
constitucionalidade no requerimento de fls. 151 e agora no requerimento de fls.
166 a 168).
Ora, é seguro que não foi tal 'norma complexa'
que foi aplicada no despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça sob
recurso!.
3. As razões invocadas pelos recorrentes
prendem-se essencialmente com a norma do art. 307º, nº 1, do Código de Processo
Civil. De facto, essa norma dispõe que, nas acções de despejo, 'o valor é o da
renda anual, acrescida das rendas em dívida e da indemnização requerida'.
Ora, tendo o autor, ora recorrido, indicado na
petição inicial como valor da acção de despejo o de 48.582$00 (a fls. 3 dos
autos), os réus, ora recorrentes, não impugnaram esse valor, não suscitando,
nomeadamente, a inconstitucionalidade da norma do art. 307º, nº 1, daquele
diploma. Mas eles não podiam desconhecer que a lei impõe que ao valor processual
(no caso, o valor de 48.582$00) 'se atenderá para determinar ... a relação da
causa com a alçada do tribunal' (art. 305º, nº 2, do mesmo Código). A falta de
impugnação do valor da acção por parte do réu tem o significado legal de
aceitação do valor atribuído à causa pelo autor (art. 314º, nº 1). O valor da
acção ficou, assim, definitivamente fixado no valor acordado, depois de
proferido o despacho saneador (art. 315º, nº 2, do Código de Processo Civil; no
saneador não se fixou qualquer outro valor à causa - fls. 39 a 40 vº).
Por isso, o despacho recorrido não aplicou
autonomamente o disposto no art. 307º, nº 1, do Código de Processo Civil, nem
podia fazê-lo, porque a questão ficou arrumada pelo trânsito em julgado do
saneador. Limitou-se a tomar o valor da acção como dado definitivo.
4. Importa afirmar igualmente que o art. 57º, nº
1, do R.A.U. não foi aplicado pelo despacho recorrido. Esta norma - que
substituiu o art. 980º, nº 1, do Código de Processo Civil, mantendo a mesma
solução contida neste preceito - encerra uma excepção ao regime geral constante
do nº 1 do art. 678º do Código de Processo Civil, garantindo sempre o recurso
para a 2ª instância nas acções de despejo 'independentemente do valor da causa'.
A tese dos recorrentes é a de que esta norma integra a norma 'complexa' objecto
do recurso, ao que parece, delimitando-a negativamente. No fundo, afigura-se que
os recorrentes pretendem suscitar a inconstitucionalidade de uma omissão do
legislador, pois sustentam que esse artigo deveria estatuir que a acção de
despejo haveria de admitir recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça,
independentemente do valor da causa.
Se for correcta a leitura desta arguição como
tratando-se de suscitação de uma inconstitucionalidade por omissão, é manifesta
a ilegitimidade dos recorrentes e a inidoneidade do meio processual (cfr. art.
283º da Constituição).
Se se tiver por impugnada a constitucionalidade
da norma em si, haverá de dizer-se que a mesma não foi aplicada pelo despacho
recorrido.
5. Nos autos, nunca se suscitou qualquer dúvida
de que a norma verdadeiramente impugnada pelos recorrentes foi a do nº 1 do art.
678º do Código de Processo Civil, ou mais rigorosamente, a da primeira parte
deste número (integrada pela norma do nº 1 do art. 20º da Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais, por força da remissão naquela operada para os valores das
alçadas). Dispõe a 1ª parte desse nº 1 do art. 678º:
'Só é admissível recurso ordinário nas causas de valor superior à alçada do
tribunal de que se recorre desde que as decisões impugnadas sejam desfavoráveis
para o recorrente em valor também superior a metade da alçada desse tribunal;
[...]'.
De facto, no acórdão de fls. 132 (acórdão
proferido pelo Tribunal da Relação, nos termos do nº 3 do art. 688º do Código de
Processo Civil, onde foi decidido manter o despacho de rejeição do recurso,
proferido pelo relator) pode ler-se o seguinte:
'Tal recurso não foi admitido pelo Relator, com fundamento em que, embora a
acção de despejo admita sempre recurso para a Relação, independentemente do
valor da causa - art. 57º nº 1 do R.A.U., proferida a decisão da Relação há que
observar a regra geral contida no art. 678º nº 1 do CPC...'
E, no despacho recorrido proferido pelo
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, tal conclusão não é menos clara:
'Reconhecem os reclamantes que o valor da acção é aquele de 48.582$00, muito
inferior, pois, à alçada da Relação (art. 20º da Lei nº 38/87) e não permitindo,
por isso, o recurso para o Supremo (art. 678º -1 do Cód. P. Civil), tanto mais
que a excepção à regra das alçadas que bonifica as acções de despejo (art. 57º
do RAU - dec-lei nº 321-B/90, de 15-10) é restrita ao segundo grau de
jurisdição, ou seja, ao recurso para a Relação.
Só que, como se notou, discordam eles da regra legal que
determina o modo de se encontrar o valor da acção de despejo, por um lado. Por
outro, parece defenderem mesmo que para eles não deve haver mesmo qualquer
limitação de recursos em razão do valor, sob pena de inconstitucionalidade.' (a
fls. 149 dos autos)
6. As questões que se prendem com a eventual
inconstitucionalidade do disposto no nº 1 do art. 307º do Código de Processo
Civil foram, assim, suscitadas extemporaneamente, após o trânsito em julgado da
decisão que condiciona a fixação do valor processual admitido por acordo das
partes.
Como consta da exposição preliminar, a norma
aplicada pelo Supremo e impugnada pelos recorrentes - a da 1ª parte do nº 1 do
art. 678º do Código de Processo Civil, integrada pelo valor constante do art.
20º, nº 1, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais - não se acha afectada de
inconstitucionalidade, como constitui jurisprudência firme do Tribunal
Constitucional.
Acrescente-se que, quanto à norma que constitui
objecto do recurso, não aduziram autonomamente os recorrentes razões novas que
ponham em causa a orientação do Tribunal Constitucional nesta matéria.
7. Nestes termos e pelas razões expostas na
exposição do relator que aqui se reafirmam, decide o Tribunal Constitucional
julgar improcedente o recurso, confirmando o despacho recorrido no que toca ao
julgamento de inconstitucionalidade,
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de
justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa,21 de Fevereiro de 1995
Ass) Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria Fernanda Palma
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa