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Processo n.º 861/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama do despacho de 20 de outubro de 2011 que, com fundamento em que a questão de constitucionalidade não foi suscitada no momento processualmente adequado, não admitiu um recurso que interpôs de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.
A recorrente argumenta em síntese, que suscitou a questão que quer ver apreciada no primeiro momento em que teve para tanto oportunidade processual, pelo que o recurso deve ser admitido.
A recorrida B., SA sustenta que o despacho que não admitiu o recurso deve ser mantido.
2. O Ministério Público emitiu parecer nos termos seguintes:
“(…)
8. Se a recorrente invoca a violação do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil, na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça adotou uma solução jurídica, nova, não lhe dando possibilidade de sobre ela previamente se pronunciar, parece-nos que “durante o processo”, ou seja, até ser proferido o Acórdão que adotou a solução, a questão não podia ser suscitada.
9. Naturalmente que, apenas quando foi notificada do Acórdão que concedeu parcial provimento ao recurso, de 7 de junho de 2011, é que a recorrente tomou conhecimento da “nova” fundamentação, reagindo com a arguição de nulidade do Acórdão.
10. Assim, diferentemente, do que entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, o momento processual adequado para suscitar a questão da inconstitucionalidade era a reclamação em que arguiu a nulidade (vd. n.º 3).
11. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal, a recorrente afirma que pretende “a análise do mencionado artigo 3.º do CPC, com base na interpretação de constitucionalidade que obrigue o tribunal recorrido a ouvir as partes caso pretenda decidir de mérito com base numa solução de direito nunca antes debatido nos autos”.
12. Ora, quer nesta parte do requerimento, quer no anterior parágrafo, não se enuncia uma questão de inconstitucionalidade normativa, antes a recorrente entende que a decisão do Supremo constituiu uma decisão-supresa e a sua não prévia notificação era violadora do princípio do contraditório, com consagração constitucional (artigo 20.º da Constituição) e previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
13. Como o Supremo entendeu que não se estava perante uma decisão-surpresa, não se justificando, por isso, a aplicação do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (vd nº4 e 5), o cerne da questão gira em torno do conceito de decisão-surpresa, cabendo à recorrente identificar qual a interpretação do n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil em causa, cuja não consideração como decisão-surpresa, era violadora do artigo 20.º da Constituição.
14. Naturalmente que essa dimensão normativa teria de ser enquadrada pelas circunstâncias do caso, ou seja, mantendo-se intacta a matéria de facto, o Supremo entendeu que se verificava concorrência de culpas no incumprimento de um contrato-promessa, quando cada uma das partes imputava exclusivamente à outra, esse incumprimento.
15. Ora, a recorrente, nem quando reclamou arguindo a nulidade do Acórdão do Supremo, nem no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade (como atrás se disse) enuncia, de forma clara e objetiva, uma questão de inconstitucionalidade normativa que respeitasse o exato sentido, conteúdo e alcance da decisão recorrida.
16. Pelo exposto, ainda que com fundamento diferente do constante da decisão reclamada, deve indeferir-se a reclamação.
Notificada deste parecer do Ministério Público, a recorrente sustenta que deve conhecer-se do recurso porque:
«(…)
No requerimento em que foi invocada a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a aqui reclamante foi clara e objetiva a invocar a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 3, n.º 3 do CPC na interpretação da não necessidade de audição das partes quando a decisão do Supremo Tribunal de Justiça tem por base pressupostos ignorados pelas instância e pelas partes, por violação do art. 20 da Constituição.
A aqui reclamante defendeu a interpretação segundo a constituição dessa norma do art. 3 n. 3 do CPC no sentido de que mesmo quanto a questões de direito o Supremo Tribunal de Justiça deve ouvir as partes quando pretende proferir decisão baseada em fundamentos que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Efetivamente, na reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça, a reclamante expõe as duas interpretações que têm sido dadas à norma do art. 3, n. 3 do CPC; e desenvolve – ainda que sumariamente – o princípio do contraditório previsto no art. 20º da Constituição e conclui pela necessidade de se adotar a interpretação segundo a constituição.
Sublinhamos que no requerimento em que é invocada a nulidade do acórdão a reclamante não tinha a obrigação de alegar a inconstitucionalidade de uma das interpretações, bastava dizer que a “decisão surpresa” está proibida na norma do art. 3, n. 3 do CPC.
Somente face à resposta do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que interpretava essa norma como não contendo a proibição é que a reclamante tinha que arguir a inconstitucionalidade da norma segundo essa interpretação.
Mas, a reclamante, na reclamação para a conferência, adiantou-se e claramente definiu o âmbito de constitucionalidade da interpretação da norma em causa.
Invocou não só as teses em conflito, como referiu doutrina e jurisprudência sobre a matéria.
E, quando reproduz a doutrina do Professor Doutor Lebre de Freitas, a reclamante alega: “o art. 20º da Constituição tem também o sentido material de garantia do chamado principio do contraditório (...) deve ser entendido como o princípio da participação efetiva (das partes) no desenvolvimento do litígio ... A decisão não deve ser proferida com base num fundamento de direito sobre a qual as partes não tenham tido a possibilidade de previamente se pronunciar (...) As decisões-surpesa não devem, pois, ter lugar sem ofensa do principio do contraditório”
E, e na reclamação para a conferência a reclamante invoca a doutrina do professor Doutor Gomes Canotilho sobre a interpretação de normas segundo a Constituição referindo que quando se verifica que o texto legal aponta para possibilidades interpretativas variadas, impõe-se ao julgador extrair da lei o sentido que mais se harmonize com a Constituição.
E, na referida reclamação para a conferência a reclamante concluiu: “É assim, manifestamente uma decisão surpresa, razão pela qual o Tribunal deveria – de acordo com o princípio do contraditório com consagração constitucional no art. 20 do texto fundamental e previsto no art. 3, n. 3 do CPC – ter ouvido as partes antes de pronunciar o acórdão”.
Assim, aqui haverá que concluir que não existem dúvidas que a reclamante levou à análise do Supremo Tribunal de Justiça, na primeira oportunidade para o efeito, uma questão de inconstitucionalidade normativa: a inconstitucionalidade da norma do n. 3 do art. 3 do CPC na interpretação adotada Supremo Tribunal de Justiça, advogando uma outra interpretação, i.e. a interpretação da norma do art. 3, n. 3 do CPC conforme aquela outra que se extrai do art. 20 da Constituição.»
3. Para decisão da reclamação interessam as ocorrências processuais seguintes:
a) Por acórdão de 7 de junho de 2011, o Supremo Tribunal de Justiça concedeu provimento a recurso interposto por B. S. A. (ré na ação) de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que negara provimento a apelação de sentença da 1ª instância favorável à ora reclamante (autora na ação);
b) Esta apresentou reclamação para a conferência, argumentando que a solução adotada constituiria uma “decisão-surpresa”, invocando a nulidade decorrente de não ter sido ouvida nos termos previstos no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil (CPC);
c) Por acórdão de 27 de setembro de 2011, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação;
d) A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional mediante requerimento do seguinte teor:
“A., notificada do douto acórdão de fls. ... vem impugnar o mesmo junto do Venerando Tribunal Constitucional, uma vez que constitui uma decisão surpresa, na medida em que decidiu de mérito sobre o objeto do litigio de modo nunca antes debatido no processo, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a nova interpretação de direito, o que implica uma ofensa do princípio do contraditório, com consagração constitucional no art. 20º da Constituição da República Portuguesa e previsto no art. 3, n. 3 do CPC.
O presente recurso é apresentado ao abrigo da alínea b) do art. 70 da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo-se a análise do mencionado art. 3º do CPC com base na interpretação de constitucionalidade que obrigue o Tribunal recorrido a ouvir as partes caso pretenda decidir de mérito com base numa solução de direito nunca antes debatida nos autos.
A presente questão de inconstitucionalidade foi arguida pela aqui recorrente na sua reclamação para a conferência do douto acórdão do STJ de fls…
e) Esse recurso não foi admitido, tendo sido proferido o seguinte despacho em 20 de outubro de 2011:
“A. manifesta, através do requerimento de fls. 1950, vontade em recorrer para o Tribunal Constitucional da decisão que reputa de decisão?surpresa, por ter aplicado norma que não havia sido suscitada pelos pleiteantes e que este Supremo Tribunal aplicou sem previamente os ter auscultado sobre a sua aplicação.
Como refere na parte final do requerimento em que manifesta a vontade recursória, a questão da inconstitucionalidade da norma que crisma de inconstitucional – artigo 3.º do Código Processo Civil – só foi suscitada na reclamação, para a conferência, do aresto que decidiu a causa.
Nos termos do n.º 1, al. b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional cabe recurso para este Tribunal das decisões “que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada no processo”.
A inconstitucionalidade reclamada não foi suscitada e por tal não foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça na decisão que proferiu. Não tendo sido suscitada ao longo do processo e não tendo o Tribunal emitido pronúncia quanto à eventual inconstitucionalidade não é admissível recurso, nos precisos termos do segmento de norma ao amparo do qual se pretende escorar a pretensão recursória.
Pelo exposto não se admite o recurso interposto.”
4. No despacho reclamado entendeu-se que obstava à admissão do recurso o facto de a recorrente não ter suscitado a questão de constitucionalidade do artigo 3.º, n.º 3, do CPC antes de o Supremo ter proferido o acórdão que julgou o recurso (acórdão de 7 de junho de 2011). O despacho considera que a arguição da nulidade não seria já momento idóneo para cumprimento do ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e pelo n.º 2 do artigo 72.º da LTC.
Não se sufraga este entendimento. Em concordância com o parecer do Ministério Público, entende o Tribunal que a arguição de nulidade por violação do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do CPC seria o momento processualmente adequado para suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma interpretada no sentido que conduz ao indeferimento dessa arguição. No caso, a recorrente não foi confrontada, em momento anterior, com a hipótese de aplicação da norma processual com esse sentido, nem era razoável que representasse essa possibilidade e arguísse a respetiva inconstitucionalidade. Em princípio, salvo hipóteses incomuns em que tal modo de proceder seja prenunciado, relativamente a normas como a que está em causa, só quando toma conhecimento de determinada decisão judicial que adota uma solução jurídica sobre a qual, no seu entender, não tenha tido oportunidade de se pronunciar, a parte fica em condições de reagir contra a preterição do contraditório. Só então lhe é exigível que represente a hipótese de a norma processual não vir a ser interpretada no sentido que conduziria a que devesse ser ouvida e de suscitar a correspondente inconstitucionalidade.
Em conclusão, o requerimento de arguição de nulidade seria, no concreto desenvolvimento do processo, momento processual adequado para suscitar a questão de inconstitucionalidade da norma do n.º 3 do artigo 3.º do CPC.
5. Não subsistindo o motivo específico que levou o Supremo a não admitir o recurso, importa averiguar se estão reunidas todas as condições para que o recurso possa prosseguir, designadamente se procedem as objeções sugeridas no parecer do Ministério Público sobre o qual a recorrente foi ouvida. Com efeito, fazendo a decisão a proferir caso julgado quanto à admissibilidade do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC), o âmbito de apreciação tem de ser exauriente de eventuais causas obstativas. E o reclamante tem o ónus de suprir, na reclamação, eventuais deficiências removíveis do requerimento de interposição, a fim de que o Tribunal possa emitir pronúncia com o alcance legalmente estabelecido.
Ora, em primeiro lugar, é duvidoso que no requerimento de interposição de recurso a recorrente enuncie uma norma cuja apreciação de constitucionalidade submeta a apreciação do Tribunal.
Com efeito, no primeiro parágrafo desse requerimento a recorrente diz que o acórdão [aqui só pode estar a referir-se ao acórdão que julgou a revista e não ao acórdão que apreciou a nulidade processual] “constitui uma decisão surpresa, na medida em que decidiu de mérito sobre o objeto do litigio de modo nunca antes debatido no processo, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem sobre a nova interpretação de direito, o que implica uma ofensa do princípio do contraditório, com consagração constitucional no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC”. Com esta enunciação, objeto de censura seria a atuação do Supremo Tribunal de Justiça, que se teria afastado do prescrito na Constituição e no Código de Processo Civil. Porém, não compete ao Tribunal Constitucional apreciar se determinada decisão judicial é uma decisão surpresa ou denota um modo inconstitucional de proceder, mas apenas se é inconstitucional uma norma perfeitamente identificada ao abrigo da qual o tribunal que a proferiu entenda poder proceder daquele modo.
E, no parágrafo seguinte, o requerimento diz pretender-se “a análise do mencionado artigo 3.º do CPC com base na interpretação de constitucionalidade que obrigue o Tribunal recorrido a ouvir as partes caso pretenda decidir de mérito com base numa solução de direito nunca antes debatida nos autos”. Embora referindo como objeto de fiscalização o artigo 3.º do CPC, o que literalmente refere é a “interpretação de constitucionalidade”, ou seja, o sentido do parâmetro constitucional, não o sentido da norma infraconstitucional concretamente aplicada, como é seu ónus (cfr. Acórdão n.º 178/95, www.tribunalconstitucional.pt).
Mesmo que assim não se entenda e se considere aproveitável o enunciado no requerimento de interposição quanto à “interpretação de constitucionalidade”, na medida em que daí poderá deduzir-se com suficiente segurança que a recorrente pretende ver apreciada a interpretação contrária (i.e., a norma do n.º 3 do artigo 3.º do CPC interpretada no sentido de que o tribunal não tem de ouvir as partes quando pretenda decidir de mérito com base numa solução de direito nunca antes debatida nos autos), o certo é que o acórdão recorrido não fez aplicação da norma com esse preciso sentido.
Na verdade, o acórdão que apreciou a nulidade, depois de um percurso doutrinário sobre a questão da chamada “decisão-surpresa”, analisa o caso nos seguintes termos:
“(…)
No caso concreto, pensamos, não estarmos perante um caso em que as partes não tivessem tido oportunidade de debater as questões e os factos perante as instâncias e estando este tribunal cingido aos factos adquiridos pelas instâncias, e considerando que o quadro factológico adquirido não necessitava de ser ampliado, a possibilidade de o tribunal qualificar juridicamente as condutas espelhadas na factualidade adquirida era ou devia ser previsível para qualquer dos pleiteantes. A decisão recaiu sobre factos debatidos e devidamente sedimentados pelo que as partes não tiveram diminuição dos respetivos direitos quando o tribunal avaliando os factos trazidos pelas instâncias apurou, diversamente do que tinha sido a posição por elas assumida, que a responsabilidade na rutura da relação contratual devia ser computada numa proporção de metade para cada uma delas. A decisão não se afasta, ou não pode constituir, em face dos factos adquiridos pelas instâncias, uma decisão injusta, por não se revelar uma emanação de um desvio que deva ser crismado ou taxado de imparcialidade ou postergação de factos ou direitos não alegados.
Não se constituindo a decisão como violadora dos deveres de colaboração ou de cooperação, por terem tido as partes a possibilidade de debaterem as respetivas responsabilidades na quebra da relação contratual ao longo de todo o processo e constituindo-se a decisão tomada uma emanação dos factos adquiridos pelas instâncias, mediante a atribuição de culpas repartidas na responsabilidade que cada uma imputava à outra, estimamos não ter este Tribunal proferido uma decisão?surpresa.
(…).”
Não pode, portanto, dizer-se que o acórdão interpretou o n.º 3 do artigo 3.º do CPC como permitindo ao tribunal decidir com base numa solução de direito nunca antes debatida pelas partes. O Supremo considerou que podia adotar o fundamento jurídico pelo qual enveredou porque esse era um desfecho que as partes tiveram oportunidade de prever e debater. Considera o acórdão que essa solução não é senão o desenvolvimento do debate travado no processo, em que cada uma das partes imputa à outra a culpa na quebra da relação contratual. A repartição de culpas seria um desfecho previsível. Ora, ainda que se julgue possível aproveitar o enunciado da recorrente, esta dimensão normativa concretamente aplicada não corresponde ao objeto do recurso assim entendido.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar a recorrente nas custas com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 22 de fevereiro de 2012.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.