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Processo n.º 518/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele tribunal, para apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 200.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro).
2. As partes foram notificadas para alegar, com a advertência de que o objecto do recurso está delimitado à apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 200.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, adiante designado CEPMPL), quando interpretado no sentido de não ser impugnável judicialmente a decisão administrativa de colocação ou manutenção do recluso em regime de segurança.
3. O recorrente apresentou alegações, onde conclui o seguinte:
«1.ª A execução da pena em regime de segurança importa para o recluso, a esta afecto, um aumento significativo de restrições aos direitos subjectivos pessoais, de cariz fundamental, os quais subsistem na esfera jurídica do recluso, sendo que, tais direitos conhecem, pela mera inserção do seu titular em regime de segurança, especiais restrições, pelo que, advém da materialidade subjacente à decisão, ser esta passível de afectar direitos, liberdades e garantias do recluso, pois que, através desta decisão se define o lugar e, em grande parte, o modo como será executada a medida restritiva de liberdade.
2.ª A decisão de manutenção em regime de segurança, por ser lesiva para o recluso, principal destinatário da decisão, foi, por aquele, posta em crise junto do Tribunal titular do processo da execução da sua pena, Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, o qual entendeu não se poder pronunciar sobre tal matéria.
3.ª A decisão em causa afecta, directamente, a esfera jurídica (e o já reduzido espaço de liberdade que lhe está subjacente) do recluso, ora recorrente, sendo por um lado, imprescindível a sua fundamentação, e por outro lado, é exigível a possibilidade de o recluso, afectado esta medida, poder impugnar judicialmente o comando material da mesma, pois que, se reitera, através desta decisão, resulta a imposição ao recluso de medidas especialmente restritivas, quer quanto à sua natureza e intensidade, bem como, no que concerne às formalidades/procedimentos a adoptar para o exercício dos seus direitos — logo, materialmente, a modalidade de execução em apreço tem um acréscimo de restrições, e consequentemente, de sanções à vida do recorrente, as quais, necessariamente, se repercutem em afectação à sua dignidade pessoal.
4.ª A execução da pena deve ser pautada pelo respeito da dignidade da pessoa humana, personalidade do recluso, especialização e individualização do tratamento prisional, promovendo o sentido de responsabilidade e estimulando o recluso a participar no planeamento e na execução do seu tratamento prisional, ora, o alcance material destes Princípios apenas será cumprido se o recluso puder participar activamente das decisões que gerem o seu percurso prisional, e discordando o recluso do teor de uma decisão, tal como acontece com a decisão objecto dos presentes autos, terá de lhe ser assegurado o direito de impugnar a decisão que a ele se destina.
5.ª Existem três modalidades possíveis de execução, regime comum, aberto ou de segurança, pelo que, deve o órgão decisor explicar as razões que justifiquem a opção pela modalidade a aplicar, especificamente, no tangente ao regime de segurança, devem ser tidos em conta os requisitos de aplicação plasmados no art.º 15.° do CEPMPL, e do acto decisório deve constar, expressamente, o preenchimento da previsão normativa exigida na referida norma, a fim de consubstanciar uma decisão clara, inequívoca, fundamentada, justa, e ainda, pautada por todos os Princípios jurídicos previstos para a actividade administrativa.
6.ª O cumprimento de pena de prisão efectiva é a sanção máxima prevista no ordenamento jurídico português, a execução desta pena em regime de segurança será, pois, o expoente máximo de restrições legalmente admissíveis à liberdade de uma pessoa, pelo que, sempre terá de ser fundamentada a decisão que a tanto obrigue.
7.ª É ainda legitima e compreensível a pretensão do recluso, em pretender que a sua pena seja cumprida em regime menos austero, pois que, a sua passagem para um regime de execução de pena menos restritivo será o primeiro passo na evolução positiva do seu percurso prisional, rumo à reintegração social, conforme os valores subjacentes aos fins das penas.
8.ª Terá o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa de ser o órgão jurisdicional competente para decidir do mérito da causa de uma questão material controvertida adveniente de discordância entre o órgão da Administração titular de atribuições legais no sistema penitenciário, e de um recluso no Estabelecimento Prisional de Monsanto que se sente prejudicado, nos seus direitos mais básicos — pois que só estes subsistem na sua esfera jurídica — e, consequentemente, afectado na sua dignidade humana (particularmente nos aspectos pessoal, social e civil), acrescendo que, por maioria de razão, o comando material adveniente da referida decisão tem como principal destinatário o recluso, não lhe pode, pois, em consequência de tal facto, ser sonegado o direito de discutir o conteúdo da decisão — sob pena de transformar o recluso em objecto do arbítrio administrativo.
9.º Q Tribunal de Execução de Penas resulta do desdobramento dos tribunais em razão da matéria, previsto na Lei 3/99, bem como, na Lei 52/2008, que lhe atribui competência especializada para decidir do mérito da causa de situações controvertidas relativas à execução de uma pena, sendo este o tribunal, de entre toda a hierarquia de tribunais judiciais, o mais apto a decidir sobre a questão em apreço.
10.º Fazendo uma análise da hermenêutica e sistemática, o art.º 200.° do CEPMPL, prevê a recorribilidade das decisões dos serviços prisionais para o Tribunal de Execução de Penas, nos casos previstos naquele código, ora relativamente ao art.º 114.° do CEPMPL, esta norma é especial, e está inserida no Capitulo III, Procedimento Disciplinar, sendo uma garantia de recorribilidade prevista para uma situação típica e nominada de exercício de poder disciplinar, não podemos, pois, entender que a acção disciplinar é a única situação, que no decurso da execução de uma pena de prisão, susceptível de toldar direitos dos reclusos.
Até porque,
11.º Sob a norma plasmada no art.º 133.°, consagrou o legislador a jurisdicionalização da execução, atribuindo ao Tribunal de Execução de Penas a competência para administrar a justiça penal em matéria de execução de penas, assim consagrando a garantia dos direitos dos reclusos, pronunciando-se sobre a legalidade das decisões dos serviços prisionais, e ainda, ao abrigo do art.º 138.°, n.° 4, al. f) do CEPMPL, compete ao Tribunal de Execução de Penas decidir processos de impugnação de decisões dos serviços prisionais, ora, tal requereu o recluso, ora recorrente, e tal lhe foi negado.
12.ª A lei expressamente prevê o controlo jurisdicional de medida de execução de pena aplicada a cidadãos portadores de deficiência, com o nobre fito de consubstanciar mais um aforamento de protecção legal a cidadãos socialmente fragilizados, ora podendo o juiz do Tribunal de Execução de Penas controlar o mérito desta decisão, poderá também, decidir do mérito da causa idêntica, quando titulada por cidadão não portador de deficiência, de acordo com o argumento “ad maiori ad minus”, pois que, tal previsão expressa do legislador veio consagrar uma discriminação positiva, por expressa, a reclusos especialmente fragilizados, não pretendendo, seguramente, o legislador prejudicar os restantes reclusos, mas tão-só apelar à sensibilidade do intérprete/julgador para situações de maior fragilidade.
13.ª Se o CEPMPL disciplina os termos de execução das penas, e no seu título IV prevê os Regimes de Execução, e, como é regra em todos os diplomas legais o art.º 200.° prevê a regra geral da recorribilidade, remetendo em sede de legislação subsidiária para o Código de Processo Penal (vide art.º 246.° do CEPMPL), o qual, por sua vez, também consagra a regra geral da recorribilidade das decisões no art.º 399.º, não se entende como pode ser negado, ao recluso, o direito de obter uma decisão fundamentada sobre a sua modalidade de execução da pena.
14.ª A execução da pena impende sobre as autoridades competentes o dever de orientar a execução da pena de acordo com o princípio da individualização do tratamento prisional, e ainda, que é a avaliação do recluso que determina a sua afectação ao regime, combinada com os indicadores de perigosidade previstos no art. 15.° do CEPMPL, privilegiando-se a que mais favoreça a reinserção social (vide art.ºs 5.º, n.º 1 e 12.°, n.° 1 CEPMPL).
15.ª O recluso, ora recorrente, não teve acesso, nem lhe foi notificada a verificação da legalidade da decisão por um Procurador da República, sendo que, tal verificação de legalidade terá operado através de comunicação ao Exmo. Senhor Procurador da decisão em causa, a qual como já se referiu era absolutamente omissa nos fundamentos de facto que a justificaram, e terá sido considerada legal.
16.ª Se o juiz do Tribunal de Execução de Penas não for competente para decidir sobre a matéria em causa, estamos perante uma situação em que o recluso, mediante decisão que foi tomada sobre um relevante aspecto da sua vida, se vê obrigado a concordar, tendo como únicas garantias a decisão da entidade administrativa (que tem pleno poder de direcção sobre a sua vida), e a verificação pelo Exmo. Senhor Procurador do Ministério Publico, sendo-lhe vedado indagar de modo directo pela defesa dos seus direitos, e sendo-lhe negado o acesso a decisão judicial pelo juiz titular do processo relativo à sua execução da pena.
17.ª Não se entendendo que a decisão de colocação/manutenção do recluso em regime de segurança é recorrível, ao abrigo do disposto no art.º 200.° do CEPMPL, esta disposição legal está inquinada de inconstitucionalidade por ofensa ao art.º 32.°, n.º 1 da CRP, porquanto, impede o recluso de impugnar uma decisão, que o afecta directamente e lhe restringe direitos, no âmbito da execução de uma pena, sendo que qualquer questão material controvertida adveniente da aplicação desta pena será competência do juiz titular do processo relativo à execução desta pena, no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa.
18.ª A modalidade de execução em regime de segurança não corresponde, a uma sanção cominada por acção disciplinar, mas antes, a um pré-juízo de censurabilidade adveniente do vector perigosidade previsto no art.º 15.°, n.º 1 e n.° 2 do CEPMPL, isto é, para efeitos preventivos e antecipatórios o legislador previu que determinadas execuções sejam cumpridas em regime de segurança, o que determina especiais restrições.
19.ª As referidas restrições limitam direitos fundamentais do recluso, protegidos pelos artigos 2.°, 9.º al. b) e d), 16.°, n.º 1 e n.° 2, 17.°, 18.°, n.º 1, n.º 2 e 20.°, n.º 1 e n.° 5 da CRP, tendo o recorrente direito a defender os seus direitos, liberdades e garantias de modo a obter tutela efectiva contra lesões desses direitos.
20.º Relativamente ao ora recorrente, a privação de liberdade verifica-se ao abrigo do art.º 27.°, n.° 2 da CRP, contudo ao abrigo do n.° 4 do mesmo artigo, deve a pessoa privada de liberdade ser informada de forma compreensível das razões da sua detenção, entendemos também, que no âmbito dos direitos do recluso está o direito de ser informado e esclarecido sobre o modo de execução da sua pena, pois, ao abrigo do disposto no art.º 30.°, n.° 4 e 5 da CRP, nenhuma pena implica a perda de direitos fundamentais, para além do necessário à execução da pena ancorada na sentença condenatória.
21.ª Havendo desacordo entre órgão decisor e destinatário da decisão, decisão essa que concerne à permissão de restrições ou incremento de restrições a direitos de um cidadão — vide art. 2.°, 3.º, n.° 1 e n.° 2 CRP, e também o Princípio da separação de poderes num Estado de Direito Democrático, sempre terá de ser um juiz a decidir das restrições a direitos das pessoas, ou seja, sempre terá de ser o órgão supremo com competência para administrar a justiça, a decidir de Direito — vide art.º 202.° da CRP.
22.ª Não obstante haver lugar a verificação da legalidade pelo Ministério Público, tal verificação não satisfaz o direito de obter uma decisão, especialmente, quando o destinatário da decisão se sente directamente prejudicado pela mesma, sentindo necessidade de a pôr em causa, arrogando-se o direito de a discutir.
23.ª Da interpretação das disposições legais Comunitárias e de Direito Internacional Público resulta que o Estado deve obediência ao Princípio da igualdade ou não discriminação, pelo que, o facto de o ora recorrente se encontrar em cumprimento de pena, não poderá fazer cessar, amputar ou toldar-lhe o direito de obter uma tutela jurisdicional efectiva, na vertente do direito de recorrer de uma decisão que o afectou e afecta, todos os dias, de modo directo e imediato, sendo-lhe garantido, por lei, o direito de aceder a instância judicial para discutir e defender qualquer afectação, concretizada ou potencial, aos seus direitos, sendo que in casu, tal afectação é presente e efectiva.
24.ª O facto de o recorrente se encontrar privado de liberdade não afecta os seus direitos civis, nem pode afectar a sua dignidade humana (pessoal e social), sob pena de censurável discriminação.
25.ª A inadmissibilidade da violação, corporizada no objecto dos autos, decorre de todo o edifício legal plasmado nas normas da legislação interna, bem como, de legislação internacional vigente em Portugal, por via dos art.ºs 8.° n.° 1 e 16.°, n.° 1 da CRP e do 3.º, n.° 1 do CEPMPL, e ainda, do acto de adesão à União Europeia, gozando o Direito Comunitário de efeito directo, aplicabilidade directa ao abrigo do Principio de Primado do Direito Comunitário, expressamente consagrado por via jurisprudencial.
26.ª O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE) tem pugnado pela defesa dos particulares, concretizando através da aplicação dos Princípios jurídicos gerais a defesa dos direitos fundamentais, elevando à categoria de direitos fundamentais, direitos que outrora constituíam verdadeiros privilégios, designadamente, a protecção da personalidade, bem como, uma série de garantias processuais, como o direito de ser ouvido, o “legal privilege”, a proibição de dupla sanção e a necessidade de justificar os actos.
27.ª A jurisprudência comunitária tem-se socorrido do Princípio da Proporcionalidade para dar solução às questões que lhe são submetidas — a título de exemplificativo, Proc. n.° 116/76, caso Granaria, Proc. n.° 8/77, caso Sagulo, Proc. n.° 265/87, caso Schrader, Proc. n.° C-233-94, caso Alemanha/Conselho e Parlamento - tal princípio obriga, como já supra se referiu no tangente às previsões normativas em sede de direito interno, ao exame dos interesses em causa combinados com a adequação, necessidade da medida em causa e proibição de intervenção excessiva, sendo também de incluir nos direitos fundamentais os princípios gerais do direito administrativo e das garantias processuais dos administrados, “due process”, designadamente, o direito de acção judicial, com relevo para a exigência de transparência, que implica que as decisões sejam tomadas de forma tão aberta e próxima do cidadão quanto possível — exemplo prático desta determinação comunitária é o facto de qualquer cidadão europeu poder aceder aos documentos do Conselho da UE e da Comissão Europeia.
28.ª A interpretação das disposições legais aplicáveis impõe que o Estado deve obediência ao Princípio da igualdade ou não discriminação, pelo que, o facto de o ora recorrente se encontrar em cumprimento de pena, não poderá fazer cessar, amputar ou toldar-lhe o direito de obter uma tutela jurisdicional efectiva, na vertente do direito de recorrer de uma decisão que o afectou e afecta, todos os dias, de modo directo e imediato, sendo-lhe garantido, por lei, o direito de aceder a instância judicial para discutir e defender qualquer afectação aos seus direitos.
29.ª Estando o recorrente adstrito ao cumprimento de pena privativa de liberdade, legitimada por sentença condenatória, qualquer determinação que lhe imponha, com carácter de permanência, restrições às suas liberdades, restrições essas que não derivem de modo automático dos efeitos da sentença já transitada em julgado, será um acréscimo a uma restrição aos seus direitos fundamentais, e por conseguinte, passível de suscitar a respectiva tutela judiciária, in casu, requerida para conhecimento da fundamentação subjacente à decisão, exercício do contraditório relativamente às imputações, defesa dos seus direitos e direito a obter uma decisão judicial sobre uma questão material controvertida entre o órgão decisor (o qual, concomitantemente, tem poder de gestão da vida do recorrente) e o destinatário da decisão, ora recorrente.
30.ª A decisão da Administração ora posta em crise, para além de o seu conteúdo decisório cominar/perpetrar a lesão de direitos do recorrente, não vem, sequer, fundamentada, a exigência de fundamentação é um ónus que recai sobre todas as entidades decisórias, sendo especialmente exigível, quando se trate de decisões emitidas por um órgão da Administração directa do Estado, e cujo conteúdo material se reconduz, na prática, a decidir como alguém vai viver o seu dia-a-dia.
31.ª Será, pois, imprescindível conferir ao ora recorrente o garante de acesso à via jurisdicional para decidir do mérito da causa a fim de garantir que as restrições que impendem sobre os seus direitos passam pelo douto crivo judiciário, e após lhe ter sido assegurado o direito de conhecer e se pronunciar sobre os factos que determinam a sua execução de pena.
32.ª Negada que foi a tutela jurisdicional, e, caso se entenda, que o CEPMPL não permite que o recorrente recorra da decisão de que foi alvo para o Tribunal de Execução de Penas, através da interpretação do art.º 200.° do CEPMPL a contrario, terá esta disposição legal de ser declarada inconstitucional, ao abrigo do art.º 32.°, n.º 1, cuja interpretação terá de ser coadunada com o art. 20.°, ambos da CRP — pois só assim, se alcançará a tutela jurisdicional efectiva e direito de recurso de decisões que se repercutam sobre direitos dos cidadãos, como ocorre no caso em apreço.
33.ª O direito de pleitear pela defesa dos direitos fundamentais e da dignidade humana é um valor definidor da filosofia do Direito dos nossos dias, sendo tal direito consagrado e protegido pelo Direito Constitucional, Direito Comunitário, bem como, Direito Internacional Público.
34.ª O ora recorrente tem o direito de obter uma decisão judicial sobre um aspecto de sobeja importância para si quando se ache afectado no seu núcleo duro de direitos fundamentais (especialmente, quando tal afectação a direitos opere mediante o advento de uma decisão não fundamentada, com a qual o recorrente não pode concordar), terá o recorrente o direito de se achar protegido e defendido no Estado Português, pois só assim se alcançará a almejada justiça, valor supremo e fim último de qualquer sociedade que se ache digna de ser chamada Estado de Direito.»
4. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional contra-alegou, concluindo o seguinte:
«a) no presente recurso está em causa, não a aplicação de uma medida disciplinar ao recluso, ora recorrente, mas a decisão de manutenção da execução da pena privativa de liberdade em regime de segurança;
b) a execução da pena em regime de segurança é uma das modalidades de execução da pena de prisão;
c) com efeito, as penas e medidas privativas da liberdade são executadas em regime comum, aberto ou de segurança, privilegiando-se o que mais favoreça a reinserção social, salvaguardados os riscos para o recluso e para a comunidade e as necessidades de ordem e segurança (cfr. art. 12º, nº 1 do CEPMPL);
d) por outro lado, a execução das penas e medidas privativas da liberdade, em regime de segurança, decorre em estabelecimento ou unidade prisional de segurança especial e limita a vida em comum e os contactos com o exterior, admitindo a realização de actividades compatíveis com as particulares necessidades de manutenção da ordem e da segurança de bens jurídicos pessoais e patrimoniais (cfr. art. 12º, nº 4 do CEPMPL);
e) a execução da pena privativa de liberdade em regime de segurança depende, naturalmente, da história criminal do próprio recluso, sendo o recluso colocado em regime de segurança, quando a sua situação jurídico-penal, ou o seu comportamento em meio prisional revelem, fundamentadamente, perigosidade incompatível com afectação a qualquer outro regime de execução (cfr. art. 15º, n1 do CEPMPL);
f) no caso dos presentes autos, foi, também, a história criminal do ora recorrente, que determinou a manutenção do regime de segurança em que se encontrava, até então;
g) as decisões de colocação, manutenção e cessação em regime de segurança são fundamentadas e competem ao director-geral dos Serviços Prisionais (cfr. art. 15º, nº 4 do CEPMPL);
h) tal decisão consubstancia, pois, uma decisão administrativa sobre o modo de execução da prisão, que privilegia a segurança da comunidade prisional e do próprio recluso, em casos em que se manifeste particularmente tal necessidade, não havendo nenhum paralelismo com a aplicação de medida disciplinar de permanência obrigatória no alojamento ou de internamento em cela disciplinar – estas punitivas, ao contrário da primeira;
i) se é compreensível, à luz dos princípios gerais do direito, que medidas punitivas, que limitem a liberdade do recluso em meio prisional, possam ser impugnadas judicialmente, não se compreende que deva também ser impugnada judicialmente a decisão de colocação ou de manutenção do arguido em regime de segurança;
j) as decisões dos serviços prisionais são impugnáveis, perante o tribunal de execução das penas, apenas nos casos expressamente previstos no CEPMPL (cfr. art. 200º deste código), ou seja, nos casos que se encontram previstos no art. 114º, nº 1 do mesmo diploma;
k) trata-se de uma opção legislativa, consciente e desejada pelo legislador, aliás, perfeitamente compreensível, que apenas permite a impugnação judicial daquelas medidas punitivas, que se consideram mais graves;
l) uma tal concepção do legislador não tem, porém, como consequência, como o próprio recorrente admite, um completo alheamento das autoridades judiciárias, quanto à execução da pena privativa de liberdade em regime de segurança;
m) com efeito, nos termos do art. 15º, nº 5 do CEPMPL, “a execução das penas e medidas privativas da liberdade em regime de segurança é obrigatoriamente reavaliada no prazo máximo de seis meses, ou de três meses no caso de recluso com idade até aos 21 anos, podendo sê-lo a todo o tempo se houver alteração de circunstâncias”;
n) e o nº 6 da mesma disposição veio acrescentar, que “as decisões de colocação e manutenção em regime de segurança, bem como as decisões de cessação, são comunicadas ao Ministério Público junto do tribunal de execução das penas para verificação da legalidade”;
o) no caso dos autos, a decisão em questão foi, assim, comunicada ao Ministério Público junto do tribunal de execução das penas, que teve oportunidade de verificar a sua legalidade, tendo concluído pela existência da mesma, nos termos do Processo para Verificação da Legalidade (cfr. fls. 75-80 dos autos);
p) não há, pois, nos presentes autos, nenhuma violação do disposto no art. 32º, nº 1 da Constituição, desde logo por já não nos encontramos na fase do processo criminal, mas na fase de execução de pena privativa de liberdade, em resultado de sentença condenatória;
q) por outro lado, o direito ao recurso não significa que todas as decisões sejam sempre passíveis de recurso, sendo a admissibilidade do recurso condicionada, através de limites objectivos fixados na lei, designadamente da natureza dos interesses envolvidos, da menor relevância das causas ou da repercussão económica para a parte vencida;
r) o que o referido princípio constitucional salvaguarda é, assim, a garantia da existência de um sistema de recursos, que o legislador não pode abolir ou restringir de forma excessiva, de modo a que se possa concluir que em termos de facto, os recursos foram efectivamente suprimidos;
s) mas o mesmo princípio não impede que o legislador possa admitir limites razoáveis à admissibilidade do recurso, dispondo, por isso, o legislador ordinário de ampla liberdade de conformação no estabelecimento dos respectivos requisitos de admissibilidade;
t) em matéria de execução de sanções privativas da liberdade, a Constituição reserva, expressamente, ao juiz, somente o título de execução (ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial condenatória – artigo 27.º, n.ºs 2 da CRP) e a prorrogação das medidas de segurança privativas da liberdade, em caso de perigosidade baseada em grave anomalia psíquica (artigo 30.º, n.º 2 da CRP);
u) quando o Director-Geral dos Serviços Prisionais coloca um recluso em regime de segurança, não há, assim, alteração do conteúdo da sentença condenatória, que continua a ser de privação da liberdade, havendo, tão-só, uma alteração do conteúdo da execução da pena de prisão, político-criminalmente justificada por referência aos princípios jurídico-constitucionais da socialidade e da necessidade da intervenção penal, não extravasando, tal medida, a natureza de medida de flexibilização da execução da pena de prisão;
v) o Director-Geral dos Serviços Prisionais prossegue o interesse público de prevenir a reincidência (artigos 1.º, 2.º, 9.º, alínea d), 30.º, n.º 5, e 266.º da CRP), exercendo a competência, que lhe está atribuída, de garantir a execução da pena de prisão de acordo com as respectivas finalidades;
w) assim, não viola o art. 32º, nº 1 da Constituição, a norma do artigo 200º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas de Liberdade (aprovado pela Lei nº 115/2009), quando interpretada no sentido de não ser impugnável judicialmente a decisão administrativa de colocação ou manutenção do recluso em regime de segurança.»
5. Dos autos emergem os seguintes elementos relevantes para a presente decisão:
? Por despacho do Subdirector-Geral, em substituição do Director-Geral da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, foi decidido manter o recluso A., ora recorrente, no regime de segurança. O despacho foi exarado sobre informação dos serviços e tem o seguinte teor:
«Considerando a gravidade dos factos que determinaram a afectação do recluso ao regime de segurança, e o comportamento deste, entendo não haver alteração comportamental que aconselhe o seu reingresso no regime comum.
Pelo exposto, determino a sua manutenção no regime de segurança (art. 15.º, n.º 4, da Lei 115/09, de 12/10).» (cfr. fls. 9 e 77 e s. dos autos).
? A decisão foi comunicada ao Ministério Público para efeitos de verificação da legalidade, tendo o magistrado respectivo concluído pela verificação dos pressupostos legais que sustentaram a decisão de manutenção do regime de segurança (fls. 76/80 dos autos).
? Notificado desta decisão, o recluso impugnou-a, junto do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, ao abrigo dos artigos 138.º, n.ºs 1 e 4, alínea f) (e não g), como por lapso se refere), e 200.º do CEPMPL (cfr. fls. 5 e s. dos autos).
? O Tribunal de Execução de Penas de Lisboa indeferiu o pedido, por entender que a decisão em causa (manutenção do regime de segurança) «não é directamente impugnável pelo recluso, por não ser um caso legalmente previsto no art. 200.º do CEPMPL “a contrario”» (despacho de fls. 18 dos autos).
? Inconformado, o recluso interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, suscitando, além do mais, a inconstitucionalidade daquela interpretação do artigo 200.º do CEPMPL.
? Por acórdão, ora recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa julgou improcedente o recurso e confirmou o despacho recorrido (fls. 100 e s. dos autos).
Cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
6. A norma do artigo 200.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, que se insere no respectivo Capítulo VIII – Impugnação, Secção I – Princípios gerais e tramitação, reza assim:
«Artigo 200.º
Impugnabilidade
As decisões dos serviços prisionais são impugnáveis, nos casos previstos no presente Código, perante o tribunal de execução das penas.»
Os casos, previstos no Código, de decisões susceptíveis de impugnação vêm referidos no artigo 114.º n.º 1. Dispõe este preceito:
«O recluso pode impugnar, perante o tribunal de execução de penas, as decisões de aplicação das medidas disciplinares de permanência obrigatória no alojamento e de internamento em cela disciplinar.»
O tribunal recorrido efectuou uma interpretação da norma do artigo 200.º no sentido de ela prever que as decisões dos serviços prisionais que podem ser objecto de impugnação junto do tribunal de execução de penas são, apenas, as expressamente mencionadas no Código, ou seja, as decisões que aplicam aos reclusos as medidas disciplinares mais graves, identificadas no citado artigo 114.º, n.º 1, do Código.
Mais refere o acórdão recorrido que a alínea f) (e não alínea g) como, por lapso, nele se escreveu) do n.º 4 do artigo 138.º do CEPMPL, quando prevê que compete aos tribunais de execução de penas decidir «processos de impugnação de decisões dos serviços prisionais», mais não está do que a reiterar o disposto nos citados artigos 114.º, n.º 1, e 200.º
Em suma, o tribunal recorrido afasta a impugnabilidade da decisão dos serviços prisionais de manutenção da execução da pena em regime de segurança por entender que não se trata de decisão em matéria disciplinar e por considerar que o CEPMPL apenas permite a impugnação judicial, junto do tribunal de execução de penas, de decisões dos serviços prisionais em matéria disciplinar.
Ao Tribunal Constitucional não cabe decidir se a interpretação do artigo 200.º do CEPMPL, aqui questionada, é a mais correcta no plano infraconstitucional. Apenas lhe cabe decidir se a interpretação adoptada – que para este Tribunal é um dado adquirido – é compatível com a Constituição.
7. O recorrente sustenta que a interpretação normativa questionada viola o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, em síntese, porque «impede o recluso de impugnar uma decisão que o afecta directamente e lhe restringe direitos, no âmbito da execução de uma pena, sendo que qualquer questão material controvertida adveniente da aplicação desta pena será competência do juiz titular do processo relativo à execução desta pena, no Tribunal de Execução de Penas de Lisboa» (conclusão 17.ª das alegações apresentadas no presente recurso).
Mais alega que o legislador consagrou a jurisdicionalização da execução, atribuindo ao tribunal de execução das penas a competência para administrar a justiça penal em matéria de execução de penas (conclusão 11.ª das alegações); e que a interpretação em causa infringe o princípio da igualdade ou não discriminação (artigo 13.º da CRP), na medida em que amputa ao recorrente o direito a uma tutela jurisdicional efectiva (na vertente do direito a recorrer judicialmente de uma decisão que o afecta), pelo simples facto de o mesmo se encontrar em cumprimento de pena (conclusão 23.ª).
Invoca, também, como parâmetro constitucional, o disposto no artigo 27.º, n.º 4, da CRP. Contudo, é manifesto que esta norma constitucional não é pertinente para o caso, pois consagra um dever de informação que funciona como garantia contra as «medidas públicas ofensivas da liberdade», designadamente, prisões ou detenções arbitrárias (a que se referem os n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo 27.º) e como garantia dos direitos de defesa ou de resistência perante aquelas (cfr. neste sentido, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 484). Essa garantia é insusceptível de ser invocada no caso em apreço, em que está em causa o modo de cumprimento de uma pena de prisão efectiva imposta por sentença judicial transitada em julgado.
O recorrente invoca, ainda, um conjunto de razões de direito infraconstitucional que não podem ser apreciadas por este Tribunal, atenta a natureza e o objecto do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade. É o que acontece, designadamente, com a invocação da falta de fundamentação do acto pretendido impugnar (cfr. conclusão 30.ª das alegações de recurso). É, ainda, descabida a invocação de um conjunto de decisões do Tribunal de Justiça (cfr. conclusão 27.ª), as quais, mesmo quando se referem ao princípio da proporcionalidade, tratam questões totalmente distintas, inseridas em áreas do direito e em quadros normativos inaproveitáveis para o caso em apreço.
Lembre-se, contudo, que o Tribunal Constitucional não está vinculado aos fundamentos alegados pelo recorrente, podendo decidir com base na violação de normas ou princípios constitucionais diversos dos que foram invocados (artigo 79.º-C da LTC).
8. Considerando as citações de acórdãos do Tribunal Constitucional efectuadas, quer na decisão recorrida, quer nas alegações das partes, importa salientar a novidade da questão que é objecto deste recurso, em que está em causa a impugnabilidade judicial, junto do tribunal de execução de penas, de uma decisão dos serviços prisionais.
Embora o Tribunal Constitucional já tenha apreciado questões com pontos de contacto com a que é objecto do presente recurso, fê-lo em casos que suscitaram problemas e convocaram parâmetros constitucionais distintos, não sendo por isso pertinente a invocação dessa jurisprudência.
Assim, no Acórdão n.º 496/1996, citado na decisão aqui recorrida (que não julgou inconstitucional a norma do artigo 678.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, enquanto aplicável à condenação em multas processuais de montante inferior a metade da alçada do tribunal recorrido), estava em causa o direito ao recurso no âmbito de um processo judicial. E no Acórdão n.º 638/2006 (que julgou inconstitucional a norma do artigo 127.º do Decreto-Lei n.º 783/76, de 29 de Outubro, na parte em que não admite o recurso das decisões que neguem a liberdade condicional) estava em causa o direito ao recurso jurisdicional de uma decisão judicial (a decisão judicial que nega a liberdade condicional), ou seja, as garantias de defesa no processo criminal, incluindo o direito ao recurso, consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Diversamente, no caso em apreço está em causa o direito de aceder (pela primeira vez) aos tribunais para impugnar um acto da administração penitenciária.
Resta dizer que o Acórdão n.º 427/2009, incidente, em fiscalização preventiva da constitucionalidade, sobre normas do Decreto n.º 366/X, da Assembleia da República, que aprovava o novo Código da Execução das Penas, não se debruçou sobre questão similar à que aqui nos ocupa.
9. A questão de constitucionalidade aqui colocada suscita problemas relativos ao modo de execução da pena privativa da liberdade, ou seja, em termos mais gerais, à denominada “posição jurídica do recluso”.
É, assim, directamente convocável o disposto no n.º 5 do artigo 30.º da Constituição, segundo o qual «[O]s condenados a quem sejam aplicadas pena ou medida de segurança privativas da liberdade mantêm a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução».
Desta norma constitucional extraem-se três consequências: i) o recluso permanece titular de todos os seus direitos fundamentais; ii) a restrição destes direitos fundamentais pressupõe sempre uma lei, que obedecerá aos princípios estabelecidos no artigo 18.º da Constituição: e iii) a restrição tem que ter por fundamento o sentido da condenação e as exigências próprias da execução (assim, Damião da Cunha in Jorge Miranda/ Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, 690).
Ou seja, o princípio geral é o de que o preso mantém todos os direitos e com um âmbito normativo de protecção idêntico ao dos outros cidadãos, salvo, evidentemente, as limitações inerentes à própria pena de prisão (v. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 505).
Mas às limitações inerentes à privação da liberdade (maxime a impossibilidade de deslocação) podem acrescer outras limitações, desde que justificadas pela própria execução da pena (v.g., limites à liberdade de correspondência ou de reunião).
Estas imposições ou restrições têm que estar justificadas em função do “sentido da condenação” e das “exigências próprias da respectiva execução” (n.º 5 do artigo 30.º). Ou seja, estão subordinadas a um princípio de legalidade (exigem previsão legal) e de proporcionalidade (adequação e necessidade).
É unânime o entendimento de que está constitucionalmente negado conceber a relação presidiária (e a posição jurídica do recluso nessa relação) como uma “relação especial de poder” (cfr. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 505; e Damião da Cunha, ob. cit., 690). Essa “relação de poder” foi substituída por «relações jurídicas com recíprocos direitos e deveres», em que o recluso não é mais “objecto” mas passou a ser «sujeito da execução» (Anabela Rodrigues, Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária, 2.ª ed., Coimbra, 2002, 69).
Sobre o estatuto jurídico do recluso estabelece o artigo 6.º do CEPMPL que o recluso «mantém a titularidade dos direitos fundamentais, salvas as limitações inerentes ao sentido da sentença condenatória ou da decisão de aplicação de medida privativa da liberdade e as impostas, nos termos e limites do presente Código, por razões de ordem e de segurança do estabelecimento prisional». Mantém-se, assim, actual, a afirmação de Figueiredo Dias (Direito Penal Português, Parte Geral - II, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, 111-112) – emitida a propósito do correspondente artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 265/79 – segundo a qual a visão do recluso «é agora a de uma pessoa sujeita a um mero “estatuto especial”, jurídico-constitucionalmente credenciado (CRP, art. 27.º-2) e que deixa permanecer naquela a titularidade de todos os direitos fundamentais, à excepção daqueles que seja indispensável sacrificar ou limitar (e só na medida em que o seja) para realização das finalidades em nome das quais a ordem jurídico-constitucional credenciou o estatuto especial respectivo».
No caso vertente, estamos perante uma dessas restrições aos direitos do preso, legalmente previstas e justificadas pelas exigências próprias da execução da pena. Trata-se do regime de segurança, previsto no n.º 1 do artigo 15.º do CEPMPL, que estabelece que o «recluso é colocado em regime de segurança quando a sua situação jurídico-penal ou o seu comportamento em meio prisional revelem, fundamentadamente, perigosidade incompatível com afectação a qualquer outro regime de execução».
A aplicação a um recluso do regime de segurança não constitui, obviamente, uma modificação da pena em que aquele foi condenado por sentença judicial (a pena em causa continua a ser a pena de prisão). Antes traduz uma das três modalidades de execução dessa pena de prisão (cfr. o artigo 12.º, n.º 1, do CEPMPL), que implica maiores restrições na esfera jurídica do recluso, uma vez que a execução da pena privativa da liberdade em regime de segurança «decorre em estabelecimento ou unidade prisional de segurança especial e limita a vida em comum e os contactos com o exterior, admitindo a realização de actividades compatíveis com as particulares necessidades de manutenção da ordem e da segurança de bens jurídicos pessoais e patrimoniais» (n.º 4 do artigo 12.º).
No presente recurso, não está em causa a legalidade desta medida nem a proporcionalidade da sua aplicação ao recluso, aqui recorrente. O que se questiona é a necessidade de tutela judicial do recluso, isto é, a possibilidade, negada pelo acórdão recorrido, de este impugnar judicialmente a decisão de aplicação (no caso, de manutenção) do regime de segurança.
10. É sabido que a decisão em causa é da competência do director-geral dos Serviços Prisionais e que tem que ser fundamentada (n.º 4 do artigo 15.º do CEPMPL). Esta decisão é depois comunicada ao Ministério Público junto do tribunal de execução de penas para “verificação da legalidade” (n.º 6 do artigo 15.º). O processo de verificação da legalidade encontra-se regulado nos artigos 197.º a 199.º do CEPMPL e prevê, além do mais, que o Ministério Público possa impugnar a decisão que lhe foi comunicada, requerendo a sua anulação (artigo 199.º, alínea b)).
Mas nem o dever de fundamentação (que, aliás, sempre decorreria do dever geral de fundamentação dos actos administrativos e que aqui assume forma agravada, por se tratar de um acto restritivo de “liberdades”), nem a “verificação da legalidade” da decisão a cargo do Ministério Público, com a inerente possibilidade de, por iniciativa exclusiva deste, o acto ser sindicado pelo tribunal, podem funcionar como garantias substitutivas do direito à tutela judicial que assiste ao próprio recluso, em cuja esfera jurídica se vão produzir os efeitos potencialmente lesivos do acto.
Pode dizer-se que o direito do recluso à tutela judicial – na vertente de garantia de impugnação judicial de quaisquer actos administrativos que o lesem – decorre do artigo 268.º, n.º 4, da Constituição, na medida em que o recluso, pelo simples facto de o ser, não perde a sua posição de administrado, mantendo-a, em princípio, com um “âmbito normativo idêntico ao dos outros cidadãos” (cfr. ponto 10. supra).
Pode também perspectivar-se a intervenção do poder jurisdicional na execução como decorrência da garantia constitucional do direito de acesso ao direito e aos tribunais, estabelecido no artigo 20.º da Constituição (em defesa do reforço daquela intervenção, com fundamento nesta garantia constitucional, v. Anabela Rodrigues, “Da afirmação de direito à protecção de direitos dos reclusos: a jurisdicionalização da execução da pena de prisão”, Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, FDUCP, 183-195, 195).
Mas a razão decisiva para o problema em apreciação decorre do próprio estatuto constitucional do recluso.
Embora o citado n.º 5 do artigo 30.º da Constituição não se refira expressamente à tutela judicial, pode dizer-se que «tal tutela estará sempre pressuposta em todo o seu conteúdo» (assim Damião da Cunha, ob. cit., 691). Na verdade, o direito de acesso ao tribunal não é mais do que a garantia adjectiva necessária à efectivação dos direitos fundamentais do recluso e, por isso, é necessariamente um dos direitos cuja titularidade o recluso mantém.
No mesmo sentido se pronunciou o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), no caso Stegarescu e Bahrin c. Portugal (Acórdão de 06.04.2010, Recurso n.º 46194/06), em que os requerentes invocavam, além do mais, não ter tido possibilidade de impugnar contenciosamente as decisões dos serviços prisionais que determinaram a sua transferência para unidades prisionais diferentes daquela a que estavam inicialmente afectos e a sua colocação em quartos de segurança (à data deste Acórdão ainda estava em vigor o Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, que antecedeu o actual CEPMPL).
O TEDH decidiu ter ocorrido violação do artigo 6 § 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ainda que salientando que o “direito a um tribunal” não é um direito absoluto e que os Estados gozam de uma certa margem de apreciação no estabelecimento de limitações no acesso aos tribunais, desde que essas restrições sejam justificadas e proporcionais e não limitem de tal forma o acesso a ponto de porem em causa a substância do próprio direito. Em aplicação desse critério, e apoiando-se em jurisprudência anterior, concluiu o Tribunal que a existência de um processo judicial que permita ao recluso impugnar os actos com repercussões importantes sobre os seus direitos civis é uma exigência do justo equilíbrio entre, por um lado, as restrições necessárias à administração do meio penitenciário e, por outro, os direitos do recluso.
Também o ponto 70.3. da“Recomendação REC(2006)2 do Comité de Ministros aos Estados Membros sobre as Regras Penitenciárias Europeias” (adoptada na 952.ª reunião de Delegados dos Ministros, de 11 de Janeiro de 2006) prevê que o recluso tenha o “direito de recorrer” das decisões que o afectem para uma “entidade independente”.
Conclui-se, assim pela desconformidade constitucional de uma interpretação normativa do artigo 200.º do CEPMPL no sentido de a decisão de manutenção do regime de segurança não ser impugnável.
III ? Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
Julgar inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, e 30.º, n.º 5, da Constituição, a norma do artigo 200.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro), quando interpretada no sentido não ser impugnável a decisão administrativa de manutenção do recluso em regime de segurança;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de janeiro de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.