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Processo n.º 184/11
1ª Secção
Relator: Conselheiro Maria João Antunes
Acordam na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 19 de janeiro de 2011.
2. O recorrente foi condenado, em primeira instância, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível nos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (CP) e 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada (CE).
Desta sentença foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo sido negado provimento ao mesmo. Para o que agora releva é a seguinte a fundamentação do acórdão agora recorrido:
«Como se viu o recorrente sustenta a inconstitucionalidade material, do crime de desobediência por violação o seu direito de recusa de quaisquer exame de qualquer exame, violando assim o disposto nos artigos 20º e 21º da C.R.P..
A motivação do recurso parece supor que o recorrente foi “obrigado” a realizar o teste para pesquisa de álcool no sangue. O que não acontece, no caso dos autos.
Pelo contrário, tendo-se o recorrente recusado a efetuar o exame, a sua vontade foi respeitada. O teste nunca foi realizado, precisamente em respeito à sua recusa!
No que toca ao sancionamento da recusa, cumpre salientar que o procedimento para a fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas está actualmente regulado, após uma complexa evolução do quadro legislativo, no Código da Estrada aprovado pelo Decreto Lei nº 44/2005 de 23 de Fevereiro e ainda pelo Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, estabelecido na Lei nº 18/2007 de 17 de Maio.
Daqueles diplomas decorre que a fiscalização é obrigatório para: os condutores; os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; as pessoas que se propuserem iniciar a condução.
O regime geral da fiscalização assenta na obrigatoriedade do sujeito passivo se sujeitar, por regra, a um exame de pesquisa de álcool no ar expirado, realizado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de aparelho aprovado para o efeito, a que pode seguir-se um procedimento diferenciado relativo à contraprova.
A regra para a determinação quantitativa da taxa de álcool é o teste no ar expirado. A análise de sangue só é efectuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
A obrigatoriedade geral pressupõe, assim, diferenciações de procedimento da colheita de sangue, consoante as circunstâncias concretas em que o obrigado se encontra. Nomeadamente em função das condições de saúde, clinicamente demonstradas, em que o exame não possa ser realizado ou quando após três tentativas sucessivas, o examinado não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo – cfr. artigos 153º nº 8 do CE e 4º da Lei n.º 18/2007.
Daí que a lei estabeleça que «se não for possível a realização de prova de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou se esta não for possível por razões médicas, em estabelecimento oficial de saúde» – cfr. artigos 153º nº 8 do CE.
Insere-se neste quadro o caso especifico dos exames efectuados a condutores ou peões que intervenham em acidentes de viação cujo estado de saúde não permita que sejam submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado – cfr. art. 156º n.º 2 do CE.
Nestas situações, ou seja quando não for possível a realização de exame por ar expirado, através de um procedimento próprio, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool» – cfr. 156º nº 2 do CE e 4º e 5º da Lei nº 18/2007.
As necessidades de prevenção decorrentes do interesse público em que a condução rodoviária, fazendo-se com respeito dos direitos individuais, se processe em condições mínimas de segurança para toda a comunidade, são tão elevadas que impõem uma cominação criminal ao médico ou paramédico que, sem justa causa, se recusar a proceder ás diligências previstas na lei para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool, ou de substâncias psicotrópicas – punição por crime de desobediência - cfr. artigo 152º n.º 5 do CE.
O direito de o arguido, no exercício da actividade, criadora de perigo, da condução de veículos na via pública sem ser incomodado com a realização de um simples teste ao ar expirado, para a detecção de álcool no sangue, tem como contrapartida a submissão de todos os outros utentes da via a respeitar esse seu conceito de liberdade. Sendo incontornável que, em qualquer sociedade, a liberdade de cada um dos seus membros acaba onde começa a de outro. Tendo todos que se sujeitar às limitações inerentes à necessidade de partilha de espaços comuns bem como à limitação necessária, proporcional e adequada dos seus direitos que contendam com o exercício da condução.
O direito de alguém implica sempre uma obrigação para outrem, designadamente para os restantes membros da sociedade, sujeitos passivos universais que têm respeitar e assumir as consequências dos direitos reconhecidos a cada um dos seus elementos.
Somente na ilha de Robinson Crosue, antes da chegada de Sexta-feira, podiam os direitos daquele ser exercidos sem limitações dos direitos de outrem.
O reconhecimento de direitos, na multiplicidade infinita de conflitos de interesses inerentes ao convívio em sociedade, sobretudo nas sociedades modernas, complexas, expostas a uma vasta área de actividades cujo exercício implica assunção de riscos permitidos, tarefa do legislador, num aturada ponderação e hierarquização daqueles interesse que, em cada situação concreta, abstractamente representada, deve prevalecer.
E o regime legal em vigor procede a uma criteriosa ponderação de interesses.
Com efeito, como se viu, o regime legal vigente confere ao cidadão a liberdade de não se submeter ao exame de pesquisa de álcool – tal como sucedeu no caso dos autos. No entanto – como tudo na vida – essa liberdade individual tem o seu custo. Implicando, a recusa a submeter-se a exame, a punição por crime de desobediência, nos termos do artigo 152º nº 3 do C.E.
Tal resulta das evidentes razões de prevenção que estão na origem da fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool, de as estradas servirem toda a comunidade e não este ou aquele individualmente, obrigando a que a actividade da condução no espaço de utilização comunitária, esteja sujeita a regras que permitam a fruição/utilização comunitária, em padrões mínimos de segurança, obrigando aqueles que utilizem a via pública a aceitar, também, as consequências mínima exigíveis ao seu funcionamento, num patamar mínimo de assunção dos riscos razoáveis daí decorrentes.
Resultando o regime legal estabelecido de uma penosa evolução legislativa e aturada ponderação de interesses prevalecentes, subjacente a toda a problemática dos meios de prova susceptíveis de afectar os direitos individuais.
Com efeito já o DL 124/90, de 14.04, precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei 31/89, de 23.08, previa o sancionamento da recusa da submissão aos testes legais para detecção de alcoolemia no exercício da condução rodoviária com o crime de desobediência.
Tal como demonstrou, de forma incontornável, o recente Acórdão do TC n.º 479/2010, de 09.12, acessível nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, em htt://www.dgsi.pt.
Por tal fundamento (natureza não inovatória do regime agora em vigor) o TC, no mencionado aresto, pronunciando-se sobre a constitucionalidade formal (orgânica) do regime actual, decidiu: “Não julgar organicamente inconstitucionais, os artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º, 2 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade da pessoa interveniente em acidente recusar-se a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como um crime de desobediência».
E desde o citado DL 124/90 o crime de desobediência tem-se mantido no ordenamento jurídico.
Por necessário ao equilíbrio da tutela dos valores e bens jurídicos conflituantes. Como tributo e contrapartida indispensável do exercício do direito à liberdade (por parte de quem, no exercício da condução automóvel, não quer submeter-se à maçada do exame), tributo, dizíamos, aos superiores interesses do exercício da actividade da condução em patamares mínimos de segurança.
Também no que toca à constitucionalidade material – fundamento do presente recurso – do crime de desobediência cominado, já o Tribunal Constitucional se pronunciou, no sentido de que «o exame para pesquisa de álcool (...), destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob influência de álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as de outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal» – cfr. Ac. nº 319/95.
Assim, dentro de tal entendimento, que se sufraga na decorrência dos fundamentos alinhados, impõe-se a improcedência do recurso.»
3. Deste acórdão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade, para apreciação:
«dos artsº 152º n.º 3, do Código da Estrada e 348º do Código Penal, na medida em que impõem, sob pena de aplicação de uma pena de prisão, a submissão a uma prova de detecção de álcool quando o seu destinatário não quer a ela submeter-se» por violação dos artigos 20.º e 21.º da Constituição da República.
4. Notificado para o efeito, o recorrente alegou o seguinte:
«(…)
A Constituição da República estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas,-. artº 18º nº1 da C.R.P.
De acordo com o disposto no artigo 277º nº 1 da CR são inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Nos seus artºs. 20º e 21º a CR estabelece que todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias valendo o direito de resistência perante os poderes públicos e nas relações particulares.
O recorrente não pode, pois, ser coagido a adoptar uma determinada atitude ou comportamento processual, a comportar-se de uma determinada forma, a agir de uma determinada maneira, que possa resultar em seu prejuízo, salvo quando provier de um comportamento livre, espontâneo, consciente e informado do arguido.
O teste de pesquisa de álcool no sangue é uma das muitas formas de conseguir uma confissão e uma condenação precoce e em tudo contrário a todos os princípios que norteiam a nossa ordem jurídica assistindo ao arguido o direito de resistir passivamente a uma ordem que fere os seus direitos, liberdades e garantias que é um direito constitucional tributo do Estado de Direito e nessa conformidade a situação inversa está ferida de inconstitucionalidade
Não pode o arguido ser de alguma forma, ainda que encapuzada, coagido a, ou impelido a, adoptar uma determinada postura ou comportamento que é violador do direitos constitucionalmente protegidos e elencados, como o direito à liberdade e privacidade
O arguido, ao recusar submeter-se ao teste aludido nos autos, agiu ao abrigo do direito de resistência constitucionalmente consagrado
A nossa lei penal adjectiva, prescreve que os cidadãos com o estatuto de arguidos terão de se sujeitar a determinados deveres mas é certo que o arguido tem o direito de se recusar a fazer quaisquer exames sem que isso implique para si o cometimento de qualquer crime e a nossa lei penal substantiva e adjectiva não comina com qualquer tipo de sanção a recusa por arguido de sujeição a exames, sejam eles quais forem e tenham eles a natureza que tiverem
Devem, assim, ter-se por materialmente inconstitucionais os artºs 152º nº 3 do Código da Estrada e 348º do Código Penal, na medida a que impõem, sob pena da aplicação de uma pena de prisão, a submissão a uma prova de detecção de álcool quando o seu destinatário não quer a ela submeter-se, nomeadamente por violação dos artigos 20º e 21º da C.R.P
Sendo as mesmas inconstitucionais, nos termos ora sustentados, não podia o arguido ser condenado pelo imputado crime de desobediência.
(…)
CONCLUSÕES:
a) A Constituição da República estabelece que os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas,-. artº 18º nº 1 da C.R.P sendo, de acordo com o disposto no artigo 277º nº 1 da CR, inconstitucionais as normas que infrinjam o que nela se dispõe ou os princípios nela consignados.
b) Estabelecendo a CR, nos seus artºs. 20º e 21º que todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias valendo o direito de resistência perante os poderes públicos e nas relações particulares, não podia o recorrente ser coagido a adoptar uma determinada atitude ou comportamento processual, a comportar-se de uma determinada forma, a agir de uma determinada maneira, que pudesse resultar em seu prejuízo, salvo provindo de um comportamento livre, espontâneo, consciente e informado do arguido;
c) O teste de pesquisa de álcool no sangue é uma das muitas formas de conseguir uma confissão e uma condenação precoce e em tudo contrário a todos os princípios que norteiam a nossa ordem jurídica assistindo pelo que assiste ao arguido o direito de lhe resistir passivamente pelo que o ora alegante, ao recusar submeter-se ao teste aludido nos autos, agiu ao abrigo do direito de resistência constitucionalmente consagrado;
d) Do exposto resulta se deve ter como materialmente inconstitucionais os artºs 152º nº 3 do Código da Estrada e 348º do Código Penal, na medida a que impõem, sob pena da aplicação de uma pena de prisão, a submissão a uma prova de detecção de álcool quando o seu destinatário não quer a ela submeter-se, nomeadamente por violação dos artigos 20º e 21º da C.R.P;
e) Espera-se, pois, que em provimento deste recurso se reconheça tal invocado vício de inconstitucionalidade, com as legais consequências.»
5. O Ministério Público contra-alegou, concluindo o seguinte:
«1. Com a realização de testes de alcoolemia está em causa a recolha de um meio de prova altamente perecível no âmbito da prevenção e punição de condutas susceptíveis de pôr em perigo o valor segurança rodoviária, que encerra em si mesmo outros bens jurídicos de elevada relevância e dignidade, como o direito à integridade física, à vida ou à propriedade privada de terceiros.
2. Naturalmente não podendo nem devendo o exame ser realizado contra a vontade do examinado, da ponderação dos direitos individuais causa, com os bens jurídicos anteriormente referidos, resulta que a norma do n.º 3 do artigo 152º do Código da Estrada, enquanto manda punir como crime de desobediência, a recusa, por parte de condutor de veículo, em sujeitar-se ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, para detecção do estado de influenciado pelo álcool, não é inconstitucional.
3. Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que é objeto do presente recurso é a dos artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada (na redação dada pelo Decreto Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro) e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na medida em que impõem, sob pena de aplicação de uma pena de prisão, a submissão a uma prova de deteção de álcool no sangue através de pesquisa no ar expirado, quando o seu destinatário não se quer a ela submeter.
Considerando a matéria de facto dada como provada (cf. ponto 2. do acórdão recorrido, fl. 276, e ponto 1.5. das alegações do Ministério Público, fl. 303 e s.), a prova de deteção de álcool a que o recorrente se recusou submeter foi a de pesquisa no ar expirado, pelo que importa precisar a norma aplicada no sentido apontado.
As disposições legais a que se reporta a norma têm a seguinte redação:
«Artigo 152.º
Princípios gerais
1 – Devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) (…);
c) (…).
2 – (…).
3 – As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.
(…)»;
«Artigo 348.º
Desobediência
1 – Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;
(…)».
2. O recorrente funda a inconstitucionalidade da norma na violação dos artigos 20.º e 21.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Argumenta que aí se consagra o direito de resistência perante os poderes públicos a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, especificando os direitos à liberdade e privacidade.
Com efeito, a CRP consagra, expressamente, o direito de resistência no artigo 21.º, dispondo que:
«Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública».
Não tem, porém, qualquer pertinência a convocação do artigo 20.º da CRP, que dispõe sobre acesso ao direito e aos tribunais e tutela jurisdicional efetiva, não obstante uma e outra norma constitucional terem em comum a defesa dos direitos. Sob a mesma epígrafe (Defesa dos direitos), na redação primitiva e até à Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro, o artigo 20.º da CRP assegurava a todos o acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência económica (n.º 1); estatuindo, ainda, que todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública (n.º 2).
3. A questão que importa apreciar e decidir é a da conformidade constitucional da norma que incrimina o comportamento daquele que desobedece a ordem de autoridade ou de agente de autoridade de submissão a prova de deteção de álcool no sangue através de pesquisa no ar expirado, face ao disposto no artigo 21.º, primeira parte, da CRP.
Diferentemente do alegado pelo recorrente, não foi “coagido a adoptar uma determinada atitude ou comportamento processual, a comportar-se de uma determinada forma, a agir de uma determinada maneira, que pudesse resultar em seu prejuízo”. Pelo contrário, o recorrente teve a liberdade de não se submeter a prova de deteção de álcool no sangue através de pesquisa no ar expirado, desobedecendo à ordem que lhe foi dada.
A norma que é objeto deste recurso insere-se no procedimento para fiscalização da condução sob influência de álcool, previsto, à data da prática dos factos (fl. 276.), nos artigos 152.º a 156.º e 158.º do CE e no Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de outubro, entretanto revogado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio (Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas).
4. Ao atribuir aos particulares o direito de resistência, o artigo 21.º, primeira parte, da CRP concretiza o princípio da aplicabilidade direta dos direitos, liberdades e garantias, reafirmando o seu caráter obrigatório para as entidades públicas (artigo 18.º, n.º 1, da CRP), e justifica a resistência dos cidadãos a ordens destas autoridades (assim, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 19764, Almedina, p. 342 e Assunção Esteves, A Constitucionalização do Direito de Resistência, Lisboa, 1989, p. 219 e 225 e s.).
O preceito constitucional não concede, porém, um poder normal de controlo dos atos das autoridades públicas. Pelo contrário, «o direito de resistência é a ultima ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por actos do poder público» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição7, Almedina, p. 512), sendo-lhe apontada a nota inescapável da subsidiariedade, por referência às normas constitucionais – artigos 20.º, 202.º, n.º 2, e 268.º, n.ºs 4 e 5, e da CRP – que fazem do acesso aos tribunais e à justiça administrativa, de uma forma particular, o meio de defesa por excelência (neste sentido, Jorge Miranda, “O regime dos direitos, liberdades e garantias”, Estudos sobre a Constituição, 3.º volume, Livraria Petrony, 1979, p. 87, Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 342 e 344 e ss., e Maria Margarida Mesquita, “Direito de resistência e ordem jurídica portuguesa”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (160), 1989, p. 32 e ss.). Como se trata de um meio não jurisdicional que só tem sentido como ultima ratio, Vieira de Andrade não deixa de concluir que o direito de resistência só justifica o comportamento de um particular que resista a «actos evidentemente inconstitucionais (nulos) das autoridades», devendo o particular fazer dele «uso prudente, quando esteja convencido, pela gravidade e evidência da ofensa, de que há violação do conteúdo essencial do seu direito fundamental, até porque o risco de erro corre por sua conta» (“A nulidade administrativa, essa desconhecida”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138.º, N.º 3957, p. 346 e ss. e, especificamente, nota 55).
No que se refere, especificamente, à incriminação da desobediência a ordem de autoridade ou agente de autoridade, é irrecusável que o direito de resistência limita o dever de obediência, conformando consequentemente a relevância penal do comportamento do particular (sobre isto, Maria Margarida Mesquita, ob. cit., p. 35 e ss. e Assunção Esteves, ob. cit., p. 217 e ss.). Ponto é que tal ordem seja notória ou manifestamente ilegítima (assim, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, comentário ao artigo 347.º, § 15 e ss. Cf., ainda, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2010, anotação ao artigo 21.º, pontos VII e XI).
5. Em face do já dito, é de concluir que a norma que é objeto do presente recurso, enquanto incrimina o comportamento daquele que desobedece a ordem de autoridade ou de agente de autoridade de submissão a prova de deteção de álcool no sangue através de pesquisa no ar expirado, não viola o artigo 21.º, primeira parte, da CRP.
Estamos perante ordem de autoridade ou agente de autoridade legalmente prevista nos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), e 153.º, n.º 1, do Código da Estrada, cuja conformidade constitucional já foi testada por este Tribunal (Acórdãos n.ºs 319/95, 423/95 e 628/2006, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. Cf., ainda, Relatório português na 8.ª Conferência Trilateral, Itália, Espanha, Portugal, Tutela da vida privada e processo penal. Realidades e perspectivas constitucionais, disponível no mesmo sítio, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, ob. cit., anotação ao artigo 25.º, ponto XIII).
No Acórdão n.º 319/95, onde foi apreciado o artigo 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 124/90, de 14 de abril, nos termos do qual “o exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por agente de autoridade, que, para o efeito, deve dispor de material adequado”, o Tribunal não julgou a norma inconstitucional com a seguinte fundamentação:
«Quanto ao princípio da igualdade, basta recordar que ele não proíbe que a lei estabeleça distinções ou diferenciações de tratamento; recusa apenas o arbítrio (e, assim, as diferenciações de tratamento irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material).
Ora, existe uma sólida razão para que – para além daqueles que hajam contribuído para um acidente de viação – apenas os condutores de veículos automóveis estejam sujeitos a ser submetidos a exame para pesquisa de álcool no sangue, maxime, a exame de pesquisa de álcool no ar expirado. Só estes, com efeito, podem pôr em risco a segurança rodoviária.
Tem, por isso, suficiente fundamento a sua submissão ao teste de deteção de álcool.
O princípio da igualdade não é, assim, afrontado pela norma sub iudicio.
A submissão do condutor ao teste de detecção de álcool (e, assim, a norma do artigo 6º, nº 1, que a permite) também não viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, nem o seu direito ao bom nome e à reputação, nem o direito que ele tem à reserva da intimidade da vida privada.
Desde logo, tais direitos não proíbem a actividade indagatória do Estado, seja ela judicial, seja policial. O que o princípio do Estado de Direito impõe é que o processo (maxime, o processo criminal) se reja 'por regras que, respeitando a pessoa em si mesma (na sua dignidade ontológica), sejam adequadas ao apuramento da verdade' (cf. acórdão nº 128/92, publicado no Diário da República, II série, de 24 de Julho de 1992).
Ora, o exame para pesquisa de álcool, com o recorte que, nos seus traços essenciais, dele se deixou feito, destinando-se, não apenas a recolher uma prova perecível, como também a impedir que um condutor, que está sob a influência do álcool, conduza pondo em perigo, entre outros bens jurídicos, a vida e a integridade física próprias e as dos outros, mostra-se necessário e adequado à salvaguarda destes bens jurídicos e ao fim da descoberta da verdade, visado pelo processo penal. Ao que acresce que o quadro legal que rege a matéria, na parte em que permite que os agentes de autoridade policial submetam, por sua iniciativa, os condutores ao teste de detecção de álcool, é de molde a garantir que a actividade policial, essencialmente preventiva, se desenvolva 'com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos' (cf. artigo 272º da Constituição).
Concretamente no que concerne ao dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor, não é a submissão deste a exame para detecção de álcool que pode violá-lo. O que atentaria contra essa dignidade seria o facto de se sujeitar o condutor a exame de pesquisa de álcool, fazendo-se no local alarde público do resultado, no caso de ele ser positivo.
Relativamente ao direito ao bom nome e à reputação, é quem conduzir sob a influência do álcool, e não a sua submissão ao teste para a pesquisa de álcool, que estará a denegrir o seu bom nome e a abalar a sua boa fama, pois que – como se sublinhou no já citado acórdão nº 128/92 – um tal direito só é violado por actos que se traduzam em imputar falsamente a alguém a prática da ações ilícitas ou ilegais, ou que consistam em tornar públicas desnecessariamente (isto é, sem motivo legítimo) faltas ou defeitos de outrem que, sendo embora verdadeiros, não são publicamente conhecidos.
O direito à reserva da intimidade da vida privada – que é o direito de cada um a ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias; o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular (cf., sobre isto, o citado acórdão nº 128/92) – acaba, naturalmente, por ser atingido pelo exame em causa. No entanto, a norma sub iudicio não viola o artigo 26º, nº 1, da Constituição, que o consagra.
De facto, não se trata, com o teste de pesquisa de álcool, de devassar os hábitos da pessoa do condutor no tocante à ingestão de bebidas alcoólicas, sim e tão-só (recorda-se) de recolher prova perecível e de prevenir a eventual violação de bens jurídicos valiosos (entre outros, a vida e a integridade física), que uma condução sob a influência do álcool pode causar – o que, há de convir-se, tem relevo bastante para justificar, constitucionalmente, esta constrição do direito à intimidade do condutor.
Quanto ao direito à imagem, que, nas conclusões da alegação, o recorrente tem por violado, assinala-se que o seu objecto é o retrato físico da pessoa, em pintura, fotografia, desenho, slide, ou outra qualquer forma de representação gráfica, e não a imagem que os outros fazem de cada um de nós. Ele não consiste, por isso, num direito de cada pessoa a ser representada publicamente de acordo com aquilo que ela realmente é ou pensa ser. Consiste, antes, no direito de cada um a não ser fotografado, nem a ver o seu retrato exposto publicamente, sem o seu consentimento, e no direito, bem assim, a não ser 'apresentado em forma gráfica ou montagem ofensiva e malevolamente distorcida' (cf. J.J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 181. Cf. também o já citado acórdão nº 128/82 e o acórdão nº 6/84, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 2º, páginas 198 e seguintes).
Sendo este o conteúdo do direito à imagem, não pode ele ser violado pela norma aqui em apreciação.»
Posteriormente, no Acórdão n.º 628/2006, onde foi apreciado o então artigo 158.º, n.º 3, do CE (correspondente ao atual artigo 152.º, n.º 3), enquanto punia por desobediência a pessoa que recusasse submeter-se às provas estabelecidas para deteção do estado de influenciado pelo álcool, o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional esta norma. Reiterando jurisprudência anterior, o Tribunal entendeu que:
«o recorrente sustenta a inconstitucionalidade da obrigação de sujeição ao teste de alcoolemia, invocando a violação da integridade física e moral das pessoas, constitucionalmente tutelada pelo nº 1 do artigo 25º da Constituição. Ora, o Tribunal Constitucional, na jurisprudência referida [Acórdãos n.ºs 319/95 e 423/95], demonstra que a obrigatoriedade de realização de testes de alcoolemia não afecta de modo constitucionalmente inadmissível os interesses pessoais do sujeito examinado (entendimento que agora se acolhe).
Na verdade, está em causa a recolha de um meio de prova perecível no âmbito da prevenção e punição de comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes.
Não procede o argumento do recorrente, segundo o qual bastaria
então impedir o condutor de prosseguir com o veículo. Na verdade, tal solução
não satisfaria a eficácia preventiva das medidas de combate à condução sob o
efeito do álcool (para além de pôr em causa os valores inerentes ao dever de
respeito pela autoridade). Os bens que a norma visa proteger assim como a perigosidade das condutas a prevenir justificam e legitimam a medida normativa em questão.
Por outro lado, o prejuízo do ponto de vista pessoal para o sujeito obrigado ao teste de alcoolemia não atinge o núcleo essencial indisponível de direitos fundamentais, não sendo desproporcionada a sua lesão em confronto com os bens que se pretende tutelar. Assim, afigura-se manifestamente despropositado e improcedente invocar, como faz o recorrente, uma “nova forma de tortura”».
7. Considerando o disposto na primeira parte do artigo 21.º da Constituição da República Portuguesa, há que não julgar inconstitucional os artigos 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 3, do Código da Estrada, na redação dada pelo Decreto Lei n.º 44/2005, de 23 de fevereiro, e 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na medida em que impõem, sob pena de aplicação de uma pena de prisão, a submissão a uma prova de deteção de álcool no sangue através de pesquisa no ar expirado, quando o seu destinatário não se quer a ela submeter.
III. Decisão
Em face do exposto, decide negar-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 24 de janeiro de 2012.- Maria João Antunes – Gil Galvão – Carlos Pamplona de Oliveira – Rui Manuel Moura Ramos.