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Processo n.º 292/11
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., SA, e recorrida a Fazenda Pública, foi interposto recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores, adiante designada LTC), nos seguintes termos:
«A., SA, Recorrente nos autos supra referidos, notificado do douto Acórdão de 06.10.2010, complementado com o douto Acórdão de 09.02.2011, que indeferiu a arguição de nulidade e pedido de reforma daquele, deles vem, respeitosamente, interpor RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do artigo 70.º e al. b) do n.º 1 do artigo 72.º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei 28/82, de 15/11, com as alterações legislativas aplicáveis), que deverá ser processado como de apelação, ter efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios autos, visando:
i) A apreciação da inconstitucionalidade orgânica do artigo 42.º n.º 2 e 3, a), b) e c), do CIMI (redação aplicável), por violação do artigo 10.º n.º 11 da respetiva Lei de Autorização Legislativa, n.º 26/2003, de 20/7, questão, esta, de inconstitucionalidade normativa, suscitada em 52. a 56. da p.i. e 25. a 28. das alegações apresentadas em 11.02.2010;
ii) A apreciação da inconstitucionalidade material dos artigos 42.º, 45.º e 62.º do CIMI, quando interpretados no sentido de que, para a respetiva eficácia jurídica “erga omnes”, não é necessário um ato legislativo, publicado em Diário da Republica, que fixe os concretos zonamentos, os concretos coeficientes de localização e as concretas percentagens do valor do terreno de implantação usados nas avaliações, por violação dos artigos 103.º n.º 2, 112.º n.º 1 e n.º 5, 119.º n.º 1 h), 165.º n.º 1 i) e 198.º n.º 1 b) da CRP, questões, estas, de inconstitucionalidade normativa, suscitadas em 55. das contra-alegações de recurso e em xxi. das respetivas conclusões, apresentadas em 31.05.2010.»
2. Por despacho de fls. 394 foram as partes notificadas para alegar com a advertência da possibilidade de não conhecimento do objeto do recurso na parte respeitante à alegação da inconstitucionalidade orgânica do artigo 42.º, n.ºs 2 e 3, alíneas b) e c), do CIMI.
3. A recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«I. Como é Jurisprudência deste Tribunal, nos casos em que a parte, que suscitara antes a questão de constitucionalidade como autora, numa instância, obteve aí ganho de causa, embora por fundamento diverso do da inconstitucionalidade da norma aplicada, e passou a ser recorrida numa instância de recurso, deixando de ter o ónus de alegar e formular conclusões no recurso interposto pelo vencido, não lhe é exigível que tenha de alegar para suscitar de novo a questão de constitucionalidade, a título subsidiário, para a hipótese de o tribunal de recurso vir a revogar a decisão recorrida
II. No caso presente, a Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade no Tribunal de primeira instância, e obteve ganho de causa por fundamento diverso — considerando, aquele Tribunal, que se encontrava prejudicado o conhecimento das demais questões.
III. A Recorrente colocou em causa (i) os concretos “CI” (coeficientes de localização), “zonamentos” ou “percentuais” atribuídos aos lotes de terreno (estes, para efeitos da aferição do “valor da área de implantação”), e (ii) que os critérios de variação do CI, mencionados no n.º 2 do artigo 42.º do CIMI, divergem dos critérios definidos pela Lei n.º 26/2003, de 20/7 (respetiva lei de autorização legislativa), no seu artigo 10.º n.º 11.
IV. O Tribunal de primeira instância não se pronunciou sobre esta segunda questão, porque julgou a Impugnação procedente pela primeira, Tribunal de recurso também não se pronunciou sobre qualquer uma dessas questões, mesmo quando instado a fazê-lo - ou seja, também o Tribunal recorrido entendeu que o objeto do recurso estava balizado pelas alegações recursiva, onde apenas se discutia o fundamento da procedência da impugnação.
V. Tal significa que a ora Recorrente nunca teria obtido essa pronúncia judicial — pelo que o presente recurso tem de incluir, no seu conhecimento, toda a dimensão jurídico- constitucional da questão em causa — claramente omitida pelo Tribunal de recurso, sob pena de a função que é acometida a este Tribunal se ver restringida por argumentos de natureza meramente formal, na medida em que seria exigido à Recorrente que tivesse invocado, nas suas contra-alegações, matéria que não estava no objeto do recurso, e que o Tribunal recorrido nunca iria conhecer — como efetivamente não conheceu e como referiu que não tinha obrigação de conhecer.
VI. Nos termos do disposto no artigo 79º C da Lei do Tribunal Constitucional, este Tribunal não se encontra adstrito ao enquadramento jurídico formulado pela ora Recorrente, podendo proferir um juízo de inconstitucionalidade com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos daqueles cuja violação foi invocada.
VII. A determinação do valor patrimonial tributário é feita de acordo com os chamados “critérios objetivos” previstos no artigo 38.º CIMI, de entre os quais se encontram vários coeficientes - a saber: de afetação, de qualidade e conforto, de vetustez e de localização.
VIII. O Código do IMI, designadamente o n.º 3 do seu art.º 42.º, não faz qualquer referência a “valores correntes de mercado”, mas essa consideração dos valores correntes de mercado é indispensável, pelo facto de ter sido expressamente exigida pela lei de autorização dada ao Governo (Lei n.º 26/2003, de 30 de julho).
IX. A violação dos sobreditos parâmetros, pelo Decreto - Lei autorizado, configura, pois, uma ofensa ao princípio constitucional da repartição de competências, originadora de violação direta da Constituição da República Portuguesa - o que vale por dizer que é organicamente inconstitucional o artigo 42.º n.º 2 e 3 a), b) e c) do CIMI, por violação do artigo 10.º n.º 1 da respetiva Lei de Autorização Legislativa, n.º 26/2003 de 20.07.
X. O art.º 38.º do CIMI estabelece a fórmula de determinação do VPT dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços, em que se inclui um “coeficiente de localização” (CI).
XI. Embora situado dentro dos limites legais, entre 0,4 e 2, definidos no artigo 42.º n.º 1 do CIMI, não foram explicitados pela Administração Fiscal quaisquer critérios, dentro dos elencados nas alíneas a) a d) do n.º 3 do artigo 42.º do CIMI, que terão conduzido à concreta fixação do CI (coeficiente de localização) em 1,60.
XII. Compulsado o Anexo I da Portaria n.º 982/2004, de 04.08, que fixa os coeficientes de localização, mínimos e máximos, o mesmo apenas estabelece, para a circunscrição do Serviço de Finanças de Portimão, os seguintes coeficientes de localização (CI): Habitação: mínimo de 0,6 e máximo de 2,6; Comércio: mínimo de 0,5 e máximo de 3; Serviços: mínimo de 0,5 e máximo de 2,45; Indústria: mínimo de 0,65 e máximo de 1,25.
XIII. Assim, constata-se que, naquela Portaria não se estabelece o concreto coeficiente de localização, de 1,6, aplicado para a determinação do VPT em causa, nem são minimamente descortináveis as razões técnico-jurídicas que conduziram à sua fixação.
XIV. Nos termos do artigo 42.º n.º 3 a) a d) do CIMI, a determinação do CI deve atender às acessibilidades, às proximidades de equipamentos sociais, à existência de serviços de transportes públicos e à eventual localização em zonas de “elevado valor de mercado imobiliário”.
XV. No caso em apreço, a fixação do CI de 1,60 é perfeitamente insindicável, já que não são minimamente descortináveis os motivos pelos quais foi fixado esse concreto coeficiente e não um qualquer outro — superior ou inferior.
XVI. Nos termos da lei, compete à CNAPU propor trienalmente os “zonamentos” e respetivos “coeficientes de localização”, e nos termos da lei, tal “proposta” deve ser aprovada por Portaria do Ministro das Finanças.
XVII. Analisada a Portaria n.º 982/2004 constata-se que esta não especifica os “zonamentos e respetivos coeficientes de localização”, referindo apenas, no seu n.º 7.º, que “O zonamento, os coeficientes de localização, as percentagens e os coeficientes majorativos referidos, respetivamente, nos n.º 2., 3.º e 4.º da presente portaria são publicados no sítio www.e-financas.gov.pt, podendo ser consultados por qualquer interessado, e estão ainda disponíveis em qualquer serviço de finanças.».
XVIII. Consultado o site indicado no n.º 7 da 982/2004 constata-se que no mesmo não está disponível o zonamento aprovado pela CNAPU e respetiva fundamentação, mas unicamente um simulador informático — denominado Sistema de Informação Geográfica do Imposto Municipal sobre Imóveis (SIGIMI) — onde apenas constam, como dado adquirido, os concretos coeficientes aplicados.
XIX. Embora despiciendo para ultrapassar a falta de definição através de instrumento legal, não constam, daquele endereço eletrónico, quaisquer atas. informações, despachos ou quaisquer outros instrumento ou decisões da CNAPU de onde seja possível descortinar a forma de determinação dos zonamentos e coeficientes a que se refere o artigo 62.º n.º 1 b) do CIMI, e respetiva fundamentação.
XX. Em lugar algum do referido site constam as “características” que terão fundamentado a fixação do concreto CI atribuído a cada um dos “zonamentos” dentro dos diferentes municípios, atenta a diferente destinação das edificações — nos termos do disposto no artigo 4.º n.º 2 e 3 do CIMI.
XXI. Não está explicitado, em diploma com forca de lei, se foram, e em que medida foram, atendidas as ditas características elencadas em a), b), c) e d) do n.º 3 do artigo 42.º do CIMI - como as acessibilidades, a proximidade de equipamentos sociais, os serviços de transportes públicos ou a localização em zonas de “elevado valor de mercado imobiliário”.
XXII. A ser assim, tal significa, simultaneamente, que os concretos coeficientes não estão publicados em Diário da República que os concretos coeficientes não são fixados em diploma com força de lei, e; que a forma de determinação dos concretos coeficientes é obscura e insindicável.
XXIII. Em matéria de incidência tributária, como é o caso (determinação do valor objeto de tributação, em sede de IMI), vigora o princípio constitucional da legalidade e tipicidade, e da reserva de lei formal.
XXIV. Por conseguinte, a definição do VPT mediante parâmetros e coeficientes determinados e publicados de outra forma que não a legalmente prevista - em Diário da República e sob a forma de Lei em sentido formal e material - viola o disposto nos artigos 103.º n.º 1 e 2, 165.º n.º 1 i) e 198. n.º 1 b) da Constituição.
XXV. À PUBLICAÇÃO DOS PARÂMETROS AVALIATIVOS, NO SITE DAS FINANÇAS, NÃO ANTECEDE QUALQUER ATO LEGISLATIVO, EM SENTIDO FORMAL OU MATERIAL, A DEFINIR, EM CONCRETO. OS COEFICIENTES A SER “PUBLICADOS”.
XXVI. Nos termos do artigo 112.º n.º 1 da Constituição, apenas «São atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais», sendo que, de acordo com o n.º 5 do mesmo comando constitucional «Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, o poder de interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer um dos seus preceitos.».
XXVII. Ora, não existe qualquer norma legal que permita afastar a obrigatoriedade de publicação no Diário da República dos coeficientes em causa, sendo que o D.L. 287/2003 de 12.11, que aprovou o Código do IMI, não estabeleceu qualquer regime especial — e se o fizesse seria ilegal — suscetível de afastar as regras de publicação dos diplomas legais.
XXVIII. Estabelece, a este respeito, o artigo 1.º n.º 1 da Lei 74/98 de 11/11, que «A eficácia jurídica dos atos a que se refere a presente lei depende da publicação.», dispondo o artigo 3.º n.º 3 al. b) do mesmo diploma que as Portarias são objeto de publicação na parte B da 1.ª série do Diário da República.
XXIX. Não se trata, pois, de um mero formalismo para a publicitação dos coeficientes em causa, pois que a pretendida publicitação pressupõe uma prévia definição legal, em sentido material e formal — a qual, in casu, não existe.
XXX. Ou seja, reitera-se, não existe qualquer Portaria (ou qualquer outro instrumento legal) a fixar, EM CONCRETO, os zonamentos e coeficientes a aplicar na determinação do VPT do imóvel em causa - in casu, a determinar o CI de 1,60,
XXXI. pelo que, como é de liminar clareza, não se pode dar publicidade a um ato legislativo que, pura e simplesmente, não existe.
XXXII. Ou seja, o “zonamento” e “CI” que, no caso, terão sido aplicados na avaliação, e, assim, influenciado a determinação do VPT, não podem servir de fundamento legal ao ato avaliativo, por não constarem da lei.
XXXIII. A norma do art.º 42.º, n.º 3 do CIMI, faz depender a fixação do coeficiente de localização dos fatores enunciados nas suas quatro alíneas — a saber: acessibilidades, proximidade de equipamentos sociais, serviços de transportes públicos e localização em zona de elevado valor de mercado.
XXXIV. Logo, apenas na medida em que seja possível aferir do preenchimento daquelas características, seria possível à Portaria emitida ao abrigo da norma do citado art.º 62.º, n.º1, b) e 3 do mesmo CIMI, fixar tal prédio na zona compreendida entre esses coeficientes, com a atribuição, EM CONCRETO, do coeficiente de localização correspondente à zona onde o mesmo prédio se localiza.
XXXV. Ora, até à data, NÃO FOI EMITIDA E PUBLICADA QUALQUER PORTARIA — ou outro diploma legal - A FIXAR OS CONCRETOS ZONAMENTOS E RESPETIVOS COEFICIENTES APLICÁVEIS.
XXXVI. Como decidido pela nossa recente Jurisprudência:
«1. A determinação do valor tributário dos prédios urbanos para habitação, comércio, indústria e serviços resulta da fórmula legal constante na norma do art.º 38.º n.º1 do CIM1;
2. Os coeficientes de localização a ter em conta na avaliação de cada prédio depende da fixação entre um máximo e um mínimo previsto em Portaria para o efeito publicada ao abrigo do art.º 42.º do mesmo CIMI e para cada Município;
3. E o concreto coeficiente de localização a aplicar em dada avaliação é o fixado numa outra Portaria emitida ao abrigo do art.º 62.º do mesmo CIMI, sob proposta da CNAPU, onde dentro de cada município são fixados os diversos zonamentos com um concreto coeficiente de localização para aplicar a todos os prédios nele localiza dos.»
XXXVII. Em suma:
NÃO EXISTE QUALQUER PORTARIA, SOB PROPOSTA DA CNAPU, A FIXAR OS ZONAMENTOS E OS CONCRETOS COEFICIENTES — entre os intervalos mínimos e máximos — A APLICAR AOS PRÉDIOS SITUADOS NESSES ZONAMENTOS.
XXXVIII. Constata-se, pois, que a avaliação em causa foi efetuada com base em coeficientes que não têm assento na lei, sendo que em matéria de incidência tributária - como é o caso, uma vez que se cuida de determinar o valor objeto de tributação em sede de IMI - vigora o princípio constitucional da legalidade e tipicidade, e da reserva de lei formal.
XXXIX. A definição do VPT mediante parâmetros e coeficientes determinados e publicados de outra forma que não a legalmente prevista (em Diário da República e sob a forma de Lei em sentido formal e material), viola o disposto nos artigos 103.º n.º 1 e 2, 165.º n.º 1 i) e 198.º n.º 1 b) da CRP.
XL. Destarte: devem ter-se como materialmente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 103.º n.º 2, 119.º n.º 1 h), 165.º n.º 1 i) e 198.º n.º 1 b) da CRP, os artigos 42.º e 62.º CIMI, quando interpretados no sentido de que não é necessário um ato legislativo que fixe zonamentos nos mesmos referidos, e o concreto coeficiente de localização a aplicar aos prédios neles localizados.
Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V. Exas., concedendo provimento ao presente recurso e, consequente, considerando inconstitucionais as sobreditas normas, na interpretação e enquadramento supra referenciados, V. Exas. farão, como sempre, inteira JUSTIÇA!»
4. A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
5. Por despacho de fls. 493 foi, pelas razões aí referidas, suscitado o eventual não conhecimento do objeto do recurso com fundamento na não coincidência entre a dimensão normativa indicada como objeto do recurso e a interpretação normativa efetivamente adotada na decisão recorrida.
6. Notificadas as partes, a recorrente veio pugnar pelo conhecimento do objeto do recurso e a recorrida pelo seu não conhecimento.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II ? Fundamentação
7. Questões prévias
Em resposta à questão suscitada de eventual não conhecimento do objeto do recurso na parte respeitante à falta de suscitação da questão da inconstitucionalidade orgânica do artigo 42.º, n.ºs 2 e 3, alíneas b) e c), do CIMI, junto do Supremo Tribunal Administrativo, a recorrente veio dizer, em síntese, que, tendo suscitado a questão de constitucionalidade em primeira instância e obtido ganho de causa nessa instância, por fundamento diverso, não lhe era exigível que tivesse de suscitar de novo a questão de constitucionalidade, a título subsidiário, para a hipótese de o tribunal de recurso vir a revogar a decisão recorrida. Mais invoca que ainda que tivesse suscitado a questão da inconstitucionalidade normativa, sempre aquele Supremo Tribunal não a teria conhecido, tal como não conheceu a suscitada questão de inconstitucionalidade material.
Como é sabido, a atual redação do n.º 2 do artigo 72.º da LTC (introduzida pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de fevereiro) resolveu a divergência que se verificava, à data, na jurisprudência do Tribunal Constitucional no sentido de ser necessário que a suscitação da questão de constitucionalidade ocorra perante a instância que proferiu a decisão de que se recorre para o Tribunal Constitucional, mesmo que o recorrente tenha obtido ganho de causa na instância inferior e, portanto, figure como recorrido no recurso onde foi proferida esta decisão (v., entre outros, o Acórdão n.º 376/2007 e Guilherme da Fonseca/ Inês Domingos, Breviário de Direito Processual Constitucional, 2.ª ed., Coimbra, 2002, 58-59 e jurisprudência constitucional aí citada). Tal entendimento resulta expressa e inequivocamente da redação da norma, quando exige que «a parte (...) haja suscitado a questão de inconstitucionalidade ou a ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer».
Isto significa que o n.º 2 do artigo 72.º da LTC limita a legitimidade para interpor recurso ao abrigo da alínea b) (e da alínea f)) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC à parte que haja suscitado a questão de constitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida (v. neste sentido o Acórdão n.º 156/2008), exigindo-lhe que nunca deixe cair nem abandone a questão de constitucionalidade nas várias instâncias de recurso.
Impunha-se, assim, que a recorrente tivesse suscitado a questão da inconstitucionalidade orgânica das normas acima mencionadas nas contra-alegações apresentadas junto do Supremo Tribunal Administrativo, o que, como a própria reconhece, não fez.
E não se diga, em contrário, que tal não era exigido à recorrente. Pois da mesma forma que ela antecipou a necessidade de invocar a questão de inconstitucionalidade material, devia (e podia) ter antevisto que, apesar de ter obtido ganho de causa em primeira instância, o tribunal de recurso podia vir a decidir em sentido contrário e aplicar a norma que a recorrente reputava organicamente inconstitucional.
Pelo exposto, e por falta de suscitação, ou seja, por falta de legitimidade da recorrente, não pode conhecer-se do recurso na parte respeitante à inconstitucionalidade orgânica do artigo 42.º, n.ºs 2 e 3, alíneas b) e c), do CIMI.
8. Constata-se, por outro lado, que, nas conclusões das suas alegações de recurso, a recorrente reporta a interpretação impugnada exclusivamente ao disposto nos artigos 42.º e 62.º CIMI (v. conclusão XL, a fls. 440), omitindo qualquer referência ao artigo 45.º do mesmo diploma, anteriormente indicado (inclusive na motivação do recurso) como integrando também o objeto da questão de constitucionalidade. Deve entender-se que estamos perante uma restrição do objeto inicial do recurso, tal como apontado no respetivo requerimento, nos termos facultados pelo n.º 3 do artigo 684.º do CPC.
O objeto do presente recurso restringe-se, assim, à apreciação da inconstitucionalidade material dos artigos 42.º e 62.º do CIMI (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro), quando interpretados no sentido de que não é necessário um ato legislativo que fixe zonamentos nos mesmos referidos, e o concreto coeficiente de localização a aplicar nos prédios neles localizados.
É esta a formulação que consta, expressis verbis, da conclusão final das alegações (conclusão XL), e ainda, posteriormente, do ponto 8 da resposta da recorrente ao despacho de fls. 493. Sendo assim, é dela que deve resultar, em definitivo, a identificação do objeto do pedido, pondo termo a dúvidas que este, globalmente considerado, suscita.
Essas dúvidas têm a ver, basicamente, com a natureza do diploma em que a recorrente entende deveriam ser inseridas as concretas indicações de zonamentos e dos concretos coeficientes de localização, para não ter ocorrido o vício de inconstitucionalidade que aponta. Na verdade, se abundam as referências, a este propósito, à necessidade de um “ato legislativo” com essas menções – em conformidade, aliás, com a qualificação que consta do requerimento de interposição do recurso – nalguns trechos indica-se a “portaria” como o diploma onde deveriam ter assento aqueles elementos quanto aos fatores de avaliação fiscal.
No primeiro sentido, refere-se, por exemplo, no ponto 96 das alegações, no contexto de se determinar quando existiria fundamentação suficiente para os valores utilizados, que «assim seria caso A LEI tivesse fixado COEFICIENTES CONCRETOS a aplicar a cada zonamento – o que não sucede». Identicamente, no ponto 103, alega-se que “os coeficientes concretamente utilizados não estão fixados na lei, apenas cosntando de Portaria os coeficientes mínimos e máximos”; no ponto 111, censura-se a “falta de definição através de instrumento legal”e no ponto 119, a não previsão do concreto “zonamento”, dentro do município em que o prédio se localiza, “em documento com a força de lei”; no ponto 131 e na conclusão XXV, aponta-se a falta de «ato legislativo, em sentido formal ou material, a definir, em concreto, os coeficientes a ser “publicados»; no ponto 138 invoca-se a falta de “prévia definição legal”; no ponto 141, alega-se que os fatores de avaliação que terão sido utilizados na determinação do VPT “não podem servir de fundamento legal ao ato avaliativo, por não constarem da lei”; por último, no ponto 151 (reproduzido na conclusão XXXVIII), para substanciar a alegada violação do princípio constitucional da legalidade e da tipicidade, e da reserva de lei formal, expressa-se que “a avaliação em causa foi efetuada com base em coeficientes que não têm assento na lei”.
Mas, em contraposição a estas numerosas referências, em formulações inequívocas, à natureza legislativa do diploma em que deveriam constar os concretos zonamentos e coeficientes de localização, são identificáveis algumas alusões à portaria como o necessário instrumento normativo de fixação desses elementos de avaliação dos prédios. Assim acontece, com não menor clareza, nos pontos 101, 145, 150 e nas conclusões XVII e XXXVII das mencionadas alegações.
Para além destas referências pontuais, a invocação da ofensa ao artigo 119.º, n.º 1, alínea h) e a linha argumentativa que a sustenta parece só fazer objetivamente sentido quando reportável à exigência de portaria.
Outro passo deixa na dúvida se a recorrente tem em conta uma rigorosa destrinça entre diploma legislativo e diploma regulamentar. Referimo-nos ao ponto 139 (reproduzido, ipsis verbis, na conclusão XXX). Aí se diz que «não existe qualquer Portaria (ou qualquer outro instrumento legal) a fixar, em concreto, os zonamentos e coeficientes a aplicar na determinação do VPT do imóvel em causa» [itálico nosso].
Essa dúvida adensa-se quando se atenta em que, no requerimento de interposição do recurso (mas não nas conclusões das alegações), a recorrente começa por definir o objeto de apreciação da inconstitucionalidade material como sendo a interpretação segundo a qual não é necessário um ato legislativo, “publicado em Diário da República (…)”. Ora, muito embora o diploma a publicar seja aqui identificado como “um ato legislativo”, nunca esteve em causa a publicação do Decreto-Lei que instituiu o CIMI (Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro), mas sim a publicação dos coeficientes concretamente aplicados num portal das Finanças, para que remetia o artigo 7.º da Portaria n.º 982/2004, e não no próprio texto deste diploma, publicado no jornal oficial.
Tudo isto gera densa nebulosidade quanto ao exato recorte, neste ponto, do pedido. Mas a dúvida não pode deixar de ser desfeita de outro modo que não seja o de tomar à letra, na sua aceção técnica, a referência a “ato legislativo”, uniforme e repetidamente feita em todas as formulações utilizadas pela recorrente para conclusivamente indicar o objeto do seu recurso, não obstante o muito menor grau de problematicidade que a questão assim entendida coenvolve.
Deste modo – repete-se - o presente recurso tem por objeto as normas dos artigos 42.º e 62.º do CIMI, quando interpretadas no sentido de que não é necessário um ato legislativo que fixe zonamentos nos mesmos referidos, e o concreto coeficiente de localização a aplicar nos prédios neles localizados.
9. Assim definido, é por demais duvidoso que o objeto do recurso coincida com a ratio decidendi do acórdão recorrido.
Na verdade, a fundamentação da decisão está construída pela positiva, realçando a suficiência dos elementos normativos constantes da lei, e não pela negativa, pondo em destaque a dispensabilidade da fixação, na própria lei, dos parâmetros de avaliação predial referidos pela recorrente.
É assim que, remetendo-se para acórdão anterior do mesmo Tribunal, se salienta:
«Trata-se, pois, de parâmetros legais de fixação do valor patrimonial com base em critérios objetivos e claros e, por isso, facilmente sindicáveis, bastando a indicação da localização dos prédios e a referência do quadro legal aplicável para que se compreenda como foi determinado o referido coeficiente.
Ou seja, encontramo-nos no domínio de zonas e coeficientes predefinidos e, portanto, indisponíveis para qualquer ponderação ou alteração por parte dos peritos intervenientes no procedimento de avaliação (…)».
A interpretação apontada como objeto do recurso de constitucionalidade é um mero pressuposto negativo da adoção do critério que serviu de base à decisão recorrida. O entendimento no sentido da não exigibilidade da fixação, por lei, dos concretos zonamentos e coeficientes de localização é condição necessária, mas não suficiente, para se dar por bastante o que nela se prescreve. Este último é o juízo verdadeiramente determinante do sentido da decisão, da pronúncia de que não carece de suficiente base legal o valor do IMI cobrado.
Poder-se-á dizer, é certo, que só admitindo, como primeiro passo, a interpretação impugnada se pode formular a conclusão a que o tribunal recorrido chegou. Mas essa interpretação não arrasta inevitavelmente, como consequência lógica necessária, aquela que o tribunal adotou. A decisão poderia ter sido em sentido contrário à emitida, ainda que identicamente se considerasse não ser necessário um ato legislativo que fixe os concretos zonamentos e coeficientes de localização. Bastaria que fosse outro o juízo quanto à suficiência do fundamento que a lei fornece para o concreto ato de avaliação. O que torna manifesto que a diferença entre as duas interpretações não é apenas de formulação, não podendo elas ser perspetivadas como simétricas uma da outra.
De resto, a conclusão a que o tribunal recorrido chega, de não terem sido contrariados “qualquer um dos princípios constitucionais citados pela recorrida”, teve em conta o conjunto do “sistema técnico de regulamentação”. Esse sistema é complexo, comportando uma sucessão de atos, sendo o primeiro a fixação legal dos parâmetros de determinação do valor patrimonial dos prédios, seguindo-se uma portaria (no caso, a Portaria n.º 982/2004) a estabelecer, de acordo com esses parâmetros, os valores máximos e mínimos dos coeficientes de localização a aplicar em cada município, e a aprovar (em cumprimento do n.º 3 do artigo 62.º do CIMI) o zonamento e os coeficientes de localização correspondentes a cada zona de valor homogéneo, estando estes fatores publicados no sítio indicado no seu n.º 7 (www.e-finanças.gov.pt).
Para o tribunal recorrido, a suficiência do que a lei prescreve resulta também do que, no seu seguimento e concretização, é posteriormente estabelecido. Foi por entender que o procedimento concreto de avaliação tinha por detrás de si uma suficiente base legal e regulamentar, que lhe confere “uma elevada objetividade”, “sem espaço para a subjetividade e discricionaridade do legislador” que a decisão recorrida afastou o entendimento do tribunal a quo de que «nas avaliações em causa não se encontravam os critérios que determinaram o coeficiente de localização e a percentagem aplicada (…)», decidindo, em contrário, que aquele procedimento gozava de um “grau de fundamentação adequado”.
Ao não captar e refletir todo este percurso cognoscitivo e valorativo seguido pelo tribunal recorrido, o qual constitui a ratio decidendi, a interpretação apontada como objeto do recurso não se identifica com esta, o que obsta a que dele se tome conhecimento.
III ? Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objeto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em doze (12) unidades de conta.
Lisboa, 7 de março de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.