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Processo nº 140/90
Plenário
Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1.1.- O Procurador-Geral da República, no uso da competência que lhe é
outorgada pelo artigo 281º, nº 1, alínea a), e nº 2, alínea e), da Constituição
da República (CR) requereu que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, com
força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes dos
artigos 4º, nºs. 17, 26 (primeira parte), 47, 49 e 54 (segundo segmento), 9º, nº
3, 10º, nº 4, 11º, nº 6, e 38º do Regulamento de Disciplina do Batalhão de
Sapadores Bombeiros da Câmara Municipal de Lisboa, aprovado por deliberações da
Câmara, de 16 de Julho de 1970 e de 22 de Abril de 1971, homologadas por
despacho emanado do Ministério do Interior, de 5 de Março de 1971 (Diário do
Governo, II Série, nº 69, de 23 de Março de 1971).
1.2.- Aduziu, para o efeito, os seguintes fundamentos:
'a) Admitindo, sem conceder, que o pessoal dos corpos de
bombeiros sapadores possa integrar a categoria de 'agentes militarizados dos
quadros permanentes em serviço efectivo' para efeitos do artigo 270º da
Constituição, as restrições ao exercício dos seus direitos de expressão,
reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à sua capacidade
eleitoral passiva só seriam constitucionalmente legítimas se proviessem de lei,
da exclusiva e indelegável competência da Assembleia da República,
obrigatoriamente votada na especialidade pelo Plenário e carecendo de aprovação
por maioria de dois terços dos Deputados presentes, desde que superior à
maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (artigos 167º, alínea
p), e 171º, nºs. 4 e 6, da Constituição), e se se contivessem 'na estrita medida
das exigências das suas funções próprias'.
b) Assim, a norma do nº 17 do artigo 4º do Regulamento em
causa, ao impor ao sapador bombeiro o dever de 'não tomar parte em comícios,
congressos ou espectáculos públicos sem estar devidamente autorizado', viola
os artigos 45º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição, pois não há razão válida, do
ponto de vista do ordenamento dos valores constitucionais, para se exigir uma
autorização para o exercício, pelos sapadores bombeiros, do direito de
reunião.
c) É igualmente inconstitucional, por violação dos artigos
52º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição, a norma constante da primeira parte do
nº 26 do mesmo artigo 4º, que impõe ao sapador bombeiro o dever de 'não promover
ou autorizar nem tomar parte em manifestações colectivas ou atentatórias da
disciplina', na medida em que considera como tais manifestações 'as reclamações,
pedidos, exposições ou representações verbais ou escritas, referentes a casos
de disciplina ou de serviço, que, tendo esse fim comum, sejam apresentadas por
diversos indivíduos, colectiva ou individualmente, ou ainda por um em nome de
outros'.
d) Viola os artigos 46º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição
a norma constante do nº 47 do mesmo artigo 4º, que impõe ao sapador bombeiro o
dever de 'não fazer parte de qualquer clube, sociedade ou agremiação sem estar
autorizado superiormente'.
e) A norma constante do nº 49 do citado artigo 4º, que impõe
ao sapador bombeiro o dever de 'estar integrado na ordem social estabelecida
pela Constituição Política da Nação, com activo repúdio do comunismo e de todas
as ideias subversivas', a ter-se por não caducada com a instauração do regime
constitucional emergente da Revolução de 25 de Abril de 1974, viola os artigos
37º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição, e, na medida em que impediria o acesso
à função de sapador bombeiro com fundamento em convicções políticas, os artigos
13º, nº 2, e 47º da Lei Fundamental.
f) A norma constante do nº 54, ainda do artigo 4º, no
segmento em que impõe ao sapador bombeiro o dever de não se servir da imprensa
ou de outro meio de publicidade para responder a apreciações feitas, viola os
artigos 37º, nº 1, e 18º, nº 2, da Constituição, já que tal restrição se mostra
excessiva, atendendo a que pode estar em causa a defesa da competência, do zelo
e dignidade profissional e até a dignidade pessoal do sapador bombeiro.
g) As normas constantes dos artigos 9º, nº 3, 10º, nº 4, e
11º, nº 6, do Regulamento em causa, prevendo a aplicação de penas de detenção
a, respectivamente, subchefes, cabos e sapadores bombeiros, violam o artigo
27º da Constituição, que só consente a privação, total ou parcial, de liberdade
por motivos disciplinares quando imposta a 'militares', em sentido estrito
[alínea c) do nº 3].
h) Por idêntico motivo, é inconstitucional a norma do
artigo 38º do mesmo Regulamento, enquanto prevê e regulamenta a ordem de
detenção (preventiva) por motivos disciplinares.
1.3.- Tendo em vista o disposto no nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº
312/80, de 19 de Agosto, foi notificado o Presidente da Câmara Municipal de
Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54º e 55º, nº 3,
da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Nada se lhe ofereceu dizer.
II
1.- O Regulamento de Disciplina - doravante designado
RDBSB.
Aprovado pelas deliberações camarárias já
referenciadas, o diploma contém uma introdução sob a epígrafe 'Disciplina'
cujo teor importa transcrever para completa inteligência da solução proposta:
'Mais que em nenhuma outra, por ter que ser desempenhada em horas de
sofrimento, a função do Sapador Bombeiro, deve ser exercida em observância aos
mais sólidos e rigorosos princípios da disciplina e adestramento, numa
criteriosa e bem organizada concordância de esforços.
Uma perfeita e compreendida subordinação de posto para posto, o
respeito para com os chefes, a obediência confiante e imediata às ordens, a
compreensão nítida das suas funções e o desejo superiormente manifestado de bem
cumprir, são elementos basilares da disciplina.
A responsabilidade, como consequência da iniciativa, deve ser
reivindicada para si por todo aquele que comanda ou dirige.
Para uma perfeita compreensão da disciplina muito contribuem a
bondade e a atenção com que os superiores têm obrigação de tratar os
inferiores, e os cuidados que estes constantemente lhes devem merecer.
Todos devem compenetrar-se de que a disciplina, essencial ao êxito
da missão a cumprir, se avigora pelo prestígio que nasce das normas da justiça
empregadas, do respeito pelos direitos de todos, do cumprimento exacto dos
deveres, do saber e da correcção de proceder.
O procedimento exemplar dos superiores, em todos os seus actos, é
elemento primacial da disciplina que deve ser exortado'.
Por sua vez, o capítulo I - Generalidades -
procura, logo no seu artigo 1º, concretizar o que se entende por disciplina:
'A disciplina consiste na exacta observância das leis, regulamentos,
instruções e ordens de serviço'.
E, depois de o artigo 2º preceituar que 'Infracção
de disciplina punível por este Regulamento é toda a omissão ou acção contrária
ao dever', o artigo 3º adianta que o sapador bombeiro 'terá rigorosamente em
conta que:
1.- É devida obediência pronta, leal e completa às ordens do
superior, sem prejuízo de, em casos excepcionais mas nunca em formatura ou em
trabalho, poder o inferior, obtida a autorização, dirigir respeitosamente ao
superior as observações que julgar convenientes, obedecendo no entanto, se o
superior insistir, sem quebra do direito de queixa à autoridade competente.
2.- A obediência é sempre devida ao mais graduado e em
igualdade de graduação ao mais antigo.
3.- O superior deverá procurar ser para os inferiores exemplo
e guia, estabelecendo estima recíproca sem contudo a levar até à
familiariedade, que só é permitida fora dos actos de serviço e entre indivíduos
da mesma classe.
4.- A disciplina sendo condição de êxito da missão a cumprir
consolida-se e avigora-se pelo prestígio que nasce das normas de justiça
empregadas, do respeito pelos direitos de todos, do cumprimento exacto dos
deveres, do saber e da correcção de proceder.
5.- Nenhum graduado se deve esquecer em quaisquer
circunstâncias de que a atenção dos seus subordinados está sempre fixa sobre os
seus actos e que, por isso, a sua conduta irrepreensível é meio seguro de
manter a disciplina.'
Prossegue o diploma com os capítulos II - Deveres
- III - Penas disciplinares - IV - Recompensas - V - Regras para aplicação e
execução das penas disciplinares - VI - Processo disciplinar - VII -
Reclamações, queixas e recursos - VIII - Publicação, averbamento e anulação de
recompensas e penas - e IX - Classes de comportamento.
As normas questionadas inserem-se nos capítulos II
e III.
2.- Os textos em crise do RDBSB.
O artigo 4º, integrado no Capítulo II - Deveres -
dispõe no seu corpo e na parte que interessa:
'O Sapador Bombeiro, cujo proceder em tudo se regulará pelos ditames
da virtude e da honra, deve amar a Pátria, guardar fidelidade à Constituição e
às Leis, servir com o maior brio e praticar o bem em proveito do seu semelhante
a quem com risco da própria vida socorrerá em todas as circunstâncias aflitivas,
e tem por deveres especiais os seguintes:
------------------------------------
17. Não tomar parte em comícios, congressos ou espectáculos
públicos sem estar devidamente autorizado.
------------------------------------
26. Não promover ou autorizar nem tomar parte em manifestações
colectivas ou atentatórias da disciplina [...].
------------------------------------
47. Não fazer parte de qualquer clube, sociedade ou agremiação
sem estar autorizado superiormente.
------------------------------------
49. Estar integrado na ordem social estabelecida pela
Constituição Política da Nação, com activo repúdio do comunismo e de todas as
ideias subversivas.
------------------------------------
54. Não se servir da imprensa ou de qualquer outro meio de
publicidade [...] para responder a apreciações feitas [...].
----------------------------------.'
O artigo 9º, integrado no Capítulo III - Penas
Disciplinares - II - Penas aplicáveis ao pessoal subalterno e às praças,
dispõe:
'As penas aplicáveis a subchefes são as seguintes:
------------------------------------
3. Detenção (perda de folgas) até 20 dias
----------------------------------.'
O artigo 10º, em idêntico enquadramento
sistemático, dispõe:
'As penas aplicáveis a cabos são as seguintes:
------------------------------------
4. Detenção (perda de folgas) até 20 dias.
----------------------------------.'
O artigo 11º reza, por sua vez:
'As penas aplicáveis a sapadores bombeiros são as seguintes:
------------------------------------
6. Detenção (perda de folgas) até 20 dias
----------------------------------.'
Finalmente, o artigo 38º está compreendido no mesmo
capítulo (parte III - Efeitos das penas) e dispõe:
'1.- Todo o superior pode ordenar a detenção dos inferiores
sempre que assim o exija a disciplina.
2.- Quando o superior que ordenar a detenção no quartel, não
tiver competência para punir, deverá imediatamente participar a ocorrência por
escrito ao comandante, que resolverá como for de justiça, se para isso tiver
competência, ou fará seguir às instâncias superiores a participação devidamente
informada e averiguada.
3.- A intimação da ordem de detenção de um subchefe-ajudante
ou subchefe a um outro, seu inferior, só é permitida nos casos de usurpação de
atribuições, abuso de autoridade ou provocação à indisciplina'.
II
Questão prévia: da utilidade de conhecer o pedido
1.1.- Interessará conhecer o pedido formulado pelo Procurador-Geral da
República se se puder desde já concluir que ele respeita a normas presentemente
não vigentes no ordenamento jurídico nacional, por revogadas?
É certo que, só por si, a revogação, que tem, em
princípio, eficácia ex nunc, não obsta a uma eventual declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, a qual, e também em
princípio, tem efeitos retroactivos, ex tunc, mercê do disposto no artigo 282º,
nº 1, da Constituição.
Pode, de facto, haver interesse relativo aos
efeitos produzidos pela norma medio tempore, o que acontecerá sempre que a
declaração se mostrar indispensável para eliminar os efeitos produzidos pela
norma posta em crise durante o tempo que esteve em vigor.
Trata-se de entendimento assumido em jurisprudência
reiterada do Tribunal Constitucional, caso dos acórdãos nºs. 238/88, 319/89,
415/89, 73/90, 135/90, 200/90, 446/91, 465/91, 175/93, 308/93 e 188/94,
respectivamente publicados no Diário da República, II Série, de 21/12/88,
28/6/89, 15/9/89, 19/7/90, 7/9/90, 12/9/90, 2/4/90 (os dois de 1991), 29/4/93,
22/7/93 e 19/5/94.
Necessário é que haja um interesse de conteúdo
prático apreciável, a justificar o 'accionamento de um mecanismo de índole
genérica e abstracta como é a declaração, com força obrigatória geral, de
inconstitucionalidade', na expressão do parecer nº 21/81 da Comissão
Constitucional (in - Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 16º, pág. 203),
retomada por outros arestos, tais como os citados acórdãos nºs. 238/88 e
175/93.
A esta luz se apreciará a questão equacionada.
2.- Está em vigor o regime disciplinar parcialmente
posto em crise pela entidade requerente?
2.1.- O RDBSB pretendeu, consoante se retira da elucidativa nota
preambular, estabelecer um regime disciplinar do corpo de sapadores bombeiros
municipais de Lisboa concebido segundo uma rígida perspectiva de subordinação
hierárquica, rigoroso enquadramento dos efectivos e vocação de serviço público,
como se lhe chamou.
O Código Administrativo dispunha, então, no § único
do artigo 157º - preceito que seria revogado pelo artigo 8º do Decreto-Lei nº
312/80, de 19 de Agosto - deverem as câmaras municipais onde existissem
batalhões de sapadores bombeiros
- caso de Lisboa - elaborar regulamentos disciplinares destinados a serem
observados por esses batalhões 'segundo as normas de disciplina militar', razão
pela qual se atribuíam os respectivos comandos, de harmonia com o corpo do mesmo
dispositivo, a oficiais superiores ou capitães da arma de engenharia, sendo o
respectivo pessoal militarizado.
O Decreto-Lei nº 35 746, de 12 de Julho de 1946,
previu, por sua vez, a publicação pelo Governo de um regulamento a cujas
disposições se subordinariam os regulamentos de todos os corpos de bombeiros
(artigo 12º) centralizando em organismo dependente do Ministério do Interior -
o Conselho Nacional dos Serviços de Incêndios que, mais tarde, daria lugar ao
Serviço Nacional de Bombeiros - a orientação superior dos vários serviços a
cargo dos bombeiros, com ganho de prestígio na medida em que se intentava
uniformizar quadros, formação técnica e disciplina do pessoal. Na sequência do
disposto naquele artigo 12º, o Decreto nº 35.857, de 11 de Setembro de 1946 e o
Decreto nº 38.439, de 27 de Setembro de 1951 - cujo artigo 71º revogou
expressamente o primeiro - encarregaram as câmaras municipais de elaborar os
regulamentos disciplinares dos seus corpos de bombeiros tendo em consideração
não apenas o modelo regulamentar, funcional e organizatório nesses diplomas
contido como, bem assim, os regulamentos dos próprios batalhões de sapadores de
bombeiros.
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 312/80, de 19 de
Agosto, já aludido, criou uma nova estrutura orgânica e operacional dos
batalhões de sapadores bombeiros.
O seu artigo 8º revogou os artigos 156º do Código
Administrativo - preceito que previa a existência de diversos corpos de
bombeiros nos municípios - e 157º do mesmo diploma, que aludia à militarização
do pessoal dos batalhões de sapadores bombeiros e à disciplina militar que os
devia reger.
Sob a epígrafe 'Disciplina' dispôs o novo texto, no
artigo 6º:
'1.- O pessoal dos corpos de bombeiros sapadores é
militarizado e rege-se por regulamentos elaborados segundo as normas de
disciplina militar aprovadas pelas câmaras municipais respectivas.
2.- Para orientação das câmaras municipais interessadas,
publicará o Ministério da Administração Interna modelo de regulamento tipo,
vigorando como tal, enquanto aquela publicação não ocorrer, o regulamento
aplicado actualmente aos batalhões de bombeiros sapadores' (sublinhados
agora).
Permitiu-se, assim, como explicitamente se pondera
no Despacho Normativo nº 276/82 do Ministro da Administração Interna, ao abrigo
do artigo 9º daquele Decreto-Lei nº 312/80 (despacho datado de 25 de Novembro de
1982 e publicado no Diário da República, I Série, de 11 de Dezembro seguinte)
que os municípios, verificado certo grau de profissionalização do pessoal dos
corpos municipais de bombeiros, instituíssem batalhões ou companhias de
bombeiros profissionais sapadores 'com pessoal militarizado submetido a regime
disciplinar próximo do regulamento de Disciplina Militar', em consequência do
que se cuida do regime de nomeação dos titulares dos lugares do comando dessas
companhias (sublinhado agora).
De resto, a legislação entretanto saída relativa a
vencimentos, diuturnidades e outros benefícios a abonar a esse pessoal 'situa-o'
na área da militarização (se bem que - reflexo da aporia verificada em todo o
tratamento jurídico desde há muito concedido aos sapadores - nem sempre
identicamente). Sirvam como exemplo dois diplomas: o Decreto-Lei nº 405/75, de
29 de Julho, ao determinar que o regime e o quantitativo das diuturnidades e
outros benefícios a abonar ao pessoal dos batalhões de sapadores bombeiros
serão iguais aos estabelecidos para o pessoal da Polícia de Segurança Pública
(artigo 1º) parte do princípio de que os batalhões de sapadores bombeiros
'sempre têm estado equiparados' aos elementos das corporações militarizadas do
Estado; o Decreto-Lei nº 87/79, de 18 de Abril, que, ao equiparar os
vencimentos base do pessoal dos batalhões de sapadores bombeiros de Lisboa e do
Porto ao do pessoal da PSP (artigo 1º) considera 'a natureza de corpos
militarizados de que se revestem os batalhões de sapadores bombeiros'.
Sem retirar qualquer ilação da qualificação feita
amiúde pelo legislador sobre a militarização destes corpos de bombeiros, sem
prejuízo da nítida componente reforçada de disciplina e de hierarquia que os
distingue - e os diferenciam, designadamente, de outros corpos de bombeiros -
cumprirá verificar se esse enquadramento, em vigor ao tempo do pedido, se
mantém hoje em dia.
2.2.- Com efeito, até recente data as iniciativas do legislador não
permitiam ao intérprete tarefa fácil.
Assim, o Estatuto Social do Bombeiro - Lei nº
21/87, de 20 de Junho - após definir bombeiro (artigo 1º) e determinar a sua
aplicação aos bombeiros profissionais 'sem prejuízo das disposições mais
favoráveis constantes dos diplomas orgânicos dos serviços ou dos regulamentos
das entidades a que estejam vinculados' (nº 2 do artigo 2º) diz-nos, no seu
artigo 4º que 'o recrutamento, o provimento de categorias, quadros, promoção,
antiguidade e regime disciplinar dos bombeiros são os constantes dos respectivos
regulamentos e demais legislação em vigor para os corpos de bombeiros'. E, ao
elencar os deveres e os direitos dos bombeiros ressalvam-se os que resultem 'de
outras leis ou regulamentos aplicáveis' (nºs. 2 dos artigos 5º e 6º,
respectivamente). Indefinições e incompletudes que igualmente se detectam no
Decreto-Lei nº 241/89, de 3 de Agosto, texto que veio regulamentar o regime
jurídico estabelecido pela Lei nº 21/87.
Consciente de semelhantes perplexidades, veio o
Decreto-Lei nº 293/92, de 30 de Dezembro, fixar novo regime jurídico dos corpos
de bombeiros profissionais.
Considerou-se ser o novo estatuto um compromisso
que envolve, para além da prossecução dos objectivos inerentes ao interesse
público, a estrutura dos bombeiros em Portugal, os interesses das autarquias e
os 'legítimos anseios dos profissionais envolvidos', reconhecendo-se, do mesmo
passo, a desactualização do conjunto de normas dispersas que se vêm aplicando
aos bombeiros profissionais e as dificuldades advindas da aplicação prática de
dois regimes: 'um, proveniente de adaptações do Código Administrativo e da
transição imperfeita dos regimentos de sapadores bombeiros para o âmbito
municipal, outro, da insuficiência das normativas aplicáveis à administração
local', segundo nos diz o preâmbulo do diploma.
Como então se observa, e importa reter, 'os
bombeiros profissionais são funcionários da autarquia, com todas as implicações
que desta qualidade decorrem, e a ligação que se mantém ao Serviço Nacional de
Bombeiros justifica-se pela necessidade de harmonização de formação e
coordenação no terreno...'(sublinhado nosso).
Nesta linha de orientação 'os corpos de bombeiros
profissionais regem-se pela legislação geral em vigor para o pessoal da
administração local e pela demais legislação especial aplicável, em tudo o que
não se encontre especialmente regulado no presente diploma', como nos diz o
artigo 2º.
Os corpos de bombeiros profissionais são corpos
especiais de funcionários especializados de protecção civil integrados nos
quadros de pessoal das câmaras municipais, entendendo-se por bombeiros
profissionais, para efeitos do diploma, os bombeiros municipais que desempenham
funções com carácter profissionalizado e os bombeiros sapadores (artigo 3º).
Estes corpos de bombeiros dependem, para efeitos
funcionais, administrativos e disciplinares da respectiva autarquia local
(artigo 4º, nº 1) e os seus efectivos - os bombeiros profissionais - gozam
dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos na lei geral para os demais
funcionários da Administração Pública (nº 1 do artigo 17º), observando o artigo
21º, sob a epígrafe 'Regime disciplinar':
'Aos bombeiros profissionais aplica-se o Decreto-Lei nº 24/84, de 16
de Janeiro, e demais legislação aplicável aos corpos de bombeiros'.
O provimento dos cargos de comando passa a ser
feito 'nos termos da legislação em vigor para o pessoal dirigente da
administração local' dando-se preferência aos oficiais das Forças Armadas na
situação de reserva ou a 'indivíduos licenciados de reconhecido mérito no
exercício de funções de comando, cumulativamente com experiência profissional
na área da protecção civil' (artigo 9º, nº 1), equiparando-se, para efeitos
remuneratórios, o cargo de comandante de regimento ou de batalhão de bombeiros
sapadores ao de director municipal e o cargo de comandante de companhia ao de
director de departamento municipal (nºs. 2 e 4 do artigo 9º).
E o artigo 28º revoga o § 3º do artigo 163º do
Código Administrativo 'na parte em que remete para o regime disciplinar dos
bombeiros sapadores', ou seja, elimina a equiparação do estatuto disciplinar dos
serviços de polícia municipal, concebido como 'corpo privativo militarizado', às
normas previstas nesse domínio para os batalhões de sapadores bombeiros.
O Decreto-Lei nº 293/92 foi alterado, por
ratificação, pela Lei nº 52/93, de 14 de Julho, com pequenas modificações
(nelas sobressaindo o aditado artigo 19º-A, que sujeita os bombeiros
profissionais ao regime geral de férias, faltas e licenças).
Operou-se, através destas medidas legislativas, um
inequívoco reequacionamento da natureza organizacional e profissional dos
bombeiros sapadores.
Já nesta perspectiva, o Decreto-Lei nº 373/93, de 4
de Novembro, criou regras para o estatuto remuneratório e a estrutura das
remunerações base das categorias que integram a carreira de bombeiros sapadores,
prevendo especificidades e remetendo para o regime geral do Decreto-Lei nº
353-A/89, de 16 de Outubro, que versa a mesma temática no âmbito dos
funcionários e agentes da Administração Pública.
E, como que cortando de raiz, o Decreto-Lei nº
407/93, de 14 de Dezembro, estabeleceu o novo regime jurídico dos corpos de
bombeiros, revogando expressamente, no seu artigo 15º, o Decreto-Lei nº 312/80,
que, recorde-se, concebera uma estrutura orgânica e operacional para os
batalhões de bombeiros sapadores assente na militarização do respectivo pessoal
e no respeito a normas de disciplina militar.
Registem-se, por fim, dois diplomas mais recentes
- o Decreto-Lei nº 277/94, de 3 de Novembro, e o Decreto Regulamentar nº
62/94, de 2 de Novembro - que, no entanto, nada acrescentam de significativo
aos dados da questão.
Com efeito, o primeiro deles introduz alterações à
Lei Orgânica do Serviço Nacional de Bombeiros' (Decreto-Lei nº 418/80, de 28 de
Setembro), decorrentes da aprovação do novo regime jurídico dos corpos de
bombeiros, enquanto o segundo dos citados textos estabelece o regime jurídico da
tipificação destes corpos, classificando-os por critérios que têm em conta as
dotações dos corpos de bombeiros em recursos humanos, equipamentos e
instalações, atribuindo-se a cada corpo um coeficiente indicativo 'em cuja
determinação intervenham os factores expressivos do risco potencial do
município em que aquele se situa, bem como a respectiva área geográfica de
actuação e os serviços que presta' (da breve nota preambular).
Ambos os diplomas traduzem adaptações ao mesmo
regime jurídico dos corpos de bombeiros e, a esta luz, se nada de relevante
encerram quanto à problemática em causa, bem pode defender-se, razoavelmente,
que, longe de contrariarem, eles reforçam o novo enfoque jurídico que à matéria
se pretende dar.
2.3.1.- Diz-nos o artigo 270º da Constituição da República que a lei pode
estabelecer restrições ao exercício dos direitos
de expressão, reunião, manifestação, associação e petição colectiva e à
capacidade eleitoral passiva dos militares e agentes militarizados dos quadros
permanentes em serviço efectivo, na estrita medida das exigências das suas
funções próprias.
Não é, no entanto, isenta de dificuldades a tarefa
de apurar os conceitos de militar e de agente militarizado dada a sua ténue
densificação, agravada pelo facto de a Constituição os mencionar ao longo do seu
texto - como se surpreende nos artigos 46º, nº 4, 167º, alínea p), e 270º -
não apenas numa perspectiva organizatória mas também em óptica definidora de
diferentes estatutos pessoais, como foi observado por este Tribunal no acórdão
nº 308/90, publicado no Diário da República, I Série-A, de 21 de Janeiro de
1991.
A este propósito, outro aresto, o nº 103/87,
publicado no mesmo jornal oficial, I Série, de 6 de Maio de 1987, utilizando
uma metodologia aceite por aquele e também (implicitamente, pelo menos) pelo nº
221/90 (Diário citado, II Série, de 22 de Janeiro de 1991), ao equacionar os
parâmetros de integração e de interpretação do conteúdo constitucionalmente
adequado da expressão 'agentes militarizados', não sublinhou tanto o critério
do respectivo estatuto profissional mas antes, e sobretudo, o da sua situação
organizatória, em termos de comparação com a específica situação organizatória
dos militares.
Nessa linha de abordagem, 'militarizado' encerrará
uma realidade que, por definição, na sua essência, não é militar mas recebe
certas características típicas da instituição militar, vindo a assumir uma
feição similar a esta (citado acórdão nº 103/87), significando a instituição
'militarizada' algo que apenas se aproxima, através de determinadas
características, da instituição 'militar' mas que não se identifica com esta
nem é sequer um seu desenvolvimento (cit. acórdão, após confrontação com o
'lugar paralelo' do artigo 46º, nº 4, da Constituição).
Na assinalada orientação jurisprudencial
apontam-se, como notas características da instituição militar, o estrito
enquadramento hierárquico dos seus membros, a subordinação da actuação de cada
um ao princípio do comando em cadeia, implicando um especial dever de
obediência, o uso de armamento, o princípio do aquartelamento, a obrigatoriedade
do uso de farda ou uniforme e a sujeição dos membros da instituição a
específicas regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais.
Falta, aliás, uma 'norma intermédia' concretizadora
dessas restrições como a do artigo 31º da Lei nº 29/82, de 11 de Dezembro (Lei
da Defesa Nacional e das Forças Armadas), na redacção da Lei nº 41/83, de 21 de
Dezembro, para os militares e agentes militarizados, com referência à Guarda
Nacional Republicana, Guarda Fiscal e Polícia de Segurança Pública (artigo
69º), sendo certo que outros organismos existem situados na 'zona cinzenta'
exposta à controvérsia da caracterização militarizada ou de natureza civil das
suas atribuições (cfr. Alberto Esteves Remédio - 'Forças Armadas e Forças de
Segurança - Restrições aos Direitos Fundamentais' in Estudos sobre a
Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Lisboa, 1993, pág. 374).
2.3.2.- Não interessa, porém, ir tão longe na caracterização estatutária
e disciplinar dos bombeiros sapadores à luz do ordenamento jurídico, tal como
este se apresentava à data do pedido - questão que, assim, se deixa em aberto.
Na verdade, a partir de 1992, nomeadamente, o
legislador optou pela valorização da vertente administrativa civil dos corpos
de bombeiros sapadores, estrutural e estatutariamente considerados e, nessa
medida, as restrições possíveis a introduzir ao exercício dos direitos,
liberdades e garantias dos seus membros ficam necessariamente sujeitas ao regime
aplicável aos trabalhadores da Administração pública civil.
É inegável a dimensão de interesse público das
atribuições funcionais dos corpos de bombeiros profissionais, cujo elenco,
constante do artigo 3º do Decreto-Lei nº 407/93, é sintetizado no Estatuto
Social do Bombeiro ao atribuir ao bombeiro a missão de protecção das vidas
humanas e dos bens em perigo, mediante a prevenção e a extinção de incêndios e o
socorro dos feridos, doentes ou náufragos.
Para o efeito, o legislador - que se presume
consagrar as soluções mais acertadas e saber exprimir adequadamente o seu
pensamento - intentou regular os interesses em jogo, criando os corpos de
bombeiros sapadores na dependência de uma câmara municipal, integrando-os
exclusivamente por elementos profissionais, dotando-os de uma estrutura que
compreende a existência de companhias, batalhões e regimentos ou, pelo menos,
de uma dessas unidades estruturais. E fez compreender, na estrutura dos
regimentos e batalhões, o comando, a secção técnica, a companhia de instrução,
as companhias operacionais e os serviços logísticos; e, nas companhias de
bombeiros sapadores, quando não enquadradas em regimentos ou batalhões, o
comando, a secção técnica e de instrução, os pelotões operacionais e os
serviços logísticos (cfr. o artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 407/93).
Regime, no entanto, globalmente diferente do
anterior.
Na verdade, se bem que sujeitos ao princípio de
comando, tendo em vista possibilitar 'a máxima eficiência de coordenação
técnico-operacional no desempenho das suas funções' (artigo 8º da Lei nº 52/93),
os bombeiros profissionais passaram a ter os seus cargos de comando não
necessariamente providos com militares, dando-se preferência quer a oficiais
das Forças Armadas na situação de reserva, quer a indivíduos licenciados de
reconhecido mérito no exercício de funções de comando, cumulativamente com
experiência profissional na área da protecção civil.
Como funcionários autárquicos, atribuiram-se-lhes o
gozo dos direitos e a sujeição aos deveres previstos na lei geral para o
funcionalismo da Administração Pública, com as especificidades próprias, e o
estatuto do pessoal dirigente da administração local autárquica.
E, de igual modo, ficaram sujeitos disciplinarmente
ao regime do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração
Central, Regional e Local.
Estes três factores - estruturação dos comandos,
enquadramento da função no âmbito autárquico, regime disciplinar comum ao
universo dos funcionários e agentes das Administrações Central, Regional e
Local - são índices expressivos da vigência de um novo tratamento jurídico,
organizatório e estatutário nesta área.
E é através deles que, actualmente, importa
ponderar os interesses em jogo, considerando o intérprete seja o poder de
intervenção do legislador, seja o grau de imposição constitucional.
Todavia, no âmbito desta questão prévia, não há que
curar de saber em que medida a 'missão' do bombeiro sapador, ou seja, a
salvaguarda dos interesses e bens da comunidade ligados à função por ele
exercida (cfr., J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 244) permite ao legislador comprimir os
direitos fundamentais.
2.4.- Chega-se, assim, à conclusão de que o regime disciplinar dos
membros dos corpos de bombeiros sapadores vigente à data do pedido foi
globalmente revogado, substituindo-se todo o regime jurídico por novo regime,
integrando uma situação contemplada pelo artigo 7º, nº 2, in fine do Código
Civil.
O que, na sequência do anteriormente exposto,
conduz ao não conhecimento do pedido, por falta de interesse jurídico relevante.
Aliás, algumas das normas em sindicância - sirvam
de paradigma as dos nºs. 17, 47 e 49 do artigo 4º - nem sequer terão caducado
com a entrada em vigor da Constituição (cfr., artigo 293º, nº 1, da redacção
inicial, hoje 290º, nº 2) porque já então haviam sido afastadas com o 25 de
Abril, o Programa do Movimento das Forças Armadas e a Lei nº 3/74, de 14 de Maio
(cfr. artigo 1º, nº 1), que o publicou em anexo.
Quanto às restantes, a terem sido, entretanto,
aplicadas -o que o Tribunal desconhece- a verdade é que a eventual declaração
da sua inconstitucionalidade, não se reveste de conteúdo prático apreciável,
desse modo tornando-se inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de
índole genérica e abstracta como é o da declaração de inconstitucionalidade
com força obrigatória geral (neste sentido, v.g., o acórdão nº 17/83, publicado
no Diário da República, II Série, de 31 de Janeiro de 1984 e os pareceres nele
citados da Comissão Constitucional).
IV
Nestes termos e face ao exposto, o Tribunal
Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos
artigos 4º, nºs. 17, 26 (primeira parte), 47, 49 e 54 (segundo segmento), 9º, nº
3, 10º, nº 4, 11º, nº 6, e 38º do Regulamento de Disciplina do Batalhão de
Sapadores Bombeiros da Câmara Municipal de Lisboa, aprovado por deliberações da
Câmara, de 16 de Julho de 1970 e de 22 de Abril de 1971, homologadas por
despacho emanado do Ministério do Interior, de 5 de Março de 1971 (Diário do
Governo, II Série, nº 69, de 23 de Março de 1971).
Lisboa, 8 de Março de 1995
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Bravo Serra
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Guilherme da Fonseca (com dúvidas, porque, tratando-se de matéria disciplinar,
regulamentada por normas, como são as ora questionadas, grosseiramente
afrontosas do regime de direitos, liberdades e garantias nascido do 25 de Abril
de 1974, seria caso de conhecer do mérito do pedido, à luz do nº 3 do artigo
282º da Constituição, para inevitavelmente declarar a inconstitucionalidade das
mesmas normas, sem ressalvar os casos julgados, o que se poderia projectar em
benefício de eventuais arguidos prejudicados com a aplicação de um tal sistema
disciplinar)
José Manuel Cardoso da Costa