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Processo: n.º 35-PP.
Requerente: José Fernando Rodrigues Branco.
Relator: Conselheiro Tavares da Costa.
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1 — José Fernando Rodrigues Branco requereu a este Tribunal, em 14 de Fevereiro
de 1995, ao abrigo do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de
Novembro, a inscrição, no registo próprio, de um partido político, com sede na
Rua Andrade, n.º 40, 2.º esquerdo, em Lisboa, que pretende adoptar a denominação
Partido Social Cristão e utilizar a sigla PSC, tendo como símbolo um peixe, de
cor branca, sobre fundo azul.
Acompanham o requerimento: relação nominal dos peticionantes; requerimentos
individuais com as assinaturas notarialmente reconhecidas; documentos
comprovativos da inscrição dos requerentes no recenseamento eleitoral; projecto
de estatutos; desenho com o símbolo registando.
2 — Organizado processo, foi neste lançada cota, pelo Senhor Secretário do
Tribunal, dando notícia de a inscrição ter sido requerida por 5876 cidadãos
eleitores, observando-se o disposto nos n.os 3 e 4 do artigo 5.º do citado
Decreto-Lei n.º 595/74 (preceito que sofreu os aditamentos e as alterações
constantes dos Decretos-Leis n.os 126/75, de 13 de Março, e 195/76, de 16 de
Março).
Procedeu-se à distribuição, em 15 de Fevereiro, consoante ordenado por despacho
da mesma data do Senhor Presidente do Tribunal Constitucional, e, no dia
imediato, em cumprimento do assim determinado pelo relator, foi notificado o
Senhor Procurador-Geral Adjunto para se pronunciar, querendo.
Em 17, apresentou este magistrado o seu parecer, no sentido da rejeição da
pretendida inscrição, tendo presente o estatuído no artigo 51.º, n.º 3, da
Constituição da República (CR) e o previsto naquele artigo 5.º, n.os 6 e 7.
3 — Colhe-se do exposto e do exame dos autos terem-se cumprido as exigências do
citado preceito, mormente no tocante ao número de requerentes, comprovação da
sua capacidade eleitoral e observância das respectivas formalidades legais.
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II
1 — Diz a Constituição da República, no n.º 3 do seu artigo 51.º:
Os partidos políticos não podem, sem prejuízo da filosofia ou ideologia
inspiradora do seu programa, usar denominação que contenha expressões
directamente relacionadas com quaisquer religiões ou igrejas, bem como emblemas
confundíveis com símbolos nacionais ou religiosos.
1.1 — O texto constitucional inspirou-se na redacção do n.º 6 do artigo 5.º do
Decreto-Lei n.º 595/74, aditado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 126/75, que,
de resto, continua em vigor (dada a ausência de desconformidade substancial com
a Constituição, como observa Marcelo Rebelo de Sousa — in Os Partidos Políticos
no Direito Constitucional Português, Braga, 1983, p. 389). Na sua génese
avultou a preocupação manifestada pelo legislador constituinte em assegurar a
«estabilidade democrática» do país e, do mesmo passo, a necessidade de garantir
a liberdade religiosa e estabelecer inequívoca separação entre os planos
político e religioso, aliás de acordo com o exigido pelo n.º 4 do artigo 41.º da
Constituição (cfr., a este propósito, o Diário da Assembleia Constituinte, n.º
42, de 4 de Setembro de 1975; Marcelo Rebelo de Sousa, ob. cit., pp. 339 e segs.
e 390 e segs.; do mesmo autor, «Os Partidos Políticos na Constituição», in
Estudos sobre a Constituição, 2.º vol., Lisboa, 1978, pp. 57 e segs.).
1.2 — O novo agrupamento político pretende denominar-se Partido Social Cristão
(cfr. artigo 4.º dos Estatutos).
De acordo com o n.º 1 do artigo 1.º desses Estatutos, «o Partido Social Cristão
(PSC), de inspiração cristã, tem por finalidade a promoção e defesa, de acordo
com o Programa do Partido, da democracia política, social, económica e cultural,
inspirada nos valores do Estado de Direito e nos princípios éticos, sociais e
democráticos da doutrina cristã».
O símbolo do partido — formado por um peixe branco, em fundo azul — representa
«os valores fundamentais da doutrina cristã», de acordo com o mencionado artigo
4.º
Ao Tribunal Constitucional compete, nos termos dos artigos 9.º, alíneas a) e b),
e 103.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, aceitar a inscrição de
partidos políticos, apreciando a identidade ou semelhança das denominações,
siglas e símbolos do partido, competência anteriormente confiada ao Presidente
do Supremo Tribunal de Justiça — n.º 6 do artigo 5.º do citado Decreto-Lei n.º
595/74, aditado pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 126/75 (artigo 5.º que seria,
ainda, parcialmente alterado pelo Decreto-Lei n.º 195/76). E, simultaneamente,
deverá ter presente o disposto no artigo 51.º, n.º 3, da CR.
2 — Assim, e no que à denominação toca, a inclusão nesta de vocábulo — «cristão»
— directamente relacionado com determinada religião, seja individualizadamente
considerado, seja formando um eixo sintagmático com «social» (social cristão),
denota utilização constitucionalmente interdita.
Pretende-se, com o preceito constitucional, nomeadamente, evitar lesão na boa fé
dos cidadãos e assegurar condições de transparência na participação política
destes, de modo a afastar quaisquer juízos de confundibilidade com religiões ou
igrejas, do mesmo passo se acautelando o princípio da não confessionalidade do
Estado, com expressão no n.º 4 do artigo 41.º da CR, e se preservando a
liberdade de consciência consagrada no n.º 1 do mesmo artigo.
Escrevem, a este respeito, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, em comentário
ao n.º 3 do artigo 51.º (in Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª
ed., Coimbra, 1993, p. 277):
Dado que os partidos contribuem para a formação da vontade popular (n.º 1),
compreende-se a proibição constante do n.º 3, pela qual se pretende impedir que
os partidos utilizem denominações que contenham expressões directamente
relacionadas com religiões ou igrejas ou emblemas confundíveis com símbolos
nacionais ou religiosos. Serão, assim, inconstitucionais os partidos que se
designarem de «cristãos», «católicos», «protestantes», etc., ou que adoptarem
como símbolos a cruz ou a bandeira nacional, ou qualquer combinação gráfica
confundível com esses símbolos.
A proibição de adopção de denominações e símbolos religiosos decorre também da
preocupação de garantir a liberdade religiosa, bem como a independência das
igrejas e a sua separação em relação ao Estado. Trata-se, em certo sentido,
ainda, de uma garantia da não-confessionalidade do Estado […].
Se à economia e à inteligência do acórdão não parece ser necessário clarificar o
que se deva entender por religião ou igreja, não oferece reserva afirmar-se que
a expressa alusão a «cristão» na denominação de partido é susceptível de criar a
confusão que o texto constitucional desejou evitar: torna-se evidente a sua
íntima articulação com uma mundividência religiosa contida na conceituação
constitucional de religião — quer o intérprete se atenha a uma concepção
tradicional globalizante ou se abra às experiências e aos movimentos mais
recentes, nessa área, e menos institucionalizados (a propósito, cfr. Jónatas
Machado, «Pré-Compreensões na Disciplina Jurídica do Fenómeno Religioso», in
Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXVIII, 1992,
pp. 172 e segs.).
De resto, não deixará de haver quem entenda, como o Senhor Procurador-Geral
Adjunto, que os princípios da doutrina cristã aludidos nos estatutos não são
património ideológico susceptível de apropriação em exclusivo por determinado
partido ou associação, de modo a criar, através de denominação adoptada e
registada, «monopólio» relativamente a um património ético, político, filosófico
e ideológico perpassado nos programas de outros partidos, constituídos ou a
constituir.
Conclui-se, deste modo, ser de recusar o pedido quanto à pretendida denominação.
3 — No que à sigla respeita, importa, desde logo, esclarecer o que por esta se
entende.
Uma sigla é uma sequência de letras constituída pelas iniciais de certas formas
lexicais (cfr. R. Galisson e D. Costa, Dicionário de Didáctica das Línguas,
Coimbra, 1983, p. 649); quando palavra é definida como palavra constituída pelas
letras iniciais dos termos componentes de um expressão (cfr. Grande Dicionário
da Língua Portuguesa, coordenado por José Pedro Machado). Trata-se, aliás, de
noção que este Tribunal já tem aceite (cfr., v. g., os Acórdãos n.os 246/93 e
256/94, ambos inéditos).
A esta luz, a sigla PSC se, em si mesma é neutra, considerando as letras que a
compõem, já, enquanto formada pelas iniciais de Partido Social Cristão, sofre,
lógica e consequencialmente, a sorte desta denominação.
Nada, porém, parece impedir a sua existência, se reportada a iniciais de
palavras que não se encontrem em relação directa com quaisquer religiões ou
igrejas, sendo certo, por outro lado, que não revela similitude susceptível de
criar confusões com as siglas registadas neste Tribunal.
4 — Resta conhecer do símbolo proposto, constituído — já o escrevemos — por um
peixe, de cor branca, em fundo azul (sem a banda inferior contendo a denominação
do partido que consta do «fac-simile» junto aos autos) — o qual, na expressão
estatutária, «representa os valores fundamentais da doutrina cristã».
Considera-se, a este respeito, que se trata de emblema que, posto em relação com
a pretendida denominação do partido, pode suscitar, pela sua caracterização de
matriz religiosa, confusão no espírito e boa fé dos cidadãos, desse modo
perturbando a desejada transparência na participação política destes.
Não é difícil, com efeito, a leitura criptográfica do símbolo do peixe —
facilitado, aliás, pela estilização da figura (usada nas artes plásticas) e, bem
assim, pela tradição cristã de recurso à função simbólica. Sabe-se que os
membros das primeiras comunidades cristãs viam na figura do peixe, actuando como
significante, a alusão a Cristo, como significado, recorrendo comummente a essa
figura emblemática para, desse modo, aludirem à Salvação, exercerem uma função
didascálica, fortalecerem a sua união interna e atenuarem os riscos de
perseguições. Desenhado isoladamente ou acompanhado de outros elementos
simbólicos, o peixe foi, historicamente, representado como nome simbólico de
Cristo (em grego, as letras de ichtys, peixe, são as iniciais de Jesus Cristo,
Filho de Deus Salvador: cfr. Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol.
20, p. 862; Manuel d’Aguiar Barreiros, Elementos de Archeologia e Bellas Artes,
Braga, 1917, pp. 302 e 303). E, ainda hoje, não constituindo o símbolo por
excelência do cristianismo, não deixa de poder ser entendido como tal em certas
circunstâncias.
Assim, e na medida em que o símbolo está em relação com a denominação,
adapta-se-lhe o mesmo juízo de censura que para esta última se formou.
5 — Por último, não se deixará de referir um ponto que pode oferecer certa
perturbação e que respeita ao registo de um partido político cuja denominação
contém uma palavra directamente conotada com uma religião (caso do Partido da
Democracia Cristã, registado em 19 de Fevereiro de 1975).
Trata-se, na verdade, de registo ocorrido anteriormente ao início da vigência da
actual Constituição e do n.º 6 do citado artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 595/74,
aditado pelo Decreto-Lei n.º 126/75, onde, pela primeira vez, se faz referência
às denominações de partidos com «nomes de igrejas», e à não confusão ou
relacionamento gráfico ou fonético dos seus símbolos ou emblemas com,
nomeadamente, imagens e símbolos religiosos, não admitindo umas e outros. Sendo
certo que, se a Constituição, no seu artigo 295.º, manda aplicar o disposto no
n.º 3 do artigo 51.º, «aos partidos constituídos anteriormente à entrada em
vigor da Constituição», acrescenta caber à lei regular a matéria, o que até à
data ainda não ocorreu.
6 — Em face do exposto, porque a denominação do partido requerido desrespeita o
disposto nos artigos 51.º, n.º 3, da Constituição da República e 5.º, n.º 6, do
Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de Novembro, aditado pelo Decreto-Lei n.º 126/75,
de 13 de Março, e a sigla e o símbolo, no contexto em que inscrevem, violam
também aqueles normativos, decide-se rejeitar a inscrição do Partido Social
Cristão no livro de registo dos partidos políticos deste Tribunal.
Lisboa, 23 de Fevereiro de 1995. — Alberto Tavares da Costa — Antero Alves
Monteiro Diniz — Maria Fernanda Palma — Armindo Ribeiro Mendes (vencido apenas
quanto ao segundo fundamento respeitante à sigla e ao símbolo, nos termos da
declaração de voto junta) — José Manuel Cardoso da Costa — (tem voto de
conformidade dos Ex.mos Conselheiros Vítor Nunes de Almeida — com declaração de
voto que me entregou, nos termos do regulamento interno deste Tribunal — e
Maria da Assunção Esteves, que não assinam por não estarem presentes) — Alberto
Tavares da Costa.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Acompanhei a decisão, embora entenda que o peixe, com a representação gráfica
constante do símbolo referido, é manifestamente um símbolo de religiões cristãs
— tal como os próprios requerentes aceitam (cfr. artigo 4.º dos Estatutos) —
sendo certo que tal representação gráfica tem, enquanto tal, um valor objectivo,
que ainda hoje se mantém e que, por isso, não deve poder ser usado, em quaisquer
circunstâncias, por um partido político, dada a proibição estabelecida pelo n.º
3 do artigo 51.º da Constituição da República Portuguesa. — Vítor Nunes de
Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Diferentemente da tese perfilhada pela maioria que fez vencimento no
acórdão, considerei que a rejeição da inscrição do denominado Partido Social
Cristão só devia fundar-se na inclusão da palavra «Cristão» nessa denominação.
Quanto a este fundamento, aceitei sem reservas as considerações constantes da
presente decisão.
2 — Relativamente ao segundo fundamento consignado no acórdão, não pude
acompanhar a posição que fez vencimento.
Considero, na verdade, que a sigla e o símbolo escolhidos pelos fundadores do
partido registado não violam a primeira parte do n.º 6 do artigo 5.º da Lei dos
Partidos Políticos (Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de Novembro, redacção
introduzida pelo Decreto-Lei n.º 126/75, de 13 de Março).
Quanto à sigla, começo por notar que a indicada norma não estabelece quaisquer
requisitos para a respectiva composição. No caso concreto, as letras PSC não
têm qualquer sentido perceptível autónomo, nomeadamente fonético, correspondendo
o conjunto à sucessão da primeira letra de cada uma das palavras que integram a
denominação. Nada há a censurar quanto à sigla, isoladamente considerada.
Já no que toca ao símbolo, admito que a questão não seja inteiramente líquida.
A verdade, porém, é que o n.º 6 do artigo 5.º da Lei dos Partidos se limita a
estabelecer que o símbolo de um partido «não pode confundir-se ou ter relação
gráfica ou fonética com símbolos ou emblemas nacionais ou com imagens ou
símbolos religiosos». No caso concreto, a imagem de um peixe foi utilizada
entre comunidades de crentes dos primórdios do Cristianismo para identificar
aquele credo, em fase de perseguições religiosas pelo Império Romano, como se
refere no acórdão. A partir do momento em que a religião cristã se tornou a
religião oficial do mesmo Império, a importância simbólica da imagem de peixe,
como substituto da cruz, enquanto social identificador interno e mais ou menos
secreto, começou a diminuir, não obstante se mantivesse na memória como emblema
de Cristo (veja-se, sobre este último ponto, o vocábulo «emblema», in
Verbo-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. VII). A verdade, porém, é
que, a par dessa imagem, muitas outras imagens de animais, plantas, realidades
físicas e objectos foram utilizadas historicamente pela religião cristã ou por
outras religiões como sinais identificadores, (bastará recordar o céu, o fogo, a
água, a árvore cósmica, o ramo de palmeira, o tridente, a concha, o cordeiro,
etc.). Muitas dessas imagens constituem motivos decorativos em arquitectura
religiosa e nas diferentes artes sacras, ao longo dos séculos e são objecto de
estudos de arqueologia religiosa.
Face ao referido, parece-me manifesto que a lei não quis proibir a utilização de
todas essas imagens simbólicas historicamente datadas nos emblemas partidários.
Visou tão-somente proibir a utilização das imagens ou símbolos que,
contemporaneamente, podem confundir os eleitores, por serem usados para
identificar religiões ou por serem imagens religiosas indesmentíveis
(relativamente ao Cristianismo, bastará referir a cruz, ou certas imagens de
significado indiscutível, como o Sagrado Coração de Jesus, a Virgem Maria,
etc.). Neste entendimento da lei — que é compatível com o disposto no n.º 3 do
artigo 51.º da Constituição — tenho por certo que não pode afirmar-se que a
utilização do símbolo do peixe (ainda que com a explicação constante dos
estatutos do partido) pode confundir o eleitor, levando a identificar esse
partido com uma certa igreja ou religião. O peixe perdeu historicamente esse
sentido, tal como o tridente, a folha de palmeira, etc. Prova do que acabo de
dizer é que tais símbolos são usados livremente em publicidade comercial, sem
suscitarem reacções sociais de repúdio ou censura.
Não havia, em minha opinião, que recorrer aos estatutos do Partido para
descobrir a razão da escolha do símbolo e, por isso, não devia fundamentar-se
também na sigla e no símbolo, «no contexto em que se inserem», a decisão de
rejeição que subscrevi. — Armindo Ribeiro Mendes.